domingo, 10 de março de 2024

RESENHA DE LIVRO – A CAVERNA

No livro VII de A República de Platão, encontra-se o mito da caverna, talvez a alegoria mais conhecida e esmiuçada do filósofo grego, cujo relato narra pessoas que vivem aprisionadas numa caverna, onde as sombras que se projetam do lado externo é tudo o que eles reconhecem e identificam como mundo. Quando um dos presos consegue fugir, descobre que do lado de fora da caverna existe um lugar imenso e infinitamente abundante, jamais imaginado. Então ele retorna para a caverna para convencer os outros prisioneiros a sair da restrita condição de clausura, mas eis que acaba sendo morto pelos próprios presos, que o consideram um agitador e mentiroso.

Sobre essa alegoria, as perguntas que sempre inspiraram pensadores ao longo da história do pensamento é: afinal, quem é que controla as sombras que se projetam nas paredes da caverna? Quem confinou seus prisioneiros de tal forma imutável e definitiva? Qual é o intuito disso? Quem se beneficia com essa noção de inexistência do lado externo?

O escritor português José Saramago, fazendo uso desse romance, cujo título faz referência ao mito de Platão, oferece-nos uma reflexão sobre tais perguntas, dentro de um mundo pós moderno que é bem diferente da antiga sociedade grega, mas que segue o modelo de subordinação do mito da caverna, talvez de forma mais sutil.

Na distopia de Saramago, acompanhamos Cipriano Algor, que vive com a filha e o genro numa humilde olaria, onde o sustento é retirado do barro que usa para fabricar artesanatos, os quais vende para uma megaestrutura moderna denominada Centro; uma espécie de shopping-condomínio, onde grande parte da sociedade vive confinada.

Apesar da vida difícil de muito labor, Cipriano é o arquétipo do artesão comum, que ganha a vida com o próprio esforço e, portanto, encontra nessa existência algum significado; ele representa o oposto do que seria uma vida pautada pelas condições capitalistas de subsistência oferecidas pelo imponente e irrecusável Centro, lugar onde as pessoas vivem pautadas pelo consumo e artificialidade. É neste cenário que pairam as críticas contundentes de Saramago sobre a forma de vida da sociedade moderna, na qual a uniformidade é imposta no coletivo, de modo a massacrar impiedosamente aqueles que se recusarem a aderir seu modo de vida.

A noção de desvalia do artesão Cipriano fica evidente quando seu maior e talvez único cliente, o Centro, comunica-o de que não comprarão mais seus artesanatos, porque os clientes consideram o material muito antiquado, caro e os estão substituindo por utensílios de plástico, mais leves e inquebráveis. Desse ponto, começa-se um conflito na cabeça do protagonista, que não sabe como fará para continuar provendo o sustento da família. A filha de Cipriano, Marta, tem a ideia de fabricar bonecos de barro para oferecer ao Centro, mas apesar de começarem a fabricação dos bonecos, a medida soa como uma solução improvável e fadada ao mesmo destino dos demais artesanatos fabricados anteriormente.

O genro de Cipriano é funcionário do Centro e espera uma promoção de cargo, para então poder levar esposa e o sogro para morar em definitivo num dos condomínios do Centro, ideia que aumenta o desconforto em Cipriano, que o tempo todo sustenta um ceticismo em relação aquele modelo estrutural de vida.

Aquela cidade comercial ignora os afetos e necessidades intrínsecas do ser humano, valorizando o modo de vida industrializada e tecnocrática.

Cipriano é um homem perdido, descaracterizado, passa então a crer que sua profissão não existe mais por evidente impossibilidade de competir com as megaestruturas modernas e impositivas. O sistema de poder totalizante que o Centro representa, devora todo o tipo de mão de obra artesanal e intelectual, condicionando a sociedade à um único caminho possível para se distanciar da miséria: a rendição total às condições substanciais arquitetadas por este Centro.

A complexidade narrativa do livro me parece provocativa e instigante, há em suas entrelinhas uma série de metáforas; embora fora do Centro o cotidiano das pessoas soe como algo precário e difícil, ao mesmo tempo acompanhar o avanço das personagens nos faz pensar que é justamente esse lugar aparentemente miserável, a única possibilidade de encontro com a verdadeira natureza do ser humano, o significado existencial.

Surge então na trama um cachorro na olaria, que sem pedir licença, ocupa a casinha que era do antigo animal, e assume a função de religar o sentido de família daquelas pessoas, que parece ter se perdido.

A Caverna é mais uma excelente obra de Saramago, que escancara o perverso modo de vida artificioso e fácil de pseudoexistência, e aponta para a necessidade de se comungar com a verdadeira humanidade que se perdeu em nós.

NOTA: 8,7

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