domingo, 10 de dezembro de 2023

HOMENAGEM – A CRONISTA LISPECTOR

A crônica é um gênero da literatura que costuma fugir do rigor jornalístico, para se aproximar um pouco mais da função de entretenimento e reflexão, trazendo em seu conteúdo personagens que podem ser fictícios ou não, muitas vezes para nos relatar frivolidades que escapam do nosso interesse no dia a dia.

Se o viés do conteúdo da crônica nos parece inútil, podemos concluir que isso nada mais é do que um efeito colateral, pois ao aproximar o leitor de uma identificação própria que o fará reconhecer-se no texto, cria-se a impressão de ao dispensável. E quanto a isso, devo acrescentar que a crônica é possivelmente o gênero que melhor aproxima estes dois indivíduos aparentemente distantes: leitor e escritor.

Gosto desse modelo literário e o leio frequentemente. E apesar de ter a chance de degustar obras estupendas de diversos especialistas em crônica, foi somente quando li Clarice Lispector em sua delicada exposição de emoções pessoais por meio da crônica, que pude enxergar este modelo híbrido de literatura, da forma que aqui exponho. Afinal, é impossível deixar de se identificar com as angústias dessa brilhante autora, seus textos remetem-nos ao desconforto, instabilidade e questionamentos dos mais variados à cerca do cotidiano.

A crônica de Clarice fez com que eu me aproximasse dela, sua liberdade de se expressar com voz própria, libertando-se dos personagens fictícios que permeiam seus romances, além de outros trabalhos que fez usando pseudônimos, foi somente na crônica, por meio de imensa familiaridade humana, que a senhorita Lispector me fez querer saber mais sobre peculiaridades da vida que escapavam de meu olhar equivocado, numa intensa imersão íntima e orgânica.

Não é por acaso que quando sou perguntado sobre por onde começar a ler Clarice, eu indico sem medo de erra, que se comece pelo caminho da cronista, para só então adentrar em seu universo romancista. Sim, pois por meio da crônica, Clarice quebra barreiras metódicas e narra a vida cotidiana sem a impessoalidade da reportagem, acrescido um profundo mergulho psicológico.

Não quero dizer com isso que, em alguns momentos, a crônica de Clarice não esbarre no viés informativo, uma vez que, informação é tudo o que se relata, mesmo aquilo que menos importa. E o olhar para as impressões que se tem perante as frivolidades do cotidiano, do relato puro e simples daquilo que ocorreu dentro da mente, de divagações que se aprofundam conforme se avança na leitura, ou a linguagem acessível sem deixar de ser formosa, é o que segura na mão do leitor e o faz se aproximar de Clarice.

Sem as máscaras de outros gêneros, Clarice Lispector compartilha sentimentos próprios, tira-nos a dúvida quanto a quem pertence aquelas impressões, que sabemos ser fruto da intimidade da autora. Já quando lemos um conto ou um romance, tudo se torna mais nebuloso e impossível a associação do conteúdo ao pensamento do autor, embora seja fato que muito do que vai para as páginas de um livro carregue uma fagulha de influência da vida do escritor.

Através desse gênero composto, a grandiosa Clarice narra corajosamente assuntos que são parte de sua rotina, revelando seu modo de pensar, faz-nos enxergar sua própria rotina; Clarice se utiliza do cotidiano como matéria prima para nos despertar sensibilidade.

Sempre que nos aproximamos da data de seu nascimento (que coincide com a proximidade da data de sua morte), permito-me revisitar alguns de seus textos. Esse ano escolhi A Descoberta do Mundo, um compilado de crônicas que foram publicadas no Jornal do Brasil entre o ano de 1967 a 1973. E o que sempre me intriga nestas releituras é o ineditismo inerente na obra dessa autora; reler Clarice Lispector é como entrar num universo que, apesar de soar familiar, a todo momento se descobre algo novo a se refletir, que parece nos ter escapado em leituras passadas.

Quando Clarice fala de si por meio de sua crônica, exerce um magnetismo que nos puxa para perto dela. E é muito gostoso sabermo-nos tão próximo dessa extraordinária escritora, cuja coragem em entregar sua vida real, é o elemento que fez com que sua obra se tornasse irresistível.

FELIZ ANIVERSÁRIO, QUERIDA CLARICE!

