segunda-feira, 29 de maio de 2023

RESENHA DE LIVRO – O LIVRO DOS HOMENS SEM LUZ

Eis aqui o tipo de obra que sustenta um título atraente, uma sinopse promissora e um autor português (verdadeiro celeiro de grandes escritores), elementos que de imediato chamaram minha atenção. O LIVRO DOS HOMENS SEM LUZ não revela se está a fazer referência a si mesmo ou a algum objeto de leitura dos personagens, à priori, não da pra saber. O fato é que este era um livro que despertou muita curiosidade de minha parte..., tanto, que foi um dos primeiros que li neste ano de 2023.

Mas como bem sabemos, isso não necessariamente é uma coisa boa.

O cenário da trama se desenha sobre vidas perdidas em busca de algum significado ou simplesmente escapar da escuridão de suas almas. Aqui nos deparamos com quatro contos aparentemente distintos, mas que conforme avançamos na leitura, percebemos que ambos se entrelaçam em alguma medida. Depois de perder a família num incêndio, um homem afasta-se de tudo, trancafiado num singelo apartamento em Londres quando sua vida passa a ser comandada pela voz de um desconhecido ao telefone; após um bombardeio alemão durante a segunda guerra mundial, um casal fica preso dentro de um minúsculo e fóbico porão por muito tempo; um jovem estudante que em decorrência de sua dificuldade de dormir se vê inserido em abstrações de sua mente, criando uma paranoia sobre o vizinho; por fim, um médico desenvolve uma máquina de tortura a qual fara contestável uso em um paciente inusitado...

Os instantes de tensão criados pela narrativa já acontecem nas primeiras páginas, quando nos deparamos com o conto inicial (meu favorito). As personagens trazem em suas composições características indecifráveis, tudo dentro de uma atmosfera de muita claustrofobia, parece que o tempo todo algo nocivo está à espreita e que logo se descortinará uma tragédia. Então, todo esse desconforto se transforma em dúvida na cabeça do leitor, e instintivamente colocamos em perspectiva a sanidades dos envolvidos.

João Tordo faz sua estreia aqui e, de imediato, demonstra sua habilidade em conduzir o leitor através de lugares de extremo incômodo existencial. O alento dos protagonistas é percebido em suas atitudes, o lugar comum aqui está na loucura..., ou ao menos no inevitável sentido de sua direção.

O segundo conto segue uma linha similar ao primeiro, as vezes até me confundi, achando que ainda estava lendo o mesmo conto. Já no terceiro entramos num universo um pouco mais desesperador e insano. Deste ponto em diante o autor vai seguir uma narrativa mais sórdida, e que ainda neste terceiro episódio funcionou. Porém, o quarto e último conto a coisa parece ter ficado excessivamente asquerosa e animalesca (o conto que menos gostei). Senti-me incomodado com perda de ritmo aqui, foi como se o terceiro conto, apesar de desconfortável, fizesse um prenúncio do que estava por vir. Então no último conto parecia que estava lendo outro livro, desses de terror surrealista. Nenhum problema nisso, mas particularmente eu não gostei da mudança brusca de narrativa.

O LIVRO DOS HOMENS SEM LUZ é um conjunto de quatro longos contos, cujos dois primeiros denotam de forma muito crua solidão, desalento e perda de sentidos, o terceiro é uma angustiante descrição dos limites entre a sanidade e a loucura, então desembocamos no quarto que é um escatológico ensaio do grotesco. Discrepantes entre eles, mas terão alguma ligação que os complementam, vale a pena ser conferido.

NOTA: 6,8

domingo, 14 de maio de 2023

CRÔNICA – O REENCONTRO

Duas senhorinhas se encontraram por acaso dentro do ônibus. A última a entrar rapidamente reconheceu o rosto enrugado da amiga, que estava sentada mais ao fundo do veículo, as antenas levantadas pelo reconhecimento da outra. Houveram sorrisos e acenos de ambas as partes. O reencontro é sempre uma manifestação da esperança em reviver momentos que nos alegra.

