terça-feira, 22 de outubro de 2019

RESENHA DE LIVRO: O QUE OS CEGOS ESTÃO SONHANDO?


Na literatura deixada por quem sobreviveu ao Holocausto há pouco a ser lido que vá além da análise genérica que não soe repetitivo; quase todos os relatos são parecidos e, apesar de sua conotação extremamente trágica, geralmente seguem a esperada linha testemunhal da crueldade humana. E embora essa constatação possa ser entendida como desdém, eu confesso que só continuo insistindo nesse tipo de conteúdo por querer encontrar um pouco daquilo que não estava escancarado aos olhos; a narrativa que me fascina é a da resiliência silenciosa, aquilo que não foi dito simplesmente porque se esconde nas sombras escuras da alma humana...

Nesse sentido, O QUE OS CEGOS ESTÃO SONHANDO? é um livro que trouxe uma perspectiva inusitada sobre a tragédia do Holocausto: fez sua análise fria e sentimental do ocorrido sob o ponto de vista não apenas de quem lá esteve, mas também de quem não viveu os dias de treva sob os muros de Auschwitz. A autora Noemi Jaffe é filha de uma sobrevivente do inferno e parte da obra é sua dissecação à cerca do diário de sua mãe, Lili Jaffe, documento que hoje se encontra no Museu do Holocausto de Israel.

Lili tinha dezoito anos quando se tornou prisioneira junto com o resto de sua família, os quais ela só reencontrou o irmão quando do término do conflito. Quando a Cruz Vermelha resgatou e levou Lili para a Suécia, esta resolveu eternizar tudo o que havia sofrido, fazendo uso de sua memória fragilizada, mas ainda fresca em relação à experiência traumática. Essa é a primeira parte da composição desta obra aqui resenhada: o diário de Lili, escrito como se ela estivesse relatando exatamente em conformidade com o ocorrido. Temos aqui a parte genérica da obra, pois se trata de mais um testemunho dos muitos já publicados, mundo afora (é pavoroso, eu sei, mas é apenas outro relato que pouco se distingue de outros tantos).

A segunda parte do livro é o que, de fato, o tornou indispensável: a autora discorre com elevada profundidade e lisura sua pessoal jornada por tentar compreender no que sua mãe foi transformada após a tragédia. Há momentos aqui capazes de suscitar reflexões profundas, como quando Noemi explica a necessidade de sua genitora em crer no destino como uma maneira de se livrar da culpa por ter sobrevivido; ou no capítulo intitulado “mãe”, um dos mais belos textos da obra.

A percepção posterior da filha (que exatamente narra tudo em terceira pessoa como se não fosse sobre ela mesma) de que nada chegará a lugar algum é uma conclusão acertadíssima. Saber que é impossível obter algum norte sobre o Holocausto ou mesmo a tentativa ineficaz de explorar a alma de sua mãe mostra o quanto a busca pelo conhecimento de determinado assunto acaba gerando ainda mais dúvidas; máxima filosófica que carece de elevada humildade e entrega a derrota que eleva o ser, pois as grandes obras deixadas neste mundo são obras inacabadas, infinitas...

Na terceira e última parte, que de tão curto parece se tratar de um posfácio, temos a análise oriunda de outra geração, a neta de Lili, filha de Noemi Jaffe, que também esteve junto com a mãe em visitação às instalações de Auschwitz e, portanto, forneceu seu olhar ainda mais distante, de quem ouve ou lê relatos sobre o Holocausto como quem acompanha uma produção fictícia, algo muito difícil de acreditar.

O QUE OS CEGOS ESTÃO SONHANDO? (o belo e inusitado título é devidamente explicado ao longo da obra) não chega a ser um livro fundamental sobre a tragédia de um povo, mas sabe esmiuçar a particularidade de seus narradores com tamanha profundidade; um convite à reflexão sob a luz da intrepidez de mulheres que estiveram submersas em tragédias a partir de pontos diferentes de visão... Altamente recomendado pela riqueza imersiva.

NOTA: 8

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