sábado, 30 de novembro de 2019

RESENHA DE LIVRO – O CORTIÇO


São as raras exceções que confirmam uma regra. Se o espaço de convivência é definidor (ou pelo menos influenciador) da moral, então eis que qualquer caso esporádico apenas demonstra o quanto a precariedade de um “cortiço”, em geral, comporta seres humanos inescrupulosos que por conta da escassez precisam lutar como selvagens por seu lugar ao sol.

O Cortiço é uma obra advinda da metade do século XIX que analisa o convívio humano de um modo, digamos, cientifico, quase empírico. Desse ponto de vista, o comportamento de suas personagens seria fruto do meio em que estes se encontram, advindos de uma exposição contundente que parece conferir à trama um escopo de denúncia das injustiças sociais daquele tempo.

A veracidade analítica expressada aqui poderia até ser compreendida como documento histórico ou sociológico, justamente por mostrar de maneira abrangente o surgimento da classe trabalhadora mais humilde.

A trama nos remete à João Romão logo no comecinho e parece seguir com esta personagem como principal. Mas de um ponto de vista alegórico a impressão é de que todos viventes narrados são apenas células da autêntica personagem: o próprio cortiço; jamais li um livro cujo título se encaixe tão adequadamente.

O fio narrativo permeia a ascensão social de João, típico indivíduo advindo do meio proletário e através do capitalismo inescrupuloso se torna rico. João é importante porque é o criador do cortiço; lugar que se torna laboratório de convivência para as mais distintas personalidades sociais. Contudo, o seguimento distancia-se de seu protagonista, proporcionando um olhar maior e mais amplo, possibilitando-nos o testemunho da vida no cortiço como um todo; a obra entende que João Romão tem sua função, mas sabe mesclar seu desenvolvimento juntamente com o do lugar que intitula a história.

O estilo linguístico de Aluísio Azevedo não é excessivo e nem minimalista, narra na dose certa lugares, aspectos, sentimentos. Trata de modo equilibrado seus protagonistas e por essa razão considerei o cortiço como sendo a personagem essencial; todos os envolvidos na trama têm seu nível de importância e o autor não perde ninguém pelo caminho. A harmonia narrativa estabelecida aqui é simplesmente genial.

O Cortiço demora um pouco pra funcionar; requer um tanto de perseverança do leitor, principalmente nos primeiros capítulos nos quais são jogadas quase todas as personagens de uma só vez. Mas com paciência na leitura o livro logo te prende e não larga mais.

A edição que li foi reformulada pela editora Ediouros e o resultado agrada bastante; a linguagem foi revigorada, mas sem deixar que se percam os aspectos vocábulos daquele tempo, isso ajuda a tornar a leitura acessível sem comprometer sua essência.

O Cortiço é outro belo volume de nossa literatura que talvez tenha sido usado de forma errada por nossa pedagogia, pois a ação de obrigar alunos a lerem obras como essa, muitas vezes pode produzir o efeito contrário do esperado: fazer com que o jovem se afaste de nossa riquíssima literatura. Autores como Aluísio Azevedo, Machado de Assis, Clarice Lispector, não devem ser limitados apenas ao escopo didático, mas acima de tudo, a proximidade com o que há de melhor na literatura desses gênios: o vislumbre inebriante de sua riqueza narrativa.

NOTA: 8,3

sábado, 2 de novembro de 2019

RESENHA DE LIVRO – MOINHOS DE VENTO


Quando se fala em George Orwell, dois trabalhos deste monstro da literatura preenchem a mente do interlocutor: 1984 e A Revolução dos Bichos. E obviamente também são estes dois clássicos do cara que eu carrego como meta de leituras futuras. Contudo, foi vasculhando acervos de usados pela internet que encontrei este então bem mais modesto MOINHOS DE VENTO, que por conta da casualidade acabou sendo minha primeira incursão no universo literário de Orwell.

Minha leitura de MOINHOS DE VENTO remeteu-me, de imediato, a aspectos os quais já haviam me alertado sobre o estilo do autor: a contradição do ser humano, o apontamento para o sistema opressor capitalista, e talvez um dedo na ferida sociológica de seu tempo.

A trama conta a história de Gordon Comstock, caricato cidadão inglês de infância pobre, cujo pavor ao sistema capitalista moedor de carne humana lhe remete a paranoias prejudiciais para sua subsistência e o enterra, cada vez mais, no fundo do poço. Gordon veste sua aversão ao regime econômico vigente até a fase adulta, situação que torna quase nula suas perspectivas existenciais.

Perceba que esta breve sinopse já denota o tipo de literatura que o leitor ira se deparar. Pois eis que durante a leitura, outros elementos da narrativa de George Orwell permeiam o tempo inteiro, algumas delas com um sutil teor de protesto. A que mais me chamou a atenção foi precisamente a hipocrisia do ser humano, incutida na personalidade da personagem principal.

Gordon é um homem aparentemente bem instruído, dotado de sagacidade peculiar ao analisar a sociedade que o rodeia, assim como também aspira ao universo da poesia. No entanto, quando prega seu repúdio ao dinheiro, Gordon mais se parece com um sofista, pois se imbui de discurso irreprovável, mas na prática carece o tempo inteiro de recursos econômicos para sustentar suas obvias necessidades; ele quer parecer desprendido da ganância substancial e até classifica o dinheiro como uma espécie de Deus escravocrata. Mas mesmo dentro de uma realidade quase que de mendicância, Gordon segue recusando possibilidades de crescimento econômico, ao mesmo tempo em que vive sugando os escassos recursos de sua irmã.

É uma assertiva narrativa da corrupção dos ideais que o autor tão bem nos entrega. Orwell não se priva de mostrar a frustração e revolta de seu protagonista em pé de igualdade com o comportamento discrepante que reconhece e até aceita as regras consumistas.

Eu diria que um probleminha a ser mencionado é o final, que considerei previsível e me deixou com a sensação de esgotamento, como se tudo o que havia para ser dito aconteceu, deixando a conclusão sem grande acabamento. Mas creio que isso não chegou a incomodar muito.

MOINHOS DE VENTO (até agora não entendi o título em português) é obra de um dos maiores romancistas do século XX. E embora eu ainda não tenha lido seus trabalhos mais notórios, foi evidente verificar seu domínio narrativo. Espero ler mais de Orwell, cujo método literário contribui para iluminar nossas mentes escuras no que concerne a complexidade humana.

NOTA: 7,7