quinta-feira, 30 de maio de 2024

RESENHA DE LIVRO – DIVÃ

Assim que comecei a fazer graduação em psicanálise, conteúdos que envolvem o tema passaram a me interessar de perto. Já havia assistido adaptação da obra aqui resenhada para o cinema, mas adiava a leitura deste divertido DIVÃ por sustentar alguma desconfiança de que se tratasse de mais um daqueles livros água com açúcar, cheios de clichês..., mas fiquei satisfeito por estar completamente enganado, eu adoro quando a literatura me proporciona essas agradáveis surpresas.

DIVÃ narra a história de Mercedes, uma mulher de meia idade que começa a fazer psicanálise por sustentar certo vazio existencial. Ela é casada, mãe de três filhos, pedagoga e artista plástica nas horas vagas. Aparentemente leva uma vida regrada e sem grandes desafios, pois é justamente esse o problema que relata, já no início da trama: Mercedes não gosta do meio termo, tem dificuldade em lidar com essa vida morna e higienizada, ela relata no divã ao seu terapeuta que gosta dos extremos, mas por alguma razão optou por desempenhar o papel social que lhe era esperado.

O divã é o cenário único da narrativa. Tudo o que acompanhamos sobre a personagem são os relatos que ela expõe nas sessões com o psicanalista Lopes. Ou seja, cada capítulo é uma nova consulta e Mercedes conta como se sente, como vai a vida, suas impressões, seus sentimentos, tudo em recortes de monólogos.

E cá entre nós, é uma delícia acompanhar as sessões de Mercedes. Ela conta sua história de modo honesto e divertido, não se abstém, não tem medo de dizer como se sente. Mesmo quando relata situações difíceis em sua vida, nos faz querer avançar ao próximo capítulo para sabermos um pouco mais sobre a vida dessa mulher. Mercedes certamente é a analisanda que todo psicanalista gostaria de ter em seu consultório.

Há momentos em que damos boas risadas, outros em que nos pegamos a pensar sobre suas reflexões. Momentos difíceis, quando coincidem com algo já vivido por nós, causam imersão; o capítulo termina e você fica pensando longamente sobre o próprio passado.

Aliás, os capítulos aqui são curtinhos, o livro tem uma narrativa fluída, dá pra ler em um único dia, embora eu sigo sustentando o velho hábito de desacelerar minhas leituras quando estou gostando do livro.

Claro que é tudo mérito de sua criadora. Essa é a primeira obra que li de Martha Medeiros e já fiquei encantado com seu estilo direto e pitoresco. Ao que parece ela se destaca por suas crônicas, o que pode ser notado na condução narrativa aqui exibida. Alguns leitores dirão que isso é óbvio, mas o livro é bem melhor do que sua adaptação cinematográfica. Aliás, foi por conta de ter assistido ao filme primeiro, que fiquei com uma impressão equivocada sobre a autora.

DIVÃ é uma obra deliciosa, fácil de ser lida e detentora de uma protagonista apaixonante. Se algo negativo pode ser dito sobre esse livro é o quanto ele é curtinho, eu seguiria numa boa acompanhando as sessões de análise de Mercedes..., quem sabe futuramente Martha Medeiros brinde-nos com uma continuação?

NOTA **10**

terça-feira, 21 de maio de 2024

RESENHA DE LIVRO – A ESPERA

Muito mais do que instrumento para diletantes, a literatura é uma arte capaz de nos dar um vislumbre de como são outras culturas e compreender o que ocorre na interação do ser humano com este distinto ambiente. Desse modo, nós leitores, não estamos reduzidos a figura de um mero hermeneuta, ao contrário, tornamo-nos observadores de específico ponto do universo e os fenômenos que ocorrem nele.

Pois bem, o cenário desta discreta obra intitulada A ESPERA, é a China comunista da década de 1960. Lin Kong é um médico do exército que todo ano volta à aldeia onde nasceu para tentar se divorciar de sua esposa. Fez esta tentativa por dezoito anos, mas a esposa sempre se recusa no último instante, obrigando o médico a seguir casado e impedindo que assuma um novo relacionamento com uma enfermeira que conheceu no trabalho.