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

RESENHA DE LIVRO – A BESTA HUMANA

Criei este blog no ano de 2011 pensando em estabelecer um espaço autônomo, onde eu pudesse manter uma constância no exercício da escrita, principalmente em tempos os quais me via carente de inspiração. O intuito era não me permitir ficar muitos dias sem praticar, afinal, o elemento fundamental de quem anseia aprimorar o próprio trabalho é a persistência. Quem escreve sabe que o passar dos anos exercendo essa tarefa, inevitavelmente torna a escrita mais enxuta e palatável.

Mas não é determinante que todas as minhas leituras se tornem postagens aqui no blog; o livro precisa despertar alguma emoção, reflexão ou contrariedade. E como já mencionei diversas vezes, também não costumo falar sobre os clássicos da literatura, pois não faz sentido escrever sobre algo que já foi analisado infinitamente e por gente muito mais qualificada do que eu.

Mas às vezes o clássico é justamente a obra que causa grandes emoções, reflexões ou contrariedades, em alguns casos, os três ao mesmo tempo. E até a metade de minha leitura deste A BESTA HUMANA, não sustentava nenhuma intenção de escrever sobre ela. Porém, da metade final, e talvez por ter finalmente me familiarizado com o estilo do autor, o livro me fez pensar bastante e acho que vale dispender alguns parágrafos.

A trama se passa em 1870, um período em que as locomotivas a vapor eram o que de mais moderno existia em tecnologia de transportes. A besta humana do título faz uma analogia entre o ser humano e a máquina (no caso, a locomotiva), numa intersecção na qual criador e criatura trocam de papéis, tornando-se em alternâncias aleatórias, verdadeiras bestas imparáveis; de um lado a violência intrínseca da natureza humana, e do outro a máquina insensível em estado bruto.

No início nos é apresentado Severina e um pouco de sua vida de casada com Roubaud, um homem ciumento e possessivo, que destila na esposa sua insegurança na forma de violência; já nas primeiras páginas cria-se um asco terrível em relação aos acessos furiosos desse personagem. Com o passar da leitura, insere-se outra personagem central: Tiago, sujeito um pouco enrustido, que apesar de atraente, costuma fugir de mulheres por conta de um irrefreável desejo de morte, um impulso obscuro que o faz querer assassinar as mulheres que dele se aproximam.

Outros personagens entram em cena com o avançar dos capítulos, mas creio que a trama fique sobre o arco entre estes três citados, mais a locomotiva, que permeia toda a obra, influenciando diretamente as vidas daquelas pessoas, assim como é também o arquétipo da morte, por sua notória imponência.

Trata-se de uma história contendo diversas facetas da maledicência humana, onde os instintos mais primitivos sobressaem o senso ético em nome de interesses próprios, e quando não sobressai, insere-se uma justificativa simplória que valida a violência como método.

Émile Zola usa de sua escrita para desnudar a natureza do ser humano. Considerado um dos precursores da literatura naturalista, Zola tece essa natureza egocêntrica e asquerosa do humano através das atitudes e visão limitada de mundo de suas personagens, cujos anseios indizíveis estão em todos e em todo lugar, mas disfarçados por meio de máscaras sociais que encobrem suas verdadeiras faces. Este foi o ponto mais elevado da trama e que me fez seguir com a leitura.

Como já mencionei, tive alguma dificuldade na primeira metade do livro, pois leva um tempo até que nos acostumemos ao estilo exageradamente prolixo do autor. Há parágrafos que avançam para além de uma página, muitas vezes para narrar a frivolidade cotidiana. É preciso uma boa dose de persistência para se descobrir a magia da obra.

Outro elemento que incomoda um pouco é que li uma edição de 1982 da editora Hemus, cuja tradução foi feita por Eduardo Nunes Fonseca. Aqui a diagramação está muito comprimida, com letras muito pequenas, sem descanso nas páginas e significativos erros gramaticais.

A BESTA HUMANA é um romance perturbador que desnuda o ser humano em toda sua maldade inerente. Faz parte de um projeto de vinte livros que narra histórias naturais e sociais de um tempo, publicados entre os anos de 1871 e 1893. Leitura um pouco extensa, mas vale pela possibilidade de se testemunhar até onde desejos sórdidos podem levar indivíduos de uma sociedade.

NOTA: 7,2