sábado, 29 de junho de 2024

CRÔNICA – DO QUE VOCÊ TEM MEDO?

A catástrofe bíblica descrita no armagedon se inicia com a chegada dos cavaleiros do apocalipse e, segundo o profeta Daniel, o primeiro deles é a peste. Do alto de sua montaria, o cavaleiro mortífero anunciou ao profeta que sua mão pesada cairia sobre os homens e causaria o extermínio de cem mil indivíduos. Pois quando terminou sua execrável passagem, a peste foi abordada pelo profeta, ao passar por ele.

– Você disse que seriam cem mil mortos, mas diante de mim estão mais de um milhão de corpos tombados.

– Sou responsável pelas cem mil mortes que anunciei – disse a peste – as outras novecentas mil morreram de medo.

Talvez como condição inseparável, o medo caminha ao lado do ser humano ao longo de sua existência, como se fosse uma sombra. Eu diria que se trata de algo fundamental em todas as espécies da natureza, pois graças ao medo criaturas sobrevivem e se proliferam no caótico reino dos animais.

O medo é um aspecto irreprimível do ser humano, tão estruturado à sua natureza que, por mais paradoxal que pareça, devemos a essa condição nossa sobrevivência. Os homens pré-históricos mais corajosos certamente foram transformados em refeição de predadores maiores ou sucumbiram ao ataque de grupos rivais. A sobrevivência de nossa espécie se deve a infindável desconfiança e ansiedade dos medrosos, que evitavam batalhas e fugiam perante o menor movimento suspeito numa moita próxima.

Contudo, não moramos mais na savana, então nestes tempos modernos o medo evoluiu, digamos, para algo menos vital e mais nocivo. E embora o medo se tornou, de fato, um aspecto de menor importância do ponto de vista existencial, sentimos em maior proporção seus efeitos nefastos, porque hoje o medo atua na esfera do imaginário e, por essa razão, tornou-se instrumento de manipulação social.

Em nossa contemporaneidade a quantidade exacerbada de informações as quais estamos submetidos é tão vasta, que vivemos constantemente emitindo sinais de alerta a respeito da vida cotidiana, porque tudo nos parece ameaçador. Isso graças a uma ajudinha da imprensa e das mídias sociais, porque notícias trágicas geram engajamento, atraem audiência e resultam em ganhos substanciais. Se antigamente pairava em nossas mentes a possibilidade de sermos devorados por um leão, agora temos nossa própria mente, que entupida de informações, a maioria delas infundadas, gera pânico ininterrupto.

Isso não significa que não haja perigo em sair na rua. A comparação que fiz serve apenas para despertar alguns questionamentos: será que hoje o mundo é mais perigoso do que o mundo em que nossos ancestrais viveram? O que sentimos cotidianamente é medo ou paranoia? Estamos sofrendo por excesso de informação?

O que se sabe é que o medo é uma ferramenta de manipulação eficiente.

As religiões detêm como base de toda sua estrutura teológica o medo. Porque se não houver no fiel o medo do inferno ou da punição, dificilmente este indivíduo receberia a adjetivação de fiel. Claro que isso não chega a ser necessariamente ruim, porém, há líder religiosos que utilizam e até extrapolam a inserção do medo, apenas para elevar sua posição de poder. E não somente as religiões fazem isso, porque na política também se trabalha na manutenção constante do medo para que a sociedade se submeta à inimagináveis condições de escassez, violência e miséria..., tudo feito em nome de um arquétipo do medo (que podem ser os comunistas comedores de criancinhas ou estrangeiros interessados em roubar os nossos empregos). Ou seja, para que se enxergue o herói salvador na figura de determinado candidato político, precisa-se antes que seja criado na mente do eleitor o risco do mal eminente.

Existe ainda os medos universais, tipo aquele de que o mundo irá acabar. E dentro dessa esfera tem muito teórico respeitado mundo afora achando que se trata de um medo absolutamente plausível, dado o modo de vida predatório do ser humano, sua capacidade de autodestruição por meio de contribuições para o aquecimento do planeta. Mas devo confessar que embora eu não me considere tão irresponsável (o que já seria uma irresponsabilidade), medo do fim do mundo é algo que não me acomete. Talvez porque ando tão preocupado com o vencimento dos boletos e os cuidados com minha saúde depois dos 40, que não sobra tempo para pensar sobre circunstâncias as quais me sinto tão irrelevante e impotente.

E falando de mim, acho que meus maiores medos atuais não estão diretamente relacionados com abstrações. Se na infância eu tinha medo de fantasmas, medo do escuro ou medo do inferno; hoje meus dois maiores temores é o medo de entrar numa escassez financeira e o medo de me tornar um enfermo inválido numa cama, completamente dependente de outro ser humano que cuide de mim.

Acredito que o ser humano amadurece conforme começa a notar que não tem controle sobre quase nada, e tem cada vez menos certeza de tudo. Você deve estar se perguntando o que isso tem a ver com o medo. Bom, recentemente ocorreu uma transformação impactante na minha vida, quando repentinamente meu irmão mais novo faleceu. Isso atordoou a todos e ainda estamos sob alguma forma de luto. Mas este acontecimento me fez pensar muito naquilo que consideramos o maior de todos os nossos medos: o medo da morte.

Ao levar alguém que amei e convivi muito próximo, a morte me fez pensar nela como jamais havia feito antes. Porém, o curioso é que isso não elevou meu temor dela, mas fez com que eu pensasse no imediatismo da vida. Por isso deixei para falar da morte no final dessa crônica.