Apesar de o tempo ter sido implacável com ambas as mulheres, a visão delas ainda parecia estar intacta, visto que o ônibus estava relativamente cheio, o que dificultaria muito visualizar um rosto familiar no meio da multidão.

Com a destreza de um jabuti, a senhorinha recém-chegada foi desbravando o corredor, até estar diante de sua sorridente colega. Sentaram-se lado a lado, os ombros roçando porque assentos de ônibus parecem não ter sido projetados para passageiros acima do peso (aliás, quase nada neste mundo foi criado levando os gordinhos em consideração), e essa era a condição das duas; dizem que na velhice engordamos porque nessa fase o metabolismo reproduz exatamente o mesmo comportamento de todo o resto do universo: ignora os idosos por completo.

Logo atrás do assento das vetustas amigas, eu havia interrompido a leitura que fazia para acompanhar todo aquele caloroso reencontro que, a julgar pelo entusiasmo, abraços e beijos, imaginei que elas não se viam desde o início das obras de construção das pirâmides do Egito..., e como elas não conseguiam se conter devido a muitas novidades para relatar, eu soube que seria difícil continuar lendo.

Depositei o marca página no centro do livro, fechei-o e, completamente derrotado, resolvi acompanhar a trivialidade mundana que passava do lado de fora da janela. Contudo, era difícil não prestar atenção na conversa das velhinhas, tamanha era a euforia. Elas falavam sem parar, num timbre elevado que ameaçava a soberania do motor estrepitoso do ônibus. Não demorou muito e eu estava tomado pelos causos narrados de longínquos tempos, elas falavam com nostalgia de uma juventude que imaginei ter sido vivida na companhia de Cabral e os lustrosos marujos portugueses que cá desembarcaram..., aliás, não somente a minha atenção fora roubada pela prosa avolumada, como também a de metade dos passageiros do ônibus.

Afinal, eram amigas pré-históricas, certamente não se viam desde a ressurreição de Cristo e, portanto, tinham muito o que conversar.

E o papo rolou solto, as “garotas” falavam de suas grandes aventuras, lembravam com brilho no olhar dos caras mais gatos daquele tempo, detalhavam coisas que parecia fazer sentido somente para gente daquela época..., enfim. O reencontro de duas metades de uma alma no interior do coletivo.

E olha que eram seis e meia da matina! Imagine como seria esse encontro, tipo, após as dez, em local menos conturbado, quando já fora possível apreciar um café revigorante e o corpo já atingira um ganho de energia decente.

Mas eis que o famigerado destino sempre nos alcança, e foi quando uma das velhotas anunciou que seu ponto de desembarque estava chegando e o papo teria que ser interrompido.

“Graças à Deus!”, pensei comigo, já resgatando o livro de dentro da mochila para retomar a leitura. Ainda poderia apreciar alguns parágrafos, antes que o meu destino chegasse.

– Anota meu número aí – disse uma das velhas – pra gente marcar um almoço.

– Vou anotar – respondeu a outra, e começou a vasculhar na bolsa, à procura do aparelho – Ué, será que eu deixei meu celular em casa.

– Você continua a mesma desatenta de sempre – a amiga gargalhou.

– Achei! – e a senhorinha digitou na tela os números que lhe eram oferecidos, de modo lento e sistemático – Agora eu vou fazer a chamada e você grava o meu número no seu telefone.

Um som polifônico encheu o recinto.

– Tá bem aqui na tela o seu número – disse a velhinha no canto da janela.

– Então já pode salvar.

– Deixe-me ver...

A essa altura, eu já tinha guardado o livro novamente, intrigado que fiquei com o processo de troca e salvamento do número telefônico. E o aparelho celular parecia mais indecifrável do que uma avaliação de mecatrônica. A velhinha cutucava a tela, arrastava o dedo desordenado, afastava a tela do rosto para conferir algo. E foi nesse momento que concluí que ao menos aquela velhinha não enxergava tão bem quanto eu imaginava.

