sábado, 26 de novembro de 2016

CONTO - DEVIR ANUNCIADO

Hiperativa sobre o colo afetivo, a menina brincava, pulava, balbuciava sons indecifráveis com sua língua ainda virgem de idioma. Saltava do colo para o assento no corredor e de volta para o colo da mãe, que do assento da janela dedicava cuidados à sua cria com instinto materno e protetor, de mãos afáveis que não se cansavam de impedir que a pequena massa rechonchuda e buliçosa sofresse uma queda desastrosa no chão. E quando o colo já lhe parecia tediosamente aconchegante, a menina sacolejava de volta ao banco vazio.

A mãe era pequena e morena, feições delicadas e quase tão miúda quanto à filha arteira. Os cabelos lisos desciam-lhe para além dos ombros, ladeando um rosto ossudo e sem maquiagem. Tinha belos lábios grossos que raramente sorriam. Parecia obstinada e audaz, como quem tenta convencer a si mesma de que poderá cuidar das coisas, sozinha, com uma força que ela não sabia bem de onde invocar. Mas aprenderia a ser forte sozinha, porque sempre que confiou na força de outras pessoas, ela terminou machucada e triste.

Uma bolsa aparentemente pesada sob seus pés a delatava: havia dado tempo de pegar o que pôde ou coube na mala, mas era insignificante se comparado ao que deixara pra trás; estava fugindo de algo ou de alguém... Mal sabia ela que se estivesse fugindo do mundo, propriamente, achando que uma passagem comprada às presas lhe serviria como portal de transição existencial, enganava-se. Pois era o mundo o que ela encontraria quando desembarcasse pela porta do ônibus... Aliás, o ônibus também era o mundo; os demais passageiros eram mundos; eu a lhe observar era mundo... Mesmo a filha sapeca era o mundo inflexível e constante a lhe consumir sutilmente.

Mas ela parecia não se dar conta disso. E olhava pela janela como quem acredita estar deixando pra trás mundos velhos e despedaçados, que desapareceriam tão rápido quanto a paisagem sumia de seu campo de visão. Tentaria se convencer de que mundos destrutivos que ficaram no passado não poderiam voltar... Só que eles costumam voltar, infelizmente. No entanto, eu é que não seria indelicado a ponto de lhe apunhalar com minhas invasivas convicções.

Seus olhos eram tristes, pareciam enxergar ao inverso, de fora pra dentro. Eram tão túrbidos que pareciam exalar conformidade quanto a qualquer lugar em que virem a ser deixados no desembarque, será mais do que eles merecem... Olhos que viram além do que puderam suportar; que testemunharam mais quedas do que reerguidas.

No antebraço onde agora a filha dormia, havia um nome gravado. Uma tinta ordinária que marcara a insígnia do mundo que ficou para trás. Era um nome de caráter bíblico, masculino, porém, nem um pouco merecedor de tal honraria. É provável que fizera a tatuagem numa época de certezas ingênuas, de amores escapadiços. Certamente a definição existencial da qual fugia... Sim, pois se aquele sinal em seu antebraço fosse algo ansiado, um mundo em que ela estivesse indo ao encontro, provavelmente o olhar daquela dama seria menos congelado numa infelicidade que se reproduzia na janela por onde ela olhava hipnoticamente.

A viagem foi interrompida para o embarque de passageiros. Um casal muito jovem, que vivia o auge de seus anos de apogeu, se sentou nos assentos em minha frente. Também traziam no colo o fruto de sua união. Esta era miúda e preguiçosa; dormia sossegada nos braços da mãe.

Já estávamos de volta à estrada, quando o casal olhou despercebidamente para a mulher em fuga, que devolveu o fitar. Mas logo aquela breve conexão se perdeu, pois constrangida, a mãe solitária não quis ter sua dor desnudada. Contudo, o casal continuou mapeando-a. Então o homem perdeu o interesse e adormeceu..., só que a esposa não.

A mulher seguiu intrigada, observando a outra até conseguir atravessar a carapaça fragilizada daquela mãe. E na proporção em que o olhar perdurava, a mãe recém-chegada foi perdendo o brilho de esperança que carregou até aquele instante raro que a possibilitou vislumbrar a materialização de seu próprio porvir. Seus olhos agora eram um misto de comiseração e ansiedade, resultado do encontro com o inevitável.

Talvez, e somente talvez, num passado não muito distante, aquela mãe fugitiva também embarcou ao lado de um homem que, carinhosamente dividia a responsabilidade em zelar pelo pequeno fruto hiperativo que juntos conceberam; eles riam de qualquer coisa, apaixonados, o discernimento rendido à sutileza da ilusão amorosa que os fez ver apenas a existência efêmera do ser.

Vou tatuar seu nome bem aqui” – disse ela, exalando ternura, mostrando-lhe o antebraço imaculado. Seus olhos ainda não eram esferas cinzentas e sôfregas, mas portadores da paixão cálida, a contemplar a própria família constituída e perfeita, merecedora de uma viagem de férias.

A esposa recém-embarcada sentiu medo. Inquietava-se de seu assento, pediu água ao marido semiacordado. Não queria mais assistir ao prenúncio de sua ruina; o interior do ônibus a lhe sufocar; o futuro diante dos olhos a lhe consumir.

O mundo consegue ser ainda mais cruel quando anuncia, quando antecipa seus métodos implacáveis, quando nos faz ler a página seguinte sem ter nos dado chance de terminar a página atual..., o mundo sorri de nossa prepotência quando nos fornece o testemunho do provável amanhã.

A mãe solitária estava novamente com os olhos no casal. Sua sensibilidade mais do que testada lhe permitia ver o pânico na outra, entender que sua viagem solitária simbolizava o medo de toda mulher esperançosa. Ela apertou os lábios, compreensiva.

Não se preocupe... Vai ficar tudo bem” – ela mentiu com os olhos, tentando fazer o que todos fizeram consigo; enganaram-na achando que assim doeria menos.

Depois ela se virou, voltando para o cenário seco e cheio de mundos vazios, que avançava veloz através da janela.

O casal aquiesceu, aguardou a trajetória, em silêncio formal. Não mais riam, não conversavam, tão pouco se tocavam. Passavam a criança para o colo do outro, como se fossem soldados transferindo a vez de zelar pelo estandarte. O homem sabia que a quietude inesperada da esposa era indício de alteração de perspectiva em sua mente confusa. A mulher torcia para que o consentimento de seu amado não fosse prenúncio de sua conivência.

O que será daquele casal ao término dessa viagem rumo ao desconhecido? Continuarão outras viagens sustentando suas recíprocas condutas de amor e ódio? Serão impotentes expectadores das próprias existências a desabar num lugar qualquer em que se encontrarão separados, vingados e infelizes?

Sobreviverão ao despotismo do mundo, mas as experiências os tornarão desconfiados, desiludidos e sozinhos, a olhar este mesmo mundo através de uma janela de sonhos, onde a vida surge quase ao alcance das mãos, mas passa rápido demais para ser enlaçada.