domingo, 27 de março de 2022

CONTO - ESTÍMULO

O brilho do metal era hipnótico e persuasivo. A coisa repousava no colo em sono pesado, inofensivo, como se fosse um escorpião sem cauda. Excessivamente alheio, o objeto teve que ser erguido até a cabeça, precisamente um pouco acima da têmpora... Pois tinha que soar perigoso! O cano era quase tão frio quanto o portador daqueles dedos hesitantes; o indicador acariciava levemente o gatilho.

Mas nada acontecia. Nem botes ou picadas..., nenhum disparo.

Faltava algo para o grande momento. Seria estímulo? Então, era o excesso de fraqueza ou ausência de coragem? O objeto pernicioso era devolvido ao colo, enquanto a consciência revirava-se em opiniões, impressões, motivações, contradições.

Era sempre o mesmo cenário: a privacidade do quarto, sentado na cama, próximo da janela, e ficava ali, ouvindo World of Glass, do Tristânia, aguardando a coragem escondida em algum canto dentro de si.

O ato se repetia quase que diariamente. Perdurava até o instante em que se cansava de medir a própria covardia, ou quando se acabavam os argumentos em favor do feito. Então, o objeto adormecido retornava para a gaveta de cabeceira, a música era desligada e o jovem aspirante da finitude, deitava na cama, desligava a luz e tentava dormir.

No entanto, naquela ocasião aconteceu algo inusitado: um expectador surgiu na janela do quarto. Era um homem de meia idade, pele clara, o rosto fino, quase afeminado. Tinha cabelos negros, compridos e lisos, na altura do queixo. Ele fitou o rapaz com curiosidade, como quem admira uma obra de arte indecifrável.

O outro ainda não havia concluído com os rituais, o revolver ainda pairava em seu colo e a música abundava o ambiente. Deparou-se com o sorriso simpático do estranho na janela, que apesar de brando, fora incapaz de impedir o enorme susto.

Mas após algum tempo, aquele sorriso mudou para algo menos inofensivo. De perto parecia travesso e presunçoso.

– Por que você não puxa de uma vez esse gatilho e acaba com isso?

A possibilidade de um instante de insanidade pairou sobre a mente do suicida. Duvidou da existência daquele sujeito na janela. Talvez fosse fruto de sua imaginação, a mente exausta costuma criar cenários por vontade própria, deixando-nos confusos e receosos.

O estranho na janela sustentava o mesmo sorriso e logo notou que não haveria nenhuma resposta, sequer alguma afronta ante sua atrevida presença, sua intimidante pergunta.

– Imagino que lhe falta destreza.

Se é apenas um arquétipo da imaginação, não custa dialogar. O rapaz pausou a música e encarou o sorridente visitante.

– E quem é você? O que quer?

Mesmo demonstrando confiança, os lábios do estranho foram recuando até esconder totalmente os dentes impecavelmente brancos. Disse:

– Sabe, Xavier, eu estive pensando: se a coragem fosse a maior virtude do ser humano, talvez ele próprio já houvesse se dizimado.

O sujeito falava com calma, numa tonalidade quase doce. Parecia um bom homem, tinha um rosto honesto e sereno.

– O que está fazendo na minha janela? E como sabe o meu nome?

O homem fitava o interior do quarto, como se pouco importassem as dúvidas do outro. Parecia mais interessado na bagunça que era abundante no recinto. O típico habitat de um depressivo ou apenas sinal de desleixo?

– Você se chama Xavier de Oliveira – disse o visitante – tem trinta e dois anos, trabalha em um escritório de contabilidade, acredita que essa música será tocada no seu funeral e você sustenta uma inexplicável ânsia por verificar o que acontecerá depois que disparar essa arma virgem contra a própria cabeça..., já parou pra pensar que talvez não aconteça nada?

– Como sabe disso?

– Não disse que sei. Perguntei se você nunca se questionou sobre o nada. Talvez não exista coisa alguma e a morte seja o ponto final.

– Perguntei como sabe tudo isso sobre mim.

– Ah, sobre você... – ele achou graça – Não é o mais misterioso dos homens, não é muito difícil fazer uma leitura de sua vida, caro Xavier.

– Você não fez nenhuma leitura... Foi específico. Como sabe todas essas coisas da minha vida?

Intrigado, Xavier esqueceu do revólver no colo. Que merda de sujeito era aquele na janela? A hipótese de insanidade parecia cada vez mais sedutora.

– O que você gostaria de frasear em sua lápide? – quis saber o estranho.

– Que porcaria de pergunta é essa?

– Então você não planejou nada? Quer tirar a vida sem antes fazer os devidos preparativos? Onde está a carta?

– Carta? – Xavier não conseguia organizar a situação na mente – Do que você está falando?

– Todo suicida deixa uma carta para que as pessoas conheçam suas razões. Alguns mais vaidosos deixam orientações de como as coisas devem ser feitas... – ele olhou para o teto, imersivo – Mas talvez isso seja bobagem. Afinal, ninguém dá a mínima e raramente os caprichos de um suicida egocêntrico são acatados pelas pessoas. Mas eu não posso dizer essas coisas para alguém com uma arma no colo, soaria incentivador.

– Você já as disse.

– É verdade..., peço desculpas.

Estava muito tarde, passava da meia noite, e o homem misterioso aparentava ter todo o tempo do mundo. Xavier buscava entender de modo racional, então resolveu adotar medidas mais drásticas:

– Quer saber de uma coisa, parceiro. Acho que não quero mais atirar na minha cabeça. Eu tô começando a sentir vontade de meter uma bala é nessa sua cara escrota.

– Depois que morrer, que falta você fará, Xavier?

– Não te interessa! – ele apontou a arma na direção do outro – Vaza da minha janela, mano!

