Existem lugares, situações e personagens neste Brasil sofrido que somente a literatura os traz, mesmo que na escassez expansiva de público, para a contemplação desse país como ele realmente é: um lugar de profundas tragédias sociais. Portanto, textos cujas leituras são fortes a ponto de fragilizar o leitor deveriam ser obrigatórios, embora eu tenha certo receio com as obrigações estabelecidas pelas nossas instituições de ensino. E me desculpem aqueles que acreditam que apenas as sofisticações de nossa cultura ou a erudita linguagem deveria ser material de pesquisa por sua evidente contribuição para o enriquecimento social; tratam-se de obras esmeras e que têm seu lugar de importância na projeção da arte brasileira, tão achincalhada ou meramente ignorada pelo nosso povo. Livros como QUARTO DE DESPEJO, possuem um viés de urgência, de chamamento para o que está acontecendo, porque tenho uma enorme desconfiança de que tem muito brasileiro que ainda não sabe o que se passa dentro de nossas fronteiras. E a náusea causada pelo avanço na leitura, deve ser como um elixir que instiga e suscita a indignação..., talvez com isso nós fôssemos um povo mais indignado.
Esta obra talvez seja
indispensável neste aspecto.
O mais trágico é que mesmo em
nosso tempo atual, o qual nos distanciamos muito do tempo em que a obra foi
escrita, na década de 1950, o livro parece mais atual do que nunca, quando nos
deparamos com a fome assombrando novamente milhões de brasileiros que vivem em
favelas sem o mínimo de dignidade social, gente que enfrenta fila para
conseguir um pouco de osso para cozinhar, eis um cenário que deveria ser parte
do passado, mas que segue sendo reproduzido em nosso tempo.
QUARTO DO DESPEJO é o
diário da catadora de papel Carolina Maria de Jesus, que relata seu
sofrido dia a dia de acordar para ir buscar o sustento para os filhos, sem
nenhuma garantia de que será conseguido. Solteira, mãe de três crianças,
Carolina é uma representante dessas pessoas que são categoricamente ignoradas
pelo Estado e pelo resto da sociedade; gente indigente, cujo retrato de
desesperança está contido em cada dia narrado pela autora.
Carolina Maria de Jesus viveu
seu tempo de miséria e desespero na favela do Canindé. Apesar das incertezas e
do completo distanciamento dos meios culturais que a óbvia condição precária
lhe proporcionava, ela era apaixonada por livros, amava ler e usava o hábito de
escrever em seus diários, que foram reunidos nesta obra, como válvula de escape
para suportar o sofrimento e a dor que permeia os dias de quem vive em
condições subumanas.
Há instantes na leitura em que
a tristeza de não ter o que comer se torna tão intensa, que o leitor passa a
torcer por Carolina, e cada novo dia em que ela consegue algo para alimentar os
filhos e a si mesma, nos soa como um alívio..., então vem o dia seguinte, e a
luta para sobreviver recomeça. E ficamos desesperançados, quase sentindo as
agruras vividas por Carolina para conseguir alguma coisa para levar para casa
no final do dia, seja um alimento achado no lixo, algum item básico comprado
com o que se conseguiu com a venda do papel, ou alguma migalha oferecida por
alguém... A tristeza permeia a leitura quase que o tempo inteiro. A palavra
fome aparece ao longo da obra com uma frequência irritante!
Um aspecto que vale a pena ser
apontado é que os editores da obra optaram por manter a linguagem original,
manteve-se os erros de escrita e de gramática, que segundo os editores, teve
como intuito invadir o menos possível e manter a fidelidade linguística da
obra.
QUARTO DE DESPEJO é um diário que narra os dias trágicos de quem vive na parte ignorada e obscura do Brasil. Mesmo hoje, o livro continua atual, não o relato de algo que ficou passado. Porque em nossa sociedade capitalista, desigual que acumula recursos para uma minoria quase irrisória, ainda existem muitas Carolinas por aí, morando em barracos podres e catando lixo e papel para sustentar os filhos.
NOTA: 8,2