A morte me fez compreender que tudo pode ser quebrado inesperadamente; qualquer instante pode ser o último da nossa vida; não sabemos onde estaremos daqui há alguns minutos... Quando a morte tocou alguém tão próximo de mim, fez com que eu percebesse o tamanho da incerteza que paira sobre minha existência. E talvez, somente talvez, o meu maior medo mudou diante dessa percepção.

Desde o instante em que me deparei com a morte, tenho muito medo de desperdiçar meu tempo de vida com rancores, brigas desnecessárias, pessoas que não significam nada pra mim, tarefas sem sentido, compromissos levianos, obrigações impossíveis, problemas insolúveis, gente teimosa, obtenções fúteis.

Sei que nem tudo precisa ter um propósito. Mas se é para delimitar algum, que este faça sentido na indefinida vida que me resta. Claro que isso tem um preço a ser pago, mas acho que não há nada sem preço..., só o que nos resta é saber o quanto estamos dispostos a pagar.

A vida é urgente!

sábado, 15 de junho de 2024

RESENHA DE LIVRO – FILHOS DE NAZISTAS

Um problema bastante recorrente que acontece com muitos historiadores, é que por mais que sejam intelectualizados, obstinados e fidedignos, quando estão desenvolvendo suas obras não sabem usar linguagem acessível e agradável. Ou seja, escrevem para um público acadêmico específico ou simplesmente são herméticos por força de ofício. Portanto, é satisfatório quando encontramos um autor que, além do domínio elevado sobre o tema exposto, também escreve de maneira comunicativa e às vezes até literária..., eis o que mais me chamou a atenção neste excelente trabalho, intitulado FILHOS DE NAZISTAS.

É preciso que se diga que a autora Tania Crasnianski, não é uma historiadora, por profissão é advogada penalista, mas aqui desenvolveu conteúdo histórico de maneira eficiente e didática, sua escrita é surpreendentemente agradável, fluída e inicia cada um de seus capítulos como se estivesse narrando um conto; puxa pedaços da existência da personalidade relatada, mistura com eventos históricos e consequentemente nos deixa envolvidos na leitura. Em resumo, FILHOS DE NAZISTAS é um livro fácil de ser lido e composto de maneira insinuante, o que é incomum quando estamos diante desse tipo de gênero. A título de exemplo, quem faz isso muito bem é o escritor Laurentino Gomes, que apesar da sua elevada obstinação, também não é historiador e sim jornalista. Contudo, não me entendam mal, existem historiadores de profissão que sabem narrar maravilhosamente bem, cito como exemplo a brasileira Mary Del Priore e o britânico Antony Beevor.

O título da obra aqui já deixa explicitado sua premissa: após a queda do Terceiro Reich, houve um verdadeiro choque de realidade para a linhagens daqueles homens considerados cérebros de um dos regimes mais hediondos da história da humanidade. O escopo é convidativo; a autora quer saber o que aconteceu e como vivem os filhos dos principais nomes do regime nazista. E o que temos é uma aprofundada pesquisa de diferentes fontes, delimitados em oito capítulos os quais resumem a vida dos seguintes herdeiros: Gudrum Himmler, filha de Heinrich Himmler; Edda Göring, filha de Hermann Göring; Wolf R. Hess, filho de Rudolf Hess; Niklas Frank, filho de Hans Frank; Martin Adolf Bormann, filho de Martin Bormann, os irmãos Höss, herdeiros de Rudolf Höss; os irmãos Speer, filhos do arquiteto Albert Speer; e por último Rolf Mengele, filho do famigerado anjo da morte Josef Mengele. Para quem se interessa pela Segunda Guerra, os pais aqui citados dispensam apresentações, eles basicamente formavam a cúpula do regime nazista.

Para permitir que o leitor capte a realidade de cada personalidade retratada aqui, os capítulos se abrem com algum acontecimento significativo, recriados pela autora com certa liberdade. Em seguida, introjeta-se no texto um resumo de como foi a ascensão do pai até chegar ao top da chefia nazista, o ápice da crise com o fim da guerra, o desfecho de sua vida, e então como vivem, onde estão e o que pensam seus herdeiros a respeito do pai.

É um conteúdo curioso porque os resultados das pesquisas da autora mostram diferentes perspectivas e modos de enxergar passado e presente; alguns desses filhos mantém uma veneração imutável sobre seus pais, mesmo perante toda atrocidade documentada, creem que seus genitores são inocentes; outros preferem ignorar e evitam falar do passado; alguns odeiam e sentem vergonha do sobrenome que carregam..., mesmo assim, quase nenhum mudou esse sobrenome.

Apesar de se tratar de um tema espinhoso, mesmo depois de quase oitenta anos do fim da guerra, Tania diz ser difícil escrever sobre o assunto, tentou ser imparcial e apenas relatar o que descobriu com sua pesquisa, a autora evita fazer julgamento desses filhos, mesmo quando o filho narrado é alguém cujo pensamento extremista vai na contramão da realidade, acreditando que seu pai, na verdade, foi um herói de guerra, como é o caso de Gudrum Himmler.

Pra fechar a obra ainda temos um posfácio que faz uma breve análise de como estão as coisas na sociedade alemã nos dias atuais, alguns conflitos políticos efervescendo no parlamento e a ascensão de uma extrema direita que ignora a loucura assassina do Terceiro Reich.

FILHOS DE NAZISTAS é um trabalho estupendo e minucioso, cujo tema interessará de perto os apreciadores da Segunda Guerra Mundial, escrito de maneira aprazível e, mais do que isso, trata-se de um documento importante que ajuda a compreender o passado sombrio e as consequências de uma tragédia histórica..., recomendadíssimo!

NOTA: **10**