Este é um espaço de reflexão e opinião de um improvável leitor... Ordinário em sua existência, às vezes transgressor em sua análise. Mas como eu disse, é apenas um espaço. E como tal, precisa ser eternamente preenchido...
segunda-feira, 15 de agosto de 2016
RESENHA DE LIVRO – RAZÃO E SENSIBILIDADE
quinta-feira, 11 de agosto de 2016
CRÔNICA - A SUJEIRA DEFINIDORA
Hoje deu vontade de comer
macarrão. Veio bem temperado com alho e, apesar de considerar um pouco frio, o
sabor estava muito bom. Ao meu redor o cenário era a praça de alimentação do
Shopping Vitória, o tipo de lugar em que é inevitável nos depararmos com o
contraste social. E não me refiro especificamente ao contraste gustativo, onde
a culinária mineira mistura-se ao cheiro dos customizados hambúrgueres
americanos e o colorido alegre dos sushis enfeitando as louças.
Não. Aqui neste lugar a
mistura cultural tem uma aparência simuladamente benigna, mas que na realidade
esconde seu caráter separatista dogmático, que distribui indivíduos pelo
capital aquisitivo.
Mas isso não me faz
interromper a mastigação. Posso seguir com as garfadas no macarrão delicioso e
frio, enquanto contemplo a discrepância social.
Por todos os lados, pessoas se
empanturrando de alimentos preparados com dissimulada sofisticação que
justifique seu astronômico preço; a juventude detentora de uma costumeira
vontade de ser descolada; executivos encoleirados em seus aparelhos eletrônicos
de última geração; vendedores internos em horários de almoço; famílias que
saíram de suas casas para encontrar algo que já se perdera há décadas: o
sentido de se estar juntos... Todos dividem o improvável espaço com os
funcionários encarregados da limpeza do shopping; reles fantasmas que caminham
no meio da gente, sem serem notados, doutrinados a exercer função que é
desprezada pelo consumidor contemporâneo: higienizar o ambiente. Tratam-se de
seres adestrados à submissão, cuja incumbência essencial não é a manutenção do
recinto, propriamente, mas amaciar o ego dos preguiçosos clientes que infestam
nossos parques de diversões modernos.
Afinal, o primoroso sistema
capitalista, como se fosse uma madrasta zelosa, nunca se esquece de acolher a
cada um de seus filhos, colocando-os em seus devidos lugares... E desta ordem
criteriosa nasceram os miseráveis.
Sim, sou integrante deste
sistema moedor de carne humana, e o macarrão também fazia parte da sofisticação
alimentar que, mesmo proporcionando considerável prazer, era incapaz de
justificar o seu preço abusivo. Estou inserido no grupo dos que se acham
pertencentes a uma classe social superior, simplesmente por me encontrar
sentado na praça de alimentação, comendo numa bandeja, como fazem detentos de
uma penitenciária, em vez de estar em pé, usando vestes excêntricas, circulando
por todos os lados portando esfregão e vassoura.
Tal constatação fez com que eu
sentisse um pouco de vergonha por representar a classe sedentária que é incapaz
de cuidar da própria sujeira. Ou pior: achando que cuidar de uma bandeja vazia
e suja é coisa pra gente subalterna fazer.
Enquanto refletia sobre tal
discrepância, uma moça rudemente uniformizada surgiu em minha frente. Claro,
afinal de contas, o uniforme deve sempre ser identificador do tipo de gente com
que estamos lidando. E o brim grosso, cinzento e inconveniente, estava em plena
conformidade para que, tanto clientes quanto os próprios funcionários soubessem
que aquele é apenas um prestador de serviços ignóbil e substituível..., genuína
nulidade, transparente. Então diante de mim pairava este ser ordinário,
prontamente treinado para cuidar da bandeja vazia que eu havia deixado de lado
para poder rascunhar este texto.
Um pouco desconfortável por
constatar que faço mesmo parte do grupo dos imbecis, tentei amenizar a situação
agradecendo pela gentileza que a mim fora prestada. Mas a mulher praticamente
não notou e, conformada com sua condição de mal necessário, ela se foi,
certamente convicta de que um obrigado era mais do que merecia.
