Fazendo uma pesquisa recentemente sobre autores que ganharam o Nobel de Literatura, foi que ouvi falar pela primeira vez dessa escritora que fez da própria vida, seu conteúdo literário. Em 2022 Annie Ernaux recebeu a consagração máxima pelo conjunto de sua obra, cujo ingrediente fundamental é sua vivência, cada um dos livros de Ernaux é um fragmento de sua história.
É preciso coragem para
desnudar-se, elemento que é amplamente percebido no conteúdo dessa francesa,
natural de Lillebonne. Evidentemente, você até pode não gostar da literatura
produzida por Annie Ernaux (o que já consideraria incomum para um amante
de leitura), mas é impossível deixar de reconhecer a coragem dessa mulher. O
livro aqui resenhado termina precisamente com a confissão desse caminho
percorrido: “Pois, para além de todas as razões sociais e psicológicas que
pude encontrar naquilo que vivi, existe uma da qual estou mais certa do que
tudo: as coisas aconteceram comigo para que eu as conte. E o verdadeiro
objetivo da minha vida talvez seja apenas este: que meu corpo, minhas sensações
e meus pensamentos se tornem escrita...”.
O tema desse O
ACONTECIMENTO é um tabu em praticamente todas as sociedades do mundo:
aborto. Mas aqui a autora não se furta a escolher lados ou destilar opiniões.
Só o que o leitor vai encontrar é o relato, honesto e simples, porém, não menos
constrangedor e às vezes indigesto.
Em 1963, Annie Ernaux, então
uma jovem estudante de vinte e três anos, engravida do namorado que acabara de
conhecer. Completamente desamparada do apoio dele, da família e da sociedade
como um todo, numa época em que o aborto era ilegal na França, Annie precisa
encarar sozinha aquilo que denominou como “o acontecimento”, narrado quarenta
anos depois, quando ela já era uma das escritoras mais importante de seu país.
A autora revisita os escritos
do diário que havia escrito na época do ocorrido, mesclando impressões do
passado com as reflexões advindas da sua memória. O resultado foi este livro;
uma obra de avassaladora honestidade, o decurso solitário de uma mulher
determinada a desafiar a hipocrisia da sociedade francesa, atravessando aquilo
que me pareceu o elemento central: a vontade intrínseca de emancipação do corpo
feminino, visto como propriedade pelo Estado, pela Religião e, portanto, alvo incessante
do julgamento social.
A autora não diz diretamente,
mas deixa evidenciado em seu relato, a importância de vozes femininas serem
levantadas, para alavancar a desconstrução dos conceitos sociais que impuseram
o lugar que deve ser da mulher, suas formas de se viver e como devem se
comportar. Se ao término dessa leitura só o que você conseguiu considerar foi a
crueldade da prática do aborto, talvez sua mente esteja mais influenciada pela
cultura patriarcal na qual está inserido do que imagina. Eis aqui o tipo de conteúdo
que ajuda a desmistificar o preconceito enraizado em nós.
Não estou me colocando contra ou a favor do aborto, apenas levantando algumas considerações suscitadas pelo próprio livro. Porque sobre esse tema, geralmente a sociedade deixa de levar em consideração a mulher, ou no mínimo a apontam como variável menos importante da equação. A intolerância com o relato de quem viveu a experiência também parece notório, deixando-se de lado a mulher enquanto indivíduo, ignorando-se o contexto, as consequências e perigos circunstanciais. E sim, o ocorrido deixou marcas indeléveis na autora, do mesmo modo em que deve acontecer com a maioria das mulheres que passam por esse tipo de trauma.
O ACONTECIMENTO é um trabalho cuja honestidade cortante pode provocar e talvez causar incômodo ou repulsa. Mas é uma leitura necessária, principalmente pela coragem expositiva, sem deixar que se perca a sensibilidade narrativa. As vozes da literatura intencionadas em trazer à tona aquilo que a sociedade costuma varrer para debaixo do tapete, por conta do desconforto gerado pelo tema, precisam receber nossa atenção, para que se quebre de uma vez por todas a dominação masculina do mundo.
NOTA: 8,7
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