Desumanização é o modus operandi aplicado a seres socialmente invisíveis, seja pela indiferença ou preconceito. No cenário capitalista universal o preconceito que gera invisibilidade se estende a tudo o que está fora dos padrões de vida das classes hierarquicamente superiores. Desumanizar é tornar um indivíduo menos humano, abreviar sua individualidade, os aspectos criativos e distintos de sua personalidade. Desumanizar é transformar o outro em coisa; é quando um indivíduo perde seu valor essencial e então passa a se identificar como “objeto”, algo de utilidade finalista, e somente isso, pois coisas não têm iniciativa própria e são totalmente dependentes da vontade dos outros para movê-los.
Exemplo histórico e difundido
desse conceito está no período da segunda guerra mundial, em que a Alemanha
nazista dispendeu enorme esforço em propaganda no sentido de desumanizar os
judeus. Tiveram relativo êxito em transformá-los em sub-raça, então receberam
carta branca da sociedade para exterminar milhares de vidas humanas...
Por que eu começo esta resenha
falando de desumanização?
Porque tudo isso que você
acabou de ler, serve como sinopse desse livro, pois é exatamente disso que a
obra trata. No caso de Queimada Viva, um importante e necessário
documento histórico, a desumanização cultural leva o nome de patriarcado, uma
praga que caiu e ainda cai sobre os ombros das mulheres de diversas regiões do
planeta; seres humanos que foram transformados em coisa, para que fosse validado
sua condição de escravizadas.
A história de Souad, narrada
por ela mesma, começa com descrições do seu cotidiano de condenada por ter
nascido mulher e, portanto, ter que viver numa comunidade sem nenhum direito,
nenhuma justiça, nenhum tipo de possibilidade de desenvolvimento minimamente
aceitável. Souad apenas sobrevive cada dia em que o patriarca de sua família a
submete a trabalho forçado, tortura ininterrupta e condições existenciais
precárias, enquanto ela sonha com a única possibilidade de anseio permitido à
uma mulher: se casar e talvez assim, poder trabalhar um pouco menos, apanhar um
pouco menos e subsistir um pouco mais. Mas ela sabe que não será dessa forma, e
o desejo emudecido de toda mulher nascida na mesma comunidade da Cisjordânia
que Souad nasceu, é casar com um homem cujo chicote arranque menos sangue que o
chicote do pai.
“Até onde meu cérebro é capaz
de lembrar, eu nunca soube o que é brincar ou ter prazer. Nascer menina na
minha aldeia é uma maldição. O único sonho possível de liberdade é o casamento”,
(página
10).
Souad nos revela sua vida de
infância sofrida até a adolescência em que começam os anseios de um casamento.
Mas naquela comunidade a regra é esperar até que as irmãs mais velhas se casem
primeiro. Enquanto espera, ela se encanta por um homem, eles se encontram
algumas vezes e o inferno se instaura na vida da jovem palestina. Uma mulher
naquela cidade não pode ter encontros com um homem antes do casamento, aliás,
não pode sequer olhar na direção de um homem. Souad engravida e é condenada por
algo asqueroso que por lá chamam de “crime de honra”.
O castigo é o título da obra.
A forma com que nos é
apresentado os momentos que antecedem o castigo até o momento em que Souad vai
parar num hospital, é tão verossímil que causa desconforto; a sutileza de
detalhes narrativos escancara a banalidade do mal com tamanho desalento, que eu
precisava fazer pausas na leitura, até que o ar retornasse aos meus pulmões
(fazia tempo que não encontrava um livro capaz de me causar tanta aflição). Milagrosamente
sobrevive, então a mãe de Souad vai visitá-la no hospital e o leitor pensa: “ela
só pode estar com o coração doendo por ver a própria filha completamente
queimada”. Doce ilusão que vou deixar para o leitor descobrir o que a mãe
foi fazer no hospital onde a filha se encontrava, após receber o castigo do
crime de honra...
Souad é uma rara sobrevivente
dessa cultura misógina e asquerosa, que de tão primitiva em costumes, se torna
difícil de ser assimilada por nossa cultura. Sobreviveu para nos contar não
somente sua história, mas a de milhares de mulheres que continuam lá... E
sinceramente, não sei mais o que escrever, só peço que leiam este livro. É
preciso que saibamos o quão variável e imenso pode ser a maldade humana!
O filósofo Sócrates disse que
“a ignorância é o único mal”.
Segundo essa ideia, quem faz o mal, só o faz porque não compreende que está a fazer, portanto, sua ignorância é o que o leva a maledicência. Mas a história de Souad faz com que essa hipótese caia por terra, pois a mensagem que esta necessária obra nos traz é que a verdadeira causa da maldade no mundo não está propriamente na ignorância, mas na falta de empatia.
NOTA: **10**