São as raras exceções que
confirmam uma regra. Se o espaço de convivência é definidor (ou pelo menos
influenciador) da moral, então eis que qualquer caso esporádico apenas
demonstra o quanto a precariedade de um “cortiço”, em geral, comporta seres
humanos inescrupulosos que por conta da escassez precisam lutar como selvagens
por seu lugar ao sol.
O
Cortiço é uma obra advinda da metade do século XIX que analisa o
convívio humano de um modo, digamos, cientifico, quase empírico. Desse ponto de
vista, o comportamento de suas personagens seria fruto do meio em que estes se
encontram, advindos de uma exposição contundente que parece conferir à trama um
escopo de denúncia das injustiças sociais daquele tempo.
A veracidade analítica
expressada aqui poderia até ser compreendida como documento histórico ou
sociológico, justamente por mostrar de maneira abrangente o surgimento da
classe trabalhadora mais humilde.
A trama nos remete à João
Romão logo no comecinho e parece seguir com esta personagem como principal. Mas
de um ponto de vista alegórico a impressão é de que todos viventes narrados são
apenas células da autêntica personagem: o próprio cortiço; jamais li um livro
cujo título se encaixe tão adequadamente.
O fio narrativo permeia a
ascensão social de João, típico indivíduo advindo do meio proletário e através
do capitalismo inescrupuloso se torna rico. João é importante porque é o
criador do cortiço; lugar que se torna laboratório de convivência para as mais
distintas personalidades sociais. Contudo, o seguimento distancia-se de seu
protagonista, proporcionando um olhar maior e mais amplo, possibilitando-nos o
testemunho da vida no cortiço como um todo; a obra entende que João Romão tem
sua função, mas sabe mesclar seu desenvolvimento juntamente com o do lugar que
intitula a história.
O estilo linguístico de Aluísio Azevedo não é excessivo e nem
minimalista, narra na dose certa lugares, aspectos, sentimentos. Trata de modo
equilibrado seus protagonistas e por essa razão considerei o cortiço como sendo
a personagem essencial; todos os envolvidos na trama têm seu nível de
importância e o autor não perde ninguém pelo caminho. A harmonia narrativa
estabelecida aqui é simplesmente genial.
O
Cortiço demora um pouco pra funcionar; requer um tanto de
perseverança do leitor, principalmente nos primeiros capítulos nos quais são
jogadas quase todas as personagens de uma só vez. Mas com paciência na leitura
o livro logo te prende e não larga mais.
A edição que li foi
reformulada pela editora Ediouros e
o resultado agrada bastante; a linguagem foi revigorada, mas sem deixar que se
percam os aspectos vocábulos daquele tempo, isso ajuda a tornar a leitura
acessível sem comprometer sua essência.
O Cortiço é outro belo volume de nossa literatura que
talvez tenha sido usado de forma errada por nossa pedagogia, pois a ação de
obrigar alunos a lerem obras como essa, muitas vezes pode produzir o efeito
contrário do esperado: fazer com que o jovem se afaste de nossa riquíssima literatura.
Autores como Aluísio Azevedo, Machado de Assis, Clarice Lispector, não devem
ser limitados apenas ao escopo didático, mas acima de tudo, a proximidade com o
que há de melhor na literatura desses gênios: o vislumbre inebriante de sua
riqueza narrativa.
NOTA: 8,3
NOTA: 8,3