sábado, 28 de outubro de 2023

RESENHA DE LIVRO – QUEIMADA VIVA

Desumanização é o modus operandi aplicado a seres socialmente invisíveis, seja pela indiferença ou preconceito. No cenário capitalista universal o preconceito que gera invisibilidade se estende a tudo o que está fora dos padrões de vida das classes hierarquicamente superiores. Desumanizar é tornar um indivíduo menos humano, abreviar sua individualidade, os aspectos criativos e distintos de sua personalidade. Desumanizar é transformar o outro em coisa; é quando um indivíduo perde seu valor essencial e então passa a se identificar como “objeto”, algo de utilidade finalista, e somente isso, pois coisas não têm iniciativa própria e são totalmente dependentes da vontade dos outros para movê-los.

Exemplo histórico e difundido desse conceito está no período da segunda guerra mundial, em que a Alemanha nazista dispendeu enorme esforço em propaganda no sentido de desumanizar os judeus. Tiveram relativo êxito em transformá-los em sub-raça, então receberam carta branca da sociedade para exterminar milhares de vidas humanas...

Por que eu começo esta resenha falando de desumanização?

Porque tudo isso que você acabou de ler, serve como sinopse desse livro, pois é exatamente disso que a obra trata. No caso de Queimada Viva, um importante e necessário documento histórico, a desumanização cultural leva o nome de patriarcado, uma praga que caiu e ainda cai sobre os ombros das mulheres de diversas regiões do planeta; seres humanos que foram transformados em coisa, para que fosse validado sua condição de escravizadas.

A história de Souad, narrada por ela mesma, começa com descrições do seu cotidiano de condenada por ter nascido mulher e, portanto, ter que viver numa comunidade sem nenhum direito, nenhuma justiça, nenhum tipo de possibilidade de desenvolvimento minimamente aceitável. Souad apenas sobrevive cada dia em que o patriarca de sua família a submete a trabalho forçado, tortura ininterrupta e condições existenciais precárias, enquanto ela sonha com a única possibilidade de anseio permitido à uma mulher: se casar e talvez assim, poder trabalhar um pouco menos, apanhar um pouco menos e subsistir um pouco mais. Mas ela sabe que não será dessa forma, e o desejo emudecido de toda mulher nascida na mesma comunidade da Cisjordânia que Souad nasceu, é casar com um homem cujo chicote arranque menos sangue que o chicote do pai.

“Até onde meu cérebro é capaz de lembrar, eu nunca soube o que é brincar ou ter prazer. Nascer menina na minha aldeia é uma maldição. O único sonho possível de liberdade é o casamento”, (página 10).

Souad nos revela sua vida de infância sofrida até a adolescência em que começam os anseios de um casamento. Mas naquela comunidade a regra é esperar até que as irmãs mais velhas se casem primeiro. Enquanto espera, ela se encanta por um homem, eles se encontram algumas vezes e o inferno se instaura na vida da jovem palestina. Uma mulher naquela cidade não pode ter encontros com um homem antes do casamento, aliás, não pode sequer olhar na direção de um homem. Souad engravida e é condenada por algo asqueroso que por lá chamam de “crime de honra”.

O castigo é o título da obra.

A forma com que nos é apresentado os momentos que antecedem o castigo até o momento em que Souad vai parar num hospital, é tão verossímil que causa desconforto; a sutileza de detalhes narrativos escancara a banalidade do mal com tamanho desalento, que eu precisava fazer pausas na leitura, até que o ar retornasse aos meus pulmões (fazia tempo que não encontrava um livro capaz de me causar tanta aflição). Milagrosamente sobrevive, então a mãe de Souad vai visitá-la no hospital e o leitor pensa: “ela só pode estar com o coração doendo por ver a própria filha completamente queimada”. Doce ilusão que vou deixar para o leitor descobrir o que a mãe foi fazer no hospital onde a filha se encontrava, após receber o castigo do crime de honra...

Souad é uma rara sobrevivente dessa cultura misógina e asquerosa, que de tão primitiva em costumes, se torna difícil de ser assimilada por nossa cultura. Sobreviveu para nos contar não somente sua história, mas a de milhares de mulheres que continuam lá... E sinceramente, não sei mais o que escrever, só peço que leiam este livro. É preciso que saibamos o quão variável e imenso pode ser a maldade humana!

O filósofo Sócrates disse que “a ignorância é o único mal”.

Segundo essa ideia, quem faz o mal, só o faz porque não compreende que está a fazer, portanto, sua ignorância é o que o leva a maledicência. Mas a história de Souad faz com que essa hipótese caia por terra, pois a mensagem que esta necessária obra nos traz é que a verdadeira causa da maldade no mundo não está propriamente na ignorância, mas na falta de empatia.

NOTA: **10**

Nenhum comentário:

Postar um comentário