A crônica é um gênero da literatura que costuma fugir do rigor jornalístico, para se aproximar um pouco mais da função de entretenimento e reflexão, trazendo em seu conteúdo personagens que podem ser fictícios ou não, muitas vezes para nos relatar frivolidades que escapam do nosso interesse no dia a dia.
Se o viés do conteúdo da
crônica nos parece inútil, podemos concluir que isso nada mais é do que um
efeito colateral, pois ao aproximar o leitor de uma identificação própria que o
fará reconhecer-se no texto, cria-se a impressão de ao dispensável. E quanto a
isso, devo acrescentar que a crônica é possivelmente o gênero que melhor
aproxima estes dois indivíduos aparentemente distantes: leitor e escritor.
Gosto desse modelo literário
e o leio frequentemente. E apesar de ter a chance de degustar obras estupendas
de diversos especialistas em crônica, foi somente quando li Clarice
Lispector em sua delicada exposição de emoções pessoais por meio da
crônica, que pude enxergar este modelo híbrido de literatura, da forma que aqui
exponho. Afinal, é impossível deixar de se identificar com as angústias dessa
brilhante autora, seus textos remetem-nos ao desconforto, instabilidade e
questionamentos dos mais variados à cerca do cotidiano.
A crônica de Clarice fez com
que eu me aproximasse dela, sua liberdade de se expressar com voz própria,
libertando-se dos personagens fictícios que permeiam seus romances, além de
outros trabalhos que fez usando pseudônimos, foi somente na crônica, por meio
de imensa familiaridade humana, que a senhorita Lispector me fez querer saber
mais sobre peculiaridades da vida que escapavam de meu olhar equivocado, numa intensa
imersão íntima e orgânica.
Não é por acaso que quando
sou perguntado sobre por onde começar a ler Clarice, eu indico sem medo de
erra, que se comece pelo caminho da cronista, para só então adentrar em seu
universo romancista. Sim, pois por meio da crônica, Clarice quebra barreiras
metódicas e narra a vida cotidiana sem a impessoalidade da reportagem,
acrescido um profundo mergulho psicológico.
Não quero dizer com isso
que, em alguns momentos, a crônica de Clarice não esbarre no viés informativo,
uma vez que, informação é tudo o que se relata, mesmo aquilo que menos importa.
E o olhar para as impressões que se tem perante as frivolidades do cotidiano, do
relato puro e simples daquilo que ocorreu dentro da mente, de divagações que se
aprofundam conforme se avança na leitura, ou a linguagem acessível sem deixar
de ser formosa, é o que segura na mão do leitor e o faz se aproximar de
Clarice.
Sem as máscaras de outros
gêneros, Clarice Lispector compartilha sentimentos próprios, tira-nos a
dúvida quanto a quem pertence aquelas impressões, que sabemos ser fruto da
intimidade da autora. Já quando lemos um conto ou um romance, tudo se torna
mais nebuloso e impossível a associação do conteúdo ao pensamento do autor,
embora seja fato que muito do que vai para as páginas de um livro carregue uma
fagulha de influência da vida do escritor.
Através desse gênero
composto, a grandiosa Clarice narra corajosamente assuntos que são parte de sua
rotina, revelando seu modo de pensar, faz-nos enxergar sua própria rotina;
Clarice se utiliza do cotidiano como matéria prima para nos despertar
sensibilidade.
Sempre que nos aproximamos
da data de seu nascimento (que coincide com a proximidade da data de sua morte),
permito-me revisitar alguns de seus textos. Esse ano escolhi A Descoberta do
Mundo, um compilado de crônicas que foram publicadas no Jornal do Brasil
entre o ano de 1967 a 1973. E o que sempre me intriga nestas releituras é o
ineditismo inerente na obra dessa autora; reler Clarice Lispector é como entrar
num universo que, apesar de soar familiar, a todo momento se descobre algo novo
a se refletir, que parece nos ter escapado em leituras passadas.
Quando Clarice fala de si
por meio de sua crônica, exerce um magnetismo que nos puxa para perto dela. E é
muito gostoso sabermo-nos tão próximo dessa extraordinária escritora, cuja
coragem em entregar sua vida real, é o elemento que fez com que sua obra se
tornasse irresistível.