Feita a breve sinopse, cabe aqui a primeira observação sobre a inusitada forma com que a sociedade chinesa esteve organizada naquele tempo: não era tão simples conseguir um divórcio, pelo menos do ponto de vista técnico, como acontece em democracias ocidentais. Lin precisava levar sua esposa Shuyu até a presença de um juiz, que após uma breve entrevista, decidirá se endossa ou não o divórcio. Como a esposa se recusa a concordar com a separação, o magistrado nega o pedido sucessivamente.

Outro aspecto pertinente a ser dito, é que os pais de Lin, estando em idade avançada e já apresentando algumas debilidades, decidem arranjar uma esposa para ele, no intuito de tornar essa mulher a cuidadora dos velhos. Ou seja, não era o desejo do protagonista aquele casamento, e após a morte dos genitores, Lin passa a tentar se divorciar de Shuyu, pois não consegue enxergar-se naquele relacionamento. A pressão sobre ele fica ainda maior por conta da já mencionada enfermeira com quem se envolve no trabalho, e que aguarda uma definição de Lin para começar uma vida ao seu lado.

Eis o enrosco que centraliza a essência da trama e justifica seu título; a espera pela ansiada mudança, ou seja, a libertação de Lin de sua realidade desajustada.

O autor chines Ha Jin, expõe de modo eficiente como o cenário cultural no qual suas personagens estão inseridas, pode influenciar e conflitar com diferentes aspectos da personalidade de cada um deles. Seu protagonista vê-se no meio de um conflito entre duas Chinas distintas, uma arcaica e rural, representado na figura da esposa, e outra urbana e evoluída, que possibilita o desejo por romper com regras conservadoras para vivenciar quimeras como o amor, na figura da enfermeira.

Apesar de a trama evidenciar as diferentes perspectivas no arco envolvendo esposa, marido e pretendente, achei que o autor explora o potencial de sua história de modo raso. Shuyu, a esposa, é uma mulher submissa, cuja aparência não agrada seu marido, mas é extremamente fiel e zelosa, em conformidade com os costumes tradicionais de seu povo. Lin é um homem que, apesar de sensato, é inseguro, considera-se injustiçado pelas circunstâncias que o obrigaram a se casar com uma mulher que não gosta. Enquanto Manna Wu, a enfermeira, é uma figura coerente, porém ansiosa e aflita, teme ser desaprovada pela sociedade por estar passando da idade de se casar, logo projeta esta urgência em Lin.

A complexidade das personagens e a força da internalização de normas sociais, surgem o tempo todo ao longo da leitura. Porém, o livro segue por uma linha narrativa que apenas expõe situações e comportamentos, deixando de aprofundar na personalidade de cada indivíduo, assim como não justifica suas ações. Quando muito, há instantes em que algum personagem se confronta com questionamentos oriundos da percepção dos instantes em que se encontra ou sobre ações cometidas, o que não chega a ser um problema, mas senti falta de um pouco mais de imersões reflexivas. Por exemplo, há um evento extremamente traumático que acontece com Manna Wu, mas pouco é explorado pela narrativa.

Incomodou-me mais o quanto o livro se estende depois de algumas questões serem resolvidas. Há um ponto da trama em que o arco central parece definido, mas como ainda resta muito livro para ler, cogita-se que coisas importantes ainda acontecerão, mas quase nada relevante ocorre. É uma espécie de final interminável, que justamente pela ausência de análise de consciência das personagens, torna a parte final da leitura um pouco enfadonha. O livro poderia ter pelo menos umas 80 páginas a menos.

A ESPERA é quase um romance histórico, escrita de forma simples e objetiva. Explora algumas questões interessantes, como medo da solidão, utopias modernas, costumes tradicionais e a inexistência de privacidade numa sociedade extremamente vigiada por um regime autoritário.

NOTA: 7,3