segunda-feira, 19 de outubro de 2020

RESENHA DE LIVRO – DEPRESSÕES


Existem certos livros cujo conteúdo pode suscitar mal-estar e, por essa razão, talvez não devam ser lidos por leitores que atravessam fases difíceis de suas vidas. A depressão do título dessa obra não remete propriamente à doença psiquiátrica (ou não apenas a ela), mas ao clima de constante opressão. E o desconforto paira constante através das páginas dessa compilação de contos da vencedora do Nobel de Literatura Herta Muller.

A escritora nascida na Romênia vivia numa pequena comunidade rural em que predominava a cultura alemã que era alvo de perseguição do regime comunista que dominava o país. Provavelmente é desse cenário de escassez extrema que surge a inspiração para a prosa franca e eloquente de Muller.

DEPRESSÕES é uma reunião de contos insalubres por excelência. A essência narrativa desse livro percorre por ambientes impregnados de imundices das mais variadas espécies, desde a sujeira física até a psicológica. O olhar das personagens denota com clareza os limites de sua realidade, a precariedade que quase sempre evolui para cenários trágicos de violência... Violência de todos para com todos, entre categorias sociais distintas e que permeiam o cotidiano, compondo a dramaticidade coletiva do cenário.

O livro divide-se em quinze contos, porém o texto que fornece seu título ocupa mais da metade do volume e é aqui o lugar onde encontramos a sutil constituição literária da tragédia humana que faz de Herta uma escritora notável. Sugiro que o leitor faça sua incursão com calma, para que não se perca nenhum detalhe da sordidez social explicitada aqui.

A personagem narradora transfere sua insuficiência para fora das páginas com tamanha eloquência, deixando na leitura uma sensação de desesperança constante. Qualquer escapismo do caos parece mero fingimento, como se a ruina fosse uma máxima inevitável para humanos inseridos naquele ambiente. O cenário rural precário, cujo clima opressivo em que a protagonista está inserida é quase palpável e, justamente por isso, desperta certa solidariedade no leitor. A menina não vive, mas, apenas sobrevive neste lugar de aviltamento da dignidade.

O olhar em primeira pessoa torna o conteúdo ainda mais enervante. Sem nenhuma análise sofisticada sobre tragédias resultantes dos regimes ditatoriais, aqui é somente o universo dos desassistidos a conjuntura que viabiliza o desconforto no leitor. É a maravilhosa mágica da arte literária de inserir-nos no terror existencial para nos fazer sentir exatamente as mesmas agonias que as pessoas que nele estão inseridas.

Alguns críticos dizem que este escopo caótico de Herta Muller possui particularidades semelhantes às de Samuel Beckett, porém, o escritor irlandês ainda não conseguiu me atar em sua literatura de modo tão irreparável quanto o fez Muller.

Além de Depressões, os demais contos são curtos e alguns mantém o mesmo aroma pútrido. Muitos parecem breves trechos retirados de algo maior, o que pode causar alguma confusão em leitores que apreciam objetividade linguística. Depressões é, de longe, o conto que sobressai os demais e aponta o lirismo estético que deu a autora o Nobel de literatura em 2009. E precisamente por ser este conto tão extraordinário que acabou ofuscando os demais.

DEPRESSÕES é um livro para se ler com sobriedade, imparcialidade e, acima de tudo, coragem. Um eco incômodo da tragédia humana que parece espreitar em algum canto, à espera do momento certo de nos dar o bote. Em tempos de extremismos aparentemente superados e que parecem ressurgir sutilmente em sociedades mundo afora, a literatura de Herta nos soa cada vez mais atual.

NOTA: 8

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