Ao meu lado, um grupo de
estudantes, terminando de lanchar e olhando ao redor como se o mundo fosse um
interminável tédio. Um deles usava na cabeça uma coroa de papelão, que ganhou
de brinde numa lanchonete de nome ostensivo, justamente por ter escolhido o
lanche “mais feliz”. Após algum tempo, vossa majestade foi embora, satisfeita, seguido
por seus súditos burgueses, sem darem importância ao que será feito dos
intermináveis restos espalhados na mesa onde se encontravam.
Enquanto isso, os fantasmas
seguiam recolhendo bandejas, limpando mesas, devolvendo a decência ao ambiente
para que ele continuasse sendo desfrutado pela classe superior. E apesar da
pele escura que os distinguiam da clientela, eles não eram notados e talvez
assim devesse proceder tal existência, porque a cegueira faz bem e ajuda a não
pensarmos em diferenças sociais; serve para manter a ordem vigente, porque a
desordem incomoda até mesmo aos que careceriam de serem vistos. Sim, pois
quando um dos funcionários reparou o meu exagerado interesse em seus recônditos
afazeres, logo tratou de assumir uma postura ainda mais servil, talvez até
suplicante..., afinal, imaginavam que eu pudesse ser alguém da administração do
shopping, a lhes fiscalizar enquanto trabalhavam.
Dois ou três se uniram,
cochicharam entre si, certamente solidarizados à cerca da suposta ameaça que eu
agora representava. Então passaram a limpar mesas com maior zelo, sorrindo para
os arrogantes clientes, e mantendo cautela com o suspeito rapaz que inadequadamente
os observava e fazia anotações contundentes numa folha de papel.
Sim, os fantasmas temiam
perder o emprego mais insubsistente da sociedade. Sabiam que não lhes restava
mais o que fazer no meio de uma comunidade casta e elitista, que paga de bom
grado alguma esmola que leva o nome de salário, a troco de alguém que lhes
limpe o próprio rabo. Porque vivemos numa sociedade em que, olha só: a nossa
sujeira e preguiça gera empregos.
Mas os fantasmas da praça de
alimentação não são idiotas. Eles aquiescem frente ao menor risco de que
mudanças administrativas precisem ser tomadas. Receiam que a logística do
shopping perceba o quanto alguns consumidores, os raros mais atentos, sintam-se
desconfortáveis ao ter que conviver em meio a gente que cuida da sujeira por
eles deixada; o lado social mimado, que precisa de alguém que dê um jeito na
imundice, mas que não se sente à vontade vendo quem são essas pessoas. E como
um bando de Pilatos pós-modernos, lavam as mãos e sugerem furtivamente que os
fantasmas sejam sumariamente substituídos por máquinas inexpressivas, que sejam
capazes de lidar com a limpeza do consumismo, sem que sua presença metálica cause
algum tipo de culpa... Esta é a lógica do medo no olhar dos fantasmas.
Pois qualquer mudança radical
e moderna poderá lhes custar o emprego;
Meu grito interno de revolta
ao me deparar com o contraste social poderá desencadear em protestos que lhes
custará o emprego;
Pensar neles como
trabalhadores coitadinhos é uma ideia perigosa, que se levada ao pé da letra, resultará
em demissões. Porque o desenvolvimento científico moderno está aí, espreitando
para entrar no cenário e mudar isso tudo. Colocar aqueles que não são
capacitados, os que não tiveram as mesmas chances, os miseráveis, exatamente no
seu devido lugar: bem longe do consumidor que sabe que seus cartões de crédito
ditam o jogo, e ao menor sinal de culpa solicitarão que alguém tome uma
providência.
Esse deve ser o pesadelo dos
fantasmas: máquinas entrando em cena para lhes surrupiar o emprego. Ou mais
distante do provável, nossa educação e zelo se fazer presente em sociedade,
então não precisaremos mais que retirem nossa sujeira da mesa, pois nós mesmos
o faremos...
E no lugar de receber
contracheques irrisórios, os fantasmas passearão de um lado para o outro, com a
palma de suas mãos viradas para o céu, implorando por alguns trocados. Mas isso
eles terão que fazer bem longe da praça de alimentação. Porque ali estes seres
indignos não podem entrar.
Melhor deixar esse assunto de
lado; melhor me esquecer de toda essa besteira e não mais apontar com meu dedo
sujo com molho de macarronada as lacunas sociais; melhor manter distância dos
meios urbanos, porque olhar muito de perto para eles faz com que eu sinta o
cheiro da podridão...