segunda-feira, 20 de março de 2023

RESENHA DE LIVRO – O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO

O filósofo grego Aristóteles fazia uma distinção que acreditava ser fundamental entre o trabalho do historiador e do poeta. Segundo sua análise, o historiador precisa amparar sua obra pelo compromisso com a verdade, enquanto que o poeta não carecia de nenhum tipo de conformidade com fatos. Contudo, sabendo que historiadores são seres humanos e, portanto, suscetíveis de parcialidade opinativa, fica meio evidente que há alguma relação entre esses dois gêneros, pois talvez seja inevitável criar uma obra histórica sem alguma lacuna imaginária, assim como a ficção bebe na fonte da história com frequência.

A trajetória da família mais conhecida do mundo, sagrada para muitos, foi contada aqui pelo mestre José Saramago, dentro desta já mencionada promiscuidade de gêneros, precisamente para nos entregar um excelente trabalho ficcional. Tal observação precisa ser enfatizada, pois toda a polêmica que este O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO causou, e continua a causar até hoje, é justamente pela falta de sensibilidade crítica de se encarar a obra como deve ser: uma ficção que faz uso de elementos e personagens históricos.

Aqui não será necessário fazer uma sinopse, tendo em mente que a vida e obra de Jesus é imensamente conhecida até por quem não é religioso. Mais proveitoso será fazermos um breve resumo do percurso das personagens, sob o olhar humanista do autor, que para quem não sabe, vale ressaltar que Saramago era ateu.

A trama começa com uma inversão cronológica, então acompanhamos um capítulo introdutório que narra a dramática crucificação, com uma minuciosidade nos detalhes capaz de já prender o leitor. É um preâmbulo fabuloso, riquíssimo e encorpado, a ponto de nos fazer vislumbrar os instantes finais de Cristo; talvez o prefácio mais extraordinário que já li. Então, na interação de Jesus e os dois ladrões crucificados com ele, o autor introduz a versão humana de sua personagem, cujo aspecto mais notório é a imperfeição: “... este que ainda agora louvou o bom ladrão e desprezou o mau, por não compreender que não há nenhuma diferença entre um e outro, ou, se diferença há, não é essa, pois o bem e o mal não existem em si mesmo, cada um deles é somente a ausência do outro”.

Em seguida, tem-se início o livro e somos apresentados à José e Maria, casados, a convivência das famílias naquele tempo, as dificuldades e escassez dos pobres, o patriarcalismo inerente daquela comunidade, a inferioridade conformada das mulheres... O narrador vai mirar em José por um tempo, até chegarmos ao nascimento de Jesus e o triste e inesperado fim de seu pai terreno.

Em Jesus, aqui vemos períodos em que a bíblia não mostra ou não se interessa: a infância e adolescência. E eis que um jovem Jesus parte em peregrinação para desvendar os tormentos que aparentemente herdou do pai, o que o faz viver as experiências necessárias para o moldá-lo como o escolhido de Deus. Nessa aventura, confronta-se com os doutores do templo, conhece um ser intitulado Pastor que o instrui e o instiga a reflexão, apaixona-se por uma mulher que se torna sua companheira, encontra-se com Deus para embates subjetivos, assume o protagonismo como pastor de homens e aceita assim seu destino...

A obra impressiona não apenas no aspecto imersivo, mas também na riqueza de detalhes do cotidiano daquele tempo. Certamente José Saramago dedicou intensos estudos sobre história daquela região e fez uso disso para requintar sua trama. É como se cada frase, cada instante narrado, houvesse minuciosa preocupação com os detalhes da vida na época.

O estilo narrativo é amplamente sedutor, busca incluir o leitor em suas divagações por vários instantes, faz comparações situacionais do tempo relatado com momentos mais recentes da história; Saramago provoca o leitor a fazer pausas para pensar. É como se o narrador estivesse tentando provar para o leitor a verossimilhança de seu relato.

O título da obra pode muito bem ser parte do estilo irônico característico de José Saramago. Afinal, se levarmos em conta os quatro evangelhos canônicos reunidos na bíblia, a condução humanista do autor possui a pretensão de chamar a atenção do leitor para preocupações com grupos excluídos. A ironia incutida por Saramago visa à reflexão sobre ideologias impostas.

A palavra evangelho tem sua origem no grego, que significa “boa nova”. Desse ponto de vista etimológico, a boa nova nesta versão de Saramago do evangelho de Cristo, é a benevolência. O aspecto divino de Jesus aqui é deixado de lado, para ser apresentado ao leitor um homem, nascido como todos os outros, cheio de inconstâncias, dúvidas e culpa; um homem que faz sua travessia existencial de forma hesitosa, mas que por meio das experiências acaba por adquirir senso ético e moral. Em determinado momento, como nos é sabido, a divindade vem ao encontro de Jesus, e então esta personagem humanizada confronta a evidente tirania de Deus sobre os homens, o que em minha opinião foi o ponto mais elevado de toda a trama. Semelhante aos deuses gregos que na literatura tratam os homens como se fossem suas marionetes, aqui a deidade se mostra autoritária, vaidosa e, por isso, é questionada por Jesus, mesmo que este siga com o cumprimento de seu destino de morrer na cruz, como o cervo que se abate em sacrifício. Saramago chega a inverter a fala de Cristo, quando na iminência da morte, olha para o céu e diz: “homens, perdoai-lhe, porque ele não sabe o que fez”.

O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO é literatura de ficção, impecavelmente desenvolvida para desassossegar. Um romance que se refere a fatos históricos sem querer apresenta-los como verdades, mas que inevitavelmente insere na mente do leitor o desejo de que assim talvez houvesse ocorrido. Um livro que vai além da banal discussão sobre ficção ou fato; este é um precioso volume clássico da literatura que não fala apenas sobre a vida de Jesus, mas acima de tudo, sobre a vida de todos nós seres humanos...

NOTA: **10**