De repente, outro som de toque iniciou, agora no celular da outra amiga.

– O que você está fazendo? – ela quis saber, enquanto olhava para o próprio aparelho a tocar em sua mão.

– Ué, eu apertei pra salvar aqui, mas ele tá fazendo chamada de volta.

– Você sabe salvar números no seu aparelho?

– É claro que eu sei! – mas a expressão dela era um mar de insegurança – É que eu estou sem os meus óculos.

– Deixa que eu salvo aqui no meu celular o seu número – sugeriu a outra – depois eu te ligo pra gente conversar.

– Tá bom então...

A velhinha do canto começou a vasculhar as opções do aparelho, igualmente ao que a amiga havia feito, há pouco. Do assento logo atrás eu notei que ela sustentava o mesmo olhar de quem não faz a menor ideia de como se salva um número de telefone.

Outra vez um celular tocando.

– Agora é você que está me ligando.

– Não liguei nada! Eu apertei sem querer.

– Conseguiu salvar?

– Deixa eu ver aqui.

As duas olharam para a tela..., quer dizer, nós três olhamos, porque do assento de trás eu me estiquei todo pra ver se havia dado certo.

Não havia.

Então mais dedos passeando pela tela de touchscreen. O ônibus diminuiu a velocidade para estacionar no ponto. Alguém deu uma gargalhada, mas não deu pra saber se era por conta da falta de intimidade com a tecnologia por partes das distintas senhoras.

– E então?

– Então o que? – disse a outra e se levantou para descer.

– Salvou?

– Meu telefone tá maluco.

– O meu também.

O motorista aguardava o desembarque dos passageiros. A velhinha em pé agora estava tomada pela indecisão, não conseguia decidir se ia em direção às escadas de saída ou se continuava tentando salvar o precioso número da melhor amiga.

– Se você fez a chamada o número vai estar no histórico de ligações feitas – era uma jovem de uniforme escolar quem dava a dica para as velhinhas. Também devia estar aflita acompanhando a cena.

– E pra que serve isso?

– É só a senhora entrar no histórico e salvar o número dela.

– Vou pedir ao meu neto pra fazer isso.

– Ela vai esquecer... – disse a velhinha sentada, e abriu a bolsa de onde retirou um pedaço de papel e uma caneta – é muito esquecida.

– Não vou esquecer.

O motorista quis fechar a porta, mas as pessoas gritaram para esperar.

– Pode falar – disse a velha sentada e apoiou o papel na lateral da bolsa.

– Falar o que?

– O seu número né!

– Não dá tempo.

– Fala logo!

– Nove..., nove...

A porta do ônibus foi fechada.

– Peraê, motor! – gritaram os passageiros.

– Nove...

– Gente, eu tô com a viagem atrasada!

– Não seja insensível, motorista!

– Oito..., cinco...

– Peraí, você falou quantos nove?

O motor roncou, mas não saiu do lugar.

– Nove...

– Calma aê, motor! O senhor não tem mãe?

– Nove...

– Você está começando a ditar do início?

– Nove..., nove...

– Quantos nove você falou?

– Me da esse papel que eu anoto – era a estudante, impaciente – Pegou o celular da velhinha, entrou no histórico de chamada, anotou o número no papel e entregou para a sorridente senhora.

– Já que se comprometeu a anotar, porque você não salvou na agenda?

– Nem me ocorreu fazer isso.

– Tchau, amiga! – disse a velhinha, já descendo as escadas.

O motorista deu a partida, meio puto por conta da falta de compreensão das pessoas em saber que ele tinha horário a cumprir. A velhinha remanescente ainda fez algum comentário sobre como se faz para salvar um número na agenda telefônica e, bem atrás dela, estava eu, certo de que precisaria escrever sobre aquela manhã infestada de reencontros, tecnologia e números nove...