A catástrofe bíblica descrita no armagedon se inicia com a chegada dos cavaleiros do apocalipse e, segundo o profeta Daniel, o primeiro deles é a peste. Do alto de sua montaria, o cavaleiro mortífero anunciou ao profeta que sua mão pesada cairia sobre os homens e causaria o extermínio de cem mil indivíduos. Pois quando terminou sua execrável passagem, a peste foi abordada pelo profeta, ao passar por ele.
– Você disse que seriam cem
mil mortos, mas diante de mim estão mais de um milhão de corpos tombados.
– Sou responsável pelas cem
mil mortes que anunciei – disse a peste – as outras novecentas mil morreram de
medo.
Talvez como condição inseparável,
o medo caminha ao lado do ser humano ao longo de sua existência, como se fosse
uma sombra. Eu diria que se trata de algo fundamental em todas as espécies da
natureza, pois graças ao medo criaturas sobrevivem e se proliferam no caótico
reino dos animais.
O medo é um aspecto irreprimível
do ser humano, tão estruturado à sua natureza que, por mais paradoxal que
pareça, devemos a essa condição nossa sobrevivência. Os homens pré-históricos
mais corajosos certamente foram transformados em refeição de predadores maiores
ou sucumbiram ao ataque de grupos rivais. A sobrevivência de nossa espécie se
deve a infindável desconfiança e ansiedade dos medrosos, que evitavam batalhas
e fugiam perante o menor movimento suspeito numa moita próxima.
Contudo, não moramos mais na
savana, então nestes tempos modernos o medo evoluiu, digamos, para algo menos
vital e mais nocivo. E embora o medo se tornou, de fato, um aspecto de menor
importância do ponto de vista existencial, sentimos em maior proporção seus
efeitos nefastos, porque hoje o medo atua na esfera do imaginário e, por essa
razão, tornou-se instrumento de manipulação social.
Em nossa contemporaneidade a
quantidade exacerbada de informações as quais estamos submetidos é tão vasta,
que vivemos constantemente emitindo sinais de alerta a respeito da vida
cotidiana, porque tudo nos parece ameaçador. Isso graças a uma ajudinha da
imprensa e das mídias sociais, porque notícias trágicas geram engajamento,
atraem audiência e resultam em ganhos substanciais. Se antigamente pairava em
nossas mentes a possibilidade de sermos devorados por um leão, agora temos
nossa própria mente, que entupida de informações, a maioria delas infundadas,
gera pânico ininterrupto.
Isso não significa que não haja
perigo em sair na rua. A comparação que fiz serve apenas para despertar alguns
questionamentos: será que hoje o mundo é mais perigoso do que o mundo em que
nossos ancestrais viveram? O que sentimos cotidianamente é medo ou paranoia?
Estamos sofrendo por excesso de informação?
O que se sabe é que o medo é
uma ferramenta de manipulação eficiente.
As religiões detêm como base
de toda sua estrutura teológica o medo. Porque se não houver no fiel o medo do
inferno ou da punição, dificilmente este indivíduo receberia a adjetivação de
fiel. Claro que isso não chega a ser necessariamente ruim, porém, há líder
religiosos que utilizam e até extrapolam a inserção do medo, apenas para elevar
sua posição de poder. E não somente as religiões fazem isso, porque na política
também se trabalha na manutenção constante do medo para que a sociedade se
submeta à inimagináveis condições de escassez, violência e miséria..., tudo
feito em nome de um arquétipo do medo (que podem ser os comunistas comedores de
criancinhas ou estrangeiros interessados em roubar os nossos empregos). Ou
seja, para que se enxergue o herói salvador na figura de determinado candidato
político, precisa-se antes que seja criado na mente do eleitor o risco do mal
eminente.
Existe ainda os medos
universais, tipo aquele de que o mundo irá acabar. E dentro dessa esfera tem
muito teórico respeitado mundo afora achando que se trata de um medo
absolutamente plausível, dado o modo de vida predatório do ser humano, sua
capacidade de autodestruição por meio de contribuições para o aquecimento do
planeta. Mas devo confessar que embora eu não me considere tão irresponsável (o
que já seria uma irresponsabilidade), medo do fim do mundo é algo que não me
acomete. Talvez porque ando tão preocupado com o vencimento dos boletos e os
cuidados com minha saúde depois dos 40, que não sobra tempo para pensar sobre
circunstâncias as quais me sinto tão irrelevante e impotente.
E falando de mim, acho que
meus maiores medos atuais não estão diretamente relacionados com abstrações. Se
na infância eu tinha medo de fantasmas, medo do escuro ou medo do inferno; hoje
meus dois maiores temores é o medo de entrar numa escassez financeira e o medo
de me tornar um enfermo inválido numa cama, completamente dependente de outro
ser humano que cuide de mim.
Acredito que o ser humano
amadurece conforme começa a notar que não tem controle sobre quase nada, e tem
cada vez menos certeza de tudo. Você deve estar se perguntando o que isso tem a
ver com o medo. Bom, recentemente ocorreu uma transformação impactante na minha
vida, quando repentinamente meu irmão mais novo faleceu. Isso atordoou a todos
e ainda estamos sob alguma forma de luto. Mas este acontecimento me fez pensar
muito naquilo que consideramos o maior de todos os nossos medos: o medo da morte.
Ao levar alguém que amei e
convivi muito próximo, a morte me fez pensar nela como jamais havia feito
antes. Porém, o curioso é que isso não elevou meu temor dela, mas fez com que
eu pensasse no imediatismo da vida. Por isso deixei para falar da morte no
final dessa crônica.
A morte me fez compreender que
tudo pode ser quebrado inesperadamente; qualquer instante pode ser o último da
nossa vida; não sabemos onde estaremos daqui há alguns minutos... Quando a
morte tocou alguém tão próximo de mim, fez com que eu percebesse o tamanho da
incerteza que paira sobre minha existência. E talvez, somente talvez, o meu maior
medo mudou diante dessa percepção.
Desde o instante em que me
deparei com a morte, tenho muito medo de desperdiçar meu tempo de vida com rancores,
brigas desnecessárias, pessoas que não significam nada pra mim, tarefas sem sentido,
compromissos levianos, obrigações impossíveis, problemas insolúveis, gente
teimosa, obtenções fúteis.
Sei que nem tudo precisa ter
um propósito. Mas se é para delimitar algum, que este faça sentido na indefinida
vida que me resta. Claro que isso tem um preço a ser pago, mas acho que não há
nada sem preço..., só o que nos resta é saber o quanto estamos dispostos a
pagar.
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