Sem medo algum de ser contestado,
posso aqui me servir de opinião resoluta, a qual será extensamente comungada
pela maioria dos amantes de literatura: uma vez envolvido no mundo de Clarice Lispector fica difícil imaginar
a vida sem ela.
Eu atravessei o último mês
de dezembro lendo calmamente este belíssimo e abundante tributo àquela que
considero a maior escritora da língua portuguesa. O último mês do ano
propositalmente teve como minha última leitura esta obrigatória biografia, a
qual eu me vi apreciando de forma lenta e reflexiva, receando seu término a
cada página que virava.
Dezembro é o mês de
nascimento e também o de óbito desta esplendorosa autora. Clarice Lispector nasceu no dia 10 e no dia 09 (véspera de seu
aniversário) ela deu seu último suspiro, mas por conta do Shabat só foi
enterrada no dia 11, data do meu aniversário. Uma coincidência que, embora não
tenha nenhum significado, acometeu-me de maior enfoque, como se meras
semelhanças inevitavelmente tornasse meu eu leitor ainda mais próximo desta inigualável
resgatadora da alma humana.
De qualquer forma, devo
confessar que foi muito prazeroso viver este dezembro de Clarice, em que me vi
amalgamado por algo que foi muito além de uma mera leitura; foi como ter posse
de um estudo completo que revelou muitas particularidades de Clarice, como suas
origens judaicas, seu universo literário, sua vida pessoal, seus traumas, seu
brilhantismo...
Apesar de biografar uma
escritora amplamente conhecida em vários países, Benjamim Moser, através de intermináveis pesquisas, conseguiu entregar
um trabalho ainda mais profundo e detalhista, onde podemos acompanhar não
somente a trajetória de Clarice, mas também a literatura que permeava seu
tempo, a complexa política do Brasil naquela época e um tanto da vida dos
amigos que estiveram próximos da escritora. Desse modo, este CLARICE, torna-se leitura obrigatória
para quem admira e quer conhecer um pouco melhor a vida desta genuína autora.
Curiosamente o biógrafo
desta obra é norte-americano, que incendiado pela escrita de Clarice Lispector, mergulhou
profundamente em uma busca quase obcecada por compreender a vida e a literatura
imortal de sua biografada. Portanto, no ano de 2009 nasceu nas livrarias
americanas Why This World: a biography of
Clarice Lispector, a qual no mesmo ano também seria publicada no Brasil
pela editora COSAC NAIFY, sob o título: CLARICE,.
Contudo, dada relevante
importância de Clarice Lispector
para a literatura, pode-se levar em consideração um pertinente questionamento:
por que ler mais este livro de uma autora que já foi tantas vezes biografada e
estudada? E a minha resposta é definitiva, muito embora eu não tenha lido
outros autores que exploraram o universo clariciano: Além de amante e leitor
assíduo de Clarice, Benjamim Moser
nos entregou o que pode ser considerado uma obra definitiva, mesmo sabendo que Clarice Lispector é um assunto inesgotável,
uma página inacabada. E a conclusão a cerca deste livro permeia a opinião de
outros críticos e estudiosos de Clarice. Moser entregou-se com tamanha devoção
à sua heroína, que se prestou ao aprendizado da língua portuguesa para poder
ler os originais da escritora em sua língua original. Tamanha obstinação só
poderia mesmo resultar em uma obra singular e ilustre, cujas páginas exalam o
afeto e a intensidade de Clarice
Lispector.
Sem exageros ou argumentos
suspeitos, Moser nutre sua obra com seu olhar atento de leitor e pesquisador,
lacunas da vida de Lispector que ainda não haviam sido contadas por ninguém. Por
isso, o que há de mais inovador nesta biografia, é justamente a entrega do
autor, que por meio de sua incansável pesquisa, conseguiu iluminar um pouco
mais o vasto oceano clariciano.
O escritor Rui Castro, exímio biógrafo, costuma
dizer que para se escrever uma biografia digna, o autor precisa “se casar” com
o biografado. Pois este CLARICE, é
prova de que Benjamim Moser acatou
esta ideia e, mesmo declaradamente apaixonado por sua biografada, soube contar
uma história imparcial, sem se deixar perder pela emoção.
CLARICE, é
um trabalho estupendo, de longe a melhor leitura que fiz em 2016. E diante do
incomensurável desafio de se contar a história de uma autora que, apesar de ser
um fenômeno da literatura, sempre se mostrou uma mulher moderna e acessível na
mesma proporção com que era silenciosa e inalcançável, mesmo assim, Moser soube
fazê-lo com maestria e ousadia.
“No entanto eu já estou no
futuro. Esse meu futuro que será para vós o passado de um morto. Quando acabardes
este livro chorai por mim um aleluia. Quando fechardes as últimas páginas deste
malogrado e afoito e brincalhão livro de vida então esquecei-me. Que Deus vos
abençoe então e este livro acaba bem. Para enfim eu ter repouso. Que a paz
esteja entre nós, entre vós e entre mim. Estou caindo no discurso? Que me
perdoem os fiéis do templo: eu escrevo e assim me livro de mim e posso então
descansar”.
(Clarice Lispector)