sábado, 27 de julho de 2024

RESENHA DE LIVRO – O ACONTECIMENTO

Fazendo uma pesquisa recentemente sobre autores que ganharam o Nobel de Literatura, foi que ouvi falar pela primeira vez dessa escritora que fez da própria vida, seu conteúdo literário. Em 2022 Annie Ernaux recebeu a consagração máxima pelo conjunto de sua obra, cujo ingrediente fundamental é sua vivência, cada um dos livros de Ernaux é um fragmento de sua história.

É preciso coragem para desnudar-se, elemento que é amplamente percebido no conteúdo dessa francesa, natural de Lillebonne. Evidentemente, você até pode não gostar da literatura produzida por Annie Ernaux (o que já consideraria incomum para um amante de leitura), mas é impossível deixar de reconhecer a coragem dessa mulher. O livro aqui resenhado termina precisamente com a confissão desse caminho percorrido: “Pois, para além de todas as razões sociais e psicológicas que pude encontrar naquilo que vivi, existe uma da qual estou mais certa do que tudo: as coisas aconteceram comigo para que eu as conte. E o verdadeiro objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações e meus pensamentos se tornem escrita...”.

O tema desse O ACONTECIMENTO é um tabu em praticamente todas as sociedades do mundo: aborto. Mas aqui a autora não se furta a escolher lados ou destilar opiniões. Só o que o leitor vai encontrar é o relato, honesto e simples, porém, não menos constrangedor e às vezes indigesto.

Em 1963, Annie Ernaux, então uma jovem estudante de vinte e três anos, engravida do namorado que acabara de conhecer. Completamente desamparada do apoio dele, da família e da sociedade como um todo, numa época em que o aborto era ilegal na França, Annie precisa encarar sozinha aquilo que denominou como “o acontecimento”, narrado quarenta anos depois, quando ela já era uma das escritoras mais importante de seu país.

A autora revisita os escritos do diário que havia escrito na época do ocorrido, mesclando impressões do passado com as reflexões advindas da sua memória. O resultado foi este livro; uma obra de avassaladora honestidade, o decurso solitário de uma mulher determinada a desafiar a hipocrisia da sociedade francesa, atravessando aquilo que me pareceu o elemento central: a vontade intrínseca de emancipação do corpo feminino, visto como propriedade pelo Estado, pela Religião e, portanto, alvo incessante do julgamento social.

A autora não diz diretamente, mas deixa evidenciado em seu relato, a importância de vozes femininas serem levantadas, para alavancar a desconstrução dos conceitos sociais que impuseram o lugar que deve ser da mulher, suas formas de se viver e como devem se comportar. Se ao término dessa leitura só o que você conseguiu considerar foi a crueldade da prática do aborto, talvez sua mente esteja mais influenciada pela cultura patriarcal na qual está inserido do que imagina. Eis aqui o tipo de conteúdo que ajuda a desmistificar o preconceito enraizado em nós.

Não estou me colocando contra ou a favor do aborto, apenas levantando algumas considerações suscitadas pelo próprio livro. Porque sobre esse tema, geralmente a sociedade deixa de levar em consideração a mulher, ou no mínimo a apontam como variável menos importante da equação. A intolerância com o relato de quem viveu a experiência também parece notório, deixando-se de lado a mulher enquanto indivíduo, ignorando-se o contexto, as consequências e perigos circunstanciais. E sim, o ocorrido deixou marcas indeléveis na autora, do mesmo modo em que deve acontecer com a maioria das mulheres que passam por esse tipo de trauma.

O ACONTECIMENTO é um trabalho cuja honestidade cortante pode provocar e talvez causar incômodo ou repulsa. Mas é uma leitura necessária, principalmente pela coragem expositiva, sem deixar que se perca a sensibilidade narrativa. As vozes da literatura intencionadas em trazer à tona aquilo que a sociedade costuma varrer para debaixo do tapete, por conta do desconforto gerado pelo tema, precisam receber nossa atenção, para que se quebre de uma vez por todas a dominação masculina do mundo.

NOTA: 8,7

sábado, 13 de julho de 2024

RESENHA DE LIVRO – O SILÊNCIO DOS INTELECTUAIS

Os ensaios reunidos neste trabalho, que foram originalmente apresentados num ciclo de conferências sobre o tema de mesmo título ao deste livro, em longínquo ano de 2005, levantou algumas questões pertinentes: “O que levou ao silêncio os intelectuais, antes tão ativos, diante do que acontece no mundo?”; “o que houve com a coragem de discernir abertamente diante de problemas que nos causam perplexidade?”; “houve, de fato, um silêncio dos intelectuais ou eles jamais se prestaram a contemplação?”; “de que modo os intelectuais poderiam contribuir para dar maior clareza aos acontecimentos?”; “quem são esses intelectuais autorizados a falar em nome da sociedade?”.

Mesmo após tantos anos passados, tais questionamentos ainda me parecem atuais, dadas as complexidades da sociedade brasileira e a continuidade do descolamento entre a voz de nossos pensadores e as muitas mazelas da realidade brasileira, que expõe distintos jogos ilícitos de poder.

Os participantes desses ciclos foram reunidos aqui para comentar, refletir e tentar responder a essas questões, reunidos pelo escritor e filósofo Adauto Novaes, um trabalho que não visa definir ou mesmo discutir a intervenção direta dos intelectuais na política, mas apenas discorrer sobre as questões levantadas.

Aqui teremos uma leitura breve das palestras organizadas por cada convidado, um time respeitável de figuras relevantes do cenário intelectual, como Marilena Chauí, Renato Janine Ribeiro, Francisco de Oliveira, Sergio Paulo Rouanet, Haquira Osakabe, e outros mais.

Como é consequência evidente em trabalhos que reúnem muitos autores, neste poderemos encontrar cada um deles tecendo suas considerações acerca de questões relacionadas com o tema do silêncio na seara intelectual, focando em diferentes perspectivas e pontos de vista. Cabe salientar também que alguns capítulos são mais palatáveis, outros mais complexos, alguns com linguagem acessível e outros textos mais técnicos.

Sabendo da importância em se discutir o país e ouvir o que nossos melhores pensadores têm a dizer sobre isso, o livro sustenta um tema de enorme importância. Sempre achei que a literatura devesse servir de palco para se analisar os impasses e estimas de uma sociedade, com impacto muito mais acentuado do que outras fontes culturais, dado a força de sua internalização.

Segundo o próprio organizador, Adauto Novaes, “Os intelectuais precisa aproveitar essa situação para apontar algo novo. Esse é o papel fundamental deles”. Ou seja, nos tempos modernos, não cabe mais a ideia clássica de que o intelectual é aquele ser distinto, que deixa os saberes particulares a cargo do tecnocrata e que faz uso de seu ócio para pensar sobre questões abstratas, que faz pouca ou nenhuma interferência na vida prática. Queremos ouvir o que os intelectuais têm a dizer, mas antes disso, compreender as razões de seus silêncios.

NOTA: 8,7