– Por que você não experimenta apertar o gatilho, Xavier? Pode ser que após o feito, sua ansiada coragem demore muito e você passe o resto dos seus dias trancafiado numa cela, impossibilitando a execução de seu ilustre desejo... – ele sorriu novamente – Sabe qual é a maior perda que as pessoas sofrem quando vão pra cadeia?

Xavier fitava o estranho diretamente. O revólver rígido apontado na direção dele, embora não houvesse nenhuma intenção pelo disparo. Ele logo soube que não seria dessa forma que o intimidaria.

– As pessoas perdem a autonomia... – respondeu o estranho na janela – E autonomia é o elemento chave do suicida.

A tranquilidade com que falava causava desconforto. Qualquer ser humano em sã consciência ficaria apavorado com um revólver apontado para a cabeça, principalmente se o sujeito não fosse um suicida em potencial, como Xavier pensava ser. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, o estranho voltou a falar, ainda com a mesma calma:

– Sabia que o elefante é a única espécie que venera seus mortos?

Silêncio. Xavier baixou o braço, mas manteve-se encarado no estranho. Era um instante quase surreal.

– Eles interrompem a jornada e dedicam alguns minutos de reverência ao esqueleto de outro de sua espécie, quando encontrado no caminho – o sujeito pareceu impressionado com a própria informação que dava – Até mesmo acariciam os ossos..., não é incrível?

– E o ser humano? – apesar do desconforto, Xavier perguntou, como se fosse inevitável.

– O que tem o ser humano?

– O ser humano também homenageia seus mortos.

– Chama isso que vocês fazem de homenagem? – enfim, houve uma gargalhada. Era estranha, desafinada e pareciam múltiplas tonalidades ao mesmo tempo – O rito funeral existe porque o ser humano teme a morte e anseia pela vida eterna. Enterram seus mortos em caixas porque sabem que ele entrará em putrefação rapidamente. E preferem contaminar os lençóis freáticos do que a superfície da terra... Os humanos são todos uns covardes! Eles fogem da morte, acredite no que digo.

O revólver era um calibre trinta e oito, prateado. Comprado novo, jamais havia sido usado. Nem para testar. Xavier olhou para o objeto e então aquilo pareceu algo equivocado. Não sabia mais o significado daquela coisa ou sua funcionalidade.

O estranho na janela parou de rir, lentamente. Enxugou uma lágrima nos olhos, satisfeito. Parecia enternecido com o inesperado encontro.

– O que você quer aqui? – perguntou Xavier, não mais conseguindo esconder o desconforto.

– Quero ver você se matar.

A simplicidade da resposta foi tamanha que soou asquerosa.

– Eu não vou fazer isso..., hoje não.

– Achei que não fosse mesmo – comentou o estranho, o olhar passeou uma vez mais pelo interior do quarto, mas reencontrou o inseguro Xavier, sentado na cama – Você não vai se matar porque não é depressivo, tampouco está doente; não tem uma vida trágica ou mesmo sofreu algum trauma... Não se matará porque sabe que o desconhecido não é uma opção de escolha como fuga desse seu tédio. E embora cada segundo vivido pelos humanos seja um instante inédito, é condição imutável e, portanto, aceita sem questionamento. Mas deliberar por uma possibilidade improvável, como estourar os próprios miolos só pra ver o que acontece depois, seria científico demais até para alguém com inclinações suicidas.

– Tenho coragem de me matar, ok!

– Coragem não é necessário para tal. A falta dela estimula muito mais.

– Por que você não me deixa em paz?

– Quer dizer, na paz de um cadáver? – outra risada – Não farei isso por você. Terá que apertar o gatilho sozinho.

– Vá embora!

– Que tal uma bebida? O álcool pode ajudar a aliviar a tensão.

Desesperadamente, Xavier gritou para que o estranho se calasse, ao mesmo tempo em que voltou a erguer o revólver e, freneticamente, apertou o gatilho sucessivas vezes contra a janela. A inexperiência ou o nervosismo fez com que fechasse os olhos. O barulho dos disparos foi mais perturbador do que imaginava.

Então houve silêncio.

Cheiro de pólvora invadia as narinas, enquanto ele soltava a arma sobre o colchão, como se o próprio objeto o houvesse obrigado a efetuar os disparos. Xavier levantou-se e foi até a janela. Inclinou-se para ver o cadáver de seu desafeto. Porém, não encontrou nada, nem ninguém do lado de fora. Onde deveria haver um corpo perfurado, completamente chamuscado de rubro, havia apenas o quintal vazio e ordinário. O chão estava limpo e imaculado. Nenhum sinal de morte.

Teria sido, de fato, a imaginação de Xavier, que ultrapassara o limite da sanidade, elaborando um diálogo quase palpável com o inexistente? Ou seria fruto de um louco que, ao notar a intenção real dos disparos, correu afoito, tão ligeiro que não foi alvejado? Seria o ocorrido fruto do sobrenatural, cuja manifestação maligna se fez na janela, intencionada em fomentar a perda de mais uma vida? Ou seria um anjo de Deus, que com aquela conversa contraditória, evitou que Xavier disparasse contra a própria cabeça?

Era difícil saber.

Então o amedrontado rapaz fechou a janela com o trinco. Desligou o interruptor e deitou na cama. Sentiu o desconforto por ter se deitado sobre o revólver. Xavier o retirou debaixo de si..., ainda estava quente e cheirava a pólvora. Alucinação ou não, ele finalmente havia criado coragem de apertar o gatilho..., e não sabia se isso era uma evolução boa ou ruim.

***

(Conto Publicado no Recanto das Letras, no ano de 2011)

Nenhum comentário:

Postar um comentário