terça-feira, 6 de junho de 2017

RESENHA DE LIVRO – CAMPO DE SANGUE


Quatro protagonistas; quatro mulheres em torno de um homem. Talvez elas não o tivessem lapidado propriamente, mas foram presenças cruciais, que interferiram, entremearam, conviveram e misturaram-se ao quinto protagonista: um sujeito confuso e apagado, cuja solidão existencial irá levá-lo a cometer um crime.

E as quatro mulheres, edificantes ou edificadas por ele, se encontram numa sala distinta, aguardando para deporem por conta do crime protagonizado pelo anônimo personagem. Aliás, deixar de nomear protagonistas parece ser algo fundamental para Dulce Maria Cardoso, ótima escritora portuguesa que assina esta sublime narrativa, intitulada CAMPO DE SANGUE.

Portanto, logo após a epígrafe do texto, que faz uma breve explanação sobre o título da obra, nos deparamos com este ordinário cenário: quatro mulheres que não se conhecem, esperando numa desconfortável sala, para ajudar as autoridades a entender o fundamento de um assassinato cometido por um homem considerado pacífico. E é justamente esse sujeito a única coincidência que há nas quatro personagens.

A autora nos revela logo nas primeiras páginas, do que se trata seu enredo. Revela o que aconteceu e quem são as figuras de sua trama, como se o intento fosse não deixar nenhum mistério para o leitor. Joga todos os protagonistas nas páginas e vai, lentamente e de forma magnífica, desmistificando cada um deles, em particular, o homem. Este é um sujeito carente e entediado, que passa seus dias tentando reinventar-se para melhor se adequar a cada uma das mulheres de sua vida: a mãe, a ex-mulher, a senhoria, e a moça bonita (a adjetivação em substituição aos nomes dos personagens funcionou perfeitamente para nutrir a beleza da narrativa).

Dulce Maria deixa apenas uma interrogação: a identidade da pessoa assassinada pelo homem.

Mas o brilho da obra não está em deixar mistérios. O propósito da autora é arremeter o leitor diretamente ao mundo de seus personagens. E esta o faz com elevada maestria, dotada de sensibilidade apurada, Dulce Maria descortina o mundo de inquietações dos seres sob a ótica de seus personagens; a intimidade vista de muito perto. Uma leitura quase palpável.

Acompanhei absorto toda a beleza de cenários ordinários, deliberações despercebidas que nos acomete em circunstancias distintas. A autora aprofunda-se nesta ótica corriqueira do cotidiano sacolejado pelo acontecimento inusitado: o assassinato. Então narra de maneira precisa cada detalhe, cada incômodo sentido, a emersão de introspecções infundadas, na existência caótica e perdida, cujos atos são quase sempre incoerentes, improváveis, imprevisíveis e tolos. Mostra-nos sem pudor “um amor exagerado, quase uma doença” (como é replicado belamente no texto), que terminará de modo trágico. E então testemunhamos as consequências de afetos efervescidos por vidas desprovidas de discernimentos...

O cunho detalhista de Dulce Maria Cardoso é simplesmente genial. Ela coloca o leitor a refletir sobre as mais inexplicáveis sensações oriundas de sentimentos escapadiços, como o amor, que aqui não é retratado de forma romantizada, mas na precisa descrição do que este sentimento representa: a perda total do controle; suas erupções assustadoras, desencadeadas inesperadamente de vidas cheias de inseguranças, onde a derradeira realidade paira sobre nossas cabeças: a eminente possibilidade de nossa perda do senso...

O resultado desta hecatombe foi este livro magnífico! Uma obra singular de uma autora sensível e precisa. Talvez a melhor leitura que fiz neste ano, até agora.