sábado, 31 de dezembro de 2016

CONTO - O CAMELO ALEIJADO


A fila era pequena, desorganizada e ruidosa. Sorridentes, seus integrantes alinhados de forma tumultuada, falavam muito e riam alto. Em comum, todos seguravam um livro de capa muito colorida, onde um animal quadrúpede e sorridente se esbaldava numa lagoa cristalina, cercada de verde natureza.

Não muito longe dali, uma mãe resoluta entregava ao filho o mesmo livro, satisfeita por conseguir compra-lo no dia de sua aguardada estreia. O pequeno menino apertou o objeto contra o peito e, em seguida, agradeceu a mãe com um estalado beijo no rosto.

Após o ato obsequioso, ela segurou na mão do menino e, juntos, caminharam felizes em direção à fila, cada vez maior e mais barulhenta.

– Mamãe, o que vamos fazer agora? – perguntou o menino, ao ver a mãe tomar o último lugar da fila – a senhora já não pagou?

– Vamos pedir ao autor para autografar.

– Ah, tá... – respondeu ele, sem entender o significado da palavra “autografar”, mas ele logo deixou esse assunto de lado, encantado demais que estava com as gravuras do despojado animal a encher as páginas da história.

O homem na frente se virou sem direção específica e notou aquela mãe com o filho. Sorriu simpaticamente; ambos haviam adquirido o mesmo presente aos seus rebentos e se encontravam na fila, em plena conformidade sobre a importância de se consagrar aquela bela obra infantil.

– Mãe, o nome do camelo é Calombo – o menino puxou a barra da saia da mãe para mostrar a novidade que havia descoberto, já no início da leitura.

– Isso não é um camelo, querido... É um dromedário.

– É um camelo sim, mãe. Olha aqui a montanha nas costas dele.

– Mas só tem uma montanha em suas costas, por isso é um dromedário – ela apontou com o dedo para uma das figuras, onde era possível ter um ângulo privilegiado da corcova do animal – Tá vendo só?

– É um camelo, mãe!

– Dromedário... Se fosse um camelo teria duas montanhas nas costas.

– Então eu não sei mais que bicho é esse, ora...

A mãe ignorou o inconformismo do filho. Logo, logo, ele aceitaria a existência de um dromedário na sua nova historinha. E talvez até se encantasse com a novidade e passaria a ensinar aos seus coleguinhas a verdadeira espécie protagonista do livro.

A fila avançava lentamente. E o filho voltou a interromper a leitura, pois ainda surgia em sua cachola questionadora, dúvidas que colocavam à prova os argumentos incontestáveis que recebera de sua genitora:

– Mamãe, eu estive pensando... E se ele for um camelo aleijado?

– Como assim, querido?

– Ué, faltando um pedaço. Que nem o nosso vizinho que tem uma perna só. Eu acho que esse é um camelo que só tem uma montanha nas costas.

– Isso é um dromedário, menino! – a mãe sentiu que era preciso dar ênfase em sua resposta, para eliminar as dúvidas do filho; a rispidez no tom de voz para censurar as incertezas.

Certamente o filho devia compreender a historinha do livro como sendo menos cativante tendo como protagonista um bicho detentor de nome tão estranho. Um camelo aleijado seria bem mais agradável, do que um ser cuja denominação “dromedário” soava estranha, comprida e dura de pronunciar. Ele fechou o livro, emburrado, e isso fez com que notasse, pela primeira vez, o desconforto de uma fila que pouco avançava.

– Vai demorar muito, mamãe? Eu tô cansado.

– Estamos quase lá, meu bem.

De fato, já estavam próximos. O menino até podia enxergar o que se passava na base da fila: havia um homem por trás de uma mesa. Era gordo, de barba cheia, com ar sério e pedante, perguntando o nome de cada um dos presentes. Em seguida, ele abria o livro do camelo/dromedário e fazia rabiscos grotescos com uma caneta sofisticada.

– Mãe, o que aquele homem tá fazendo?

– Já disse que ele está autografando.

– Mas ele tá rabiscando o livro das pessoas!

– Ele é o autor, meu filho. Está fazendo a dedicatória.

Assustado, o menino olhou para os rabiscos incompreensíveis no livro de uma das pessoas. Eram borrões feios, tortos e que enfestavam uma página inteira que ladeava o prefácio. O menino ainda não compreendia qual era a importância daquele ato, mas teve a certeza de uma coisa:

– Mãe, vamos embora!

– Espera! Já está quase na nossa vez.

– Mas mãe, eu não quero que esse homem rabisque o meu livro! – ele começou puxar a saia da mãe, numa tentativa de retirá-la da perigosa fila – Eu não quero!

– Para de escândalo, menino!

– Ele não vai otrogafar o meu livro!

– Me dá esse livro! – instintivamente, a mãe tentou arrancá-lo das mãos do menino – Não me faça vergonha, vamos!

– Eu não quero otrogafo!

Os dois começaram uma disputa acirrada pelo livrinho, cada um puxando de um lado. Mas ao notar que as pessoas começavam a demonstrar constrangimento em relação à cena, a mãe desistiu e soltou. Então o menino escapou, indo se afugentar no meio das prateleiras da loja.

Desconfortável, a mãe se virou e viu que já se encontrava diante do escritor, a lhe aguardar com a caneta sofisticada em prontidão. Ele emitiu um breve sorriso por trás de sua barba robusta.

– Á quem devo dedicar a obra? – perguntou ele, enquanto seus olhos percorriam toda a dimensão estrutural da mulher, procurando por algum livro para autografar.

– Desculpa, mas o meu filho fugiu com ele na mão – ela tentou devolver o sorriso, mas desajeitada, mal conseguiu mover os lábios – Ele disse que não quer o seu autógrafo.

– Tudo bem... Vá falar com ele e depois volte.

– Certo, obrigada... – com o rosto corado, a mãe já estava se afastando, quando resolveu parar e fazer meia-volta – Com licença moço, mas eu posso te fazer uma perguntinha?

– Claro que você pode. – respondeu o escritor, solícito.

– O personagem principal do seu livro é um dromedário, não é mesmo?

Os dentes do autor surgiram todos, por detrás dos escurecidos pelos de sua face rechonchuda.

– Não é não, moça... Na verdade, o bicho da história é um camelo que nasceu diferente dos outros; é um camelo aleijado.

Um comentário: