No livro VII de A República de Platão,
encontra-se o mito da caverna, talvez a alegoria mais conhecida e esmiuçada do
filósofo grego, cujo relato narra pessoas que vivem aprisionadas numa caverna,
onde as sombras que se projetam do lado externo é tudo o que eles reconhecem e identificam
como mundo. Quando um dos presos consegue fugir, descobre que do lado de fora
da caverna existe um lugar imenso e infinitamente abundante, jamais imaginado.
Então ele retorna para a caverna para convencer os outros prisioneiros a sair
da restrita condição de clausura, mas eis que acaba sendo morto pelos próprios
presos, que o consideram um agitador e mentiroso.
Sobre essa alegoria, as perguntas que sempre
inspiraram pensadores ao longo da história do pensamento é: afinal, quem é que
controla as sombras que se projetam nas paredes da caverna? Quem confinou seus
prisioneiros de tal forma imutável e definitiva? Qual é o intuito disso? Quem
se beneficia com essa noção de inexistência do lado externo?
O escritor português José Saramago,
fazendo uso desse romance, cujo título faz referência ao mito de Platão,
oferece-nos uma reflexão sobre tais perguntas, dentro de um mundo pós moderno
que é bem diferente da antiga sociedade grega, mas que segue o modelo de
subordinação do mito da caverna, talvez de forma mais sutil.
Na distopia de Saramago, acompanhamos
Cipriano Algor, que vive com a filha e o genro numa humilde olaria, onde o
sustento é retirado do barro que usa para fabricar artesanatos, os quais vende
para uma megaestrutura moderna denominada Centro; uma espécie de
shopping-condomínio, onde grande parte da sociedade vive confinada.
Apesar da vida difícil de muito labor,
Cipriano é o arquétipo do artesão comum, que ganha a vida com o próprio esforço
e, portanto, encontra nessa existência algum significado; ele representa o
oposto do que seria uma vida pautada pelas condições capitalistas de
subsistência oferecidas pelo imponente e irrecusável Centro, lugar onde as
pessoas vivem pautadas pelo consumo e artificialidade. É neste cenário que pairam
as críticas contundentes de Saramago sobre a forma de vida da sociedade
moderna, na qual a uniformidade é imposta no coletivo, de modo a massacrar
impiedosamente aqueles que se recusarem a aderir seu modo de vida.
A noção de desvalia do artesão Cipriano
fica evidente quando seu maior e talvez único cliente, o Centro, comunica-o de
que não comprarão mais seus artesanatos, porque os clientes consideram o
material muito antiquado, caro e os estão substituindo por utensílios de
plástico, mais leves e inquebráveis. Desse ponto, começa-se um conflito na
cabeça do protagonista, que não sabe como fará para continuar provendo o
sustento da família. A filha de Cipriano, Marta, tem a ideia de fabricar
bonecos de barro para oferecer ao Centro, mas apesar de começarem a fabricação
dos bonecos, a medida soa como uma solução improvável e fadada ao mesmo destino
dos demais artesanatos fabricados anteriormente.
O genro de Cipriano é funcionário do
Centro e espera uma promoção de cargo, para então poder levar esposa e o sogro
para morar em definitivo num dos condomínios do Centro, ideia que aumenta o
desconforto em Cipriano, que o tempo todo sustenta um ceticismo em relação aquele
modelo estrutural de vida.
Aquela cidade comercial ignora os afetos
e necessidades intrínsecas do ser humano, valorizando o modo de vida
industrializada e tecnocrática.
Cipriano é um homem perdido,
descaracterizado, passa então a crer que sua profissão não existe mais por
evidente impossibilidade de competir com as megaestruturas modernas e
impositivas. O sistema de poder totalizante que o Centro representa, devora
todo o tipo de mão de obra artesanal e intelectual, condicionando a sociedade à
um único caminho possível para se distanciar da miséria: a rendição total às
condições substanciais arquitetadas por este Centro.
A complexidade narrativa do livro me
parece provocativa e instigante, há em suas entrelinhas uma série de metáforas;
embora fora do Centro o cotidiano das pessoas soe como algo precário e difícil,
ao mesmo tempo acompanhar o avanço das personagens nos faz pensar que é
justamente esse lugar aparentemente miserável, a única possibilidade de
encontro com a verdadeira natureza do ser humano, o significado existencial.
Surge então na trama um cachorro na olaria, que sem pedir licença, ocupa a casinha que era do antigo animal, e assume a função de religar o sentido de família daquelas pessoas, que parece ter se perdido.
A Caverna é mais uma excelente obra de Saramago, que escancara o perverso modo de vida artificioso e fácil de pseudoexistência, e aponta para a necessidade de se comungar com a verdadeira humanidade que se perdeu em nós.
NOTA: 8,7
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