Rever a casa onde vivi durante anos de minha infância não me traz nenhuma recordação pela qual se vale a pena lembrar.
Exceto uma...
Os dias de minha rotina de
moleque naquele velho barraco eram preenchidos por tédio, isolamento e muita,
muita pobreza, além das intermináveis inconstâncias de meus desequilibrados pais.
Mesmo assim, e contra a
vontade, estou de volta, parado em frente a fachada desse lugar sorumbático e
sem significado. Estaria completamente soterrado num passado adormecido, não
fosse...
Um único motivo.
Vejo paredes velhas, a tintas
descascando por conta do tempo, levaram toda familiaridade, e o mato no quintal
que crescera junto com meu receio de que, ao atravessar o portão, eu me veja
magicamente transportado de volta àquele tempo de trevas.
Devo dizer que meus motivos
não sejam exatamente nobres, mas merecem notoriedade; vim reencontrar uma
antiga amiga. Na verdade, ela foi a minha única amiga..., única.
Fomos embora quando eu ainda
era jovem, mamãe se cansou de apanhar do meu pai alcoólatra, juntou nossas
coisas e fugimos.
Depois de nossa família,
ninguém mais viveu na velha casa. Agora só restam muros pichados que circundam
o matagal do quintal, janelas e portas podres, o balanço no qual eu brincava
nos fundos da casa..., e a minha amiga.
Não que eu seja desnaturado,
eu a convidei para nos acompanhar na fuga, mas ela sempre foi muito
conservadora, não gostava de mudanças. Disse que ficaria aqui, esperando por
minha visita.
Certa feita, tive a péssima ideia
de falar sobre ela com um colega de escola. Disse como eram os nossos
encontros, como era fascinante seu jeito, falei sobre como a gente combinava em
quase tudo. Cheguei a confessar que queria me casar com ela quando
crescêssemos. Mas quando citei seu nome, o interlocutor começou a rir de mim,
disse que eu precisava procurar um psicólogo, pois estava doido.
Depois disso, não falei mais
dela com ninguém.
Hoje tenho dezoito anos, acho
que nunca me apaixonei por ninguém. As pessoas me acham estranho, atravessam a
rua para me evitar. Não são como minha amiga, que me respeita, me entende, e
minha cara de chapisco nunca foi um problema para ela.
Sua lembrança me traz coragem.
Devolve-me o ânimo, eu fico cheio de esperança de que as coisas irão voltar a
ser como eram antigamente, quando a gente brincava juntos pela casa velha, no
quintal, no balanço; eu e ela, subindo e descendo, pendurados por correntes
enferrujadas, sentindo a brisa soprar em nossos rostos durante a descida.
Muitas vezes ao som dos gritos histéricos de minha mãe e meu pai, se
digladiando dentro de casa, feito dois idiotas.
É engraçado pensar nisso, pois
sempre que mamãe me via a brincar no balanço, se comportava como as outras
pessoas, dizia que eu era idiota.
Eram tempos difíceis, mas como
mencionei antes: minha amiga estava do meu lado, então nunca me sentia sozinho.
Lembro-me do dia em que levei
uma surra porque havia me esquecido de limpar a cozinha. Doeu pra caramba,
sabe, mas aquela surra valeu muito a pena. Se eu pudesse voltar no tempo, faria
tudo de novo, pois foi naquela tarde que minha amiga me pediu em casamento pela
primeira vez.
Eu não sei direito como os
adultos lidam com essa coisa de amor. Mas diferente de meus pais, eu e minha
amiga nunca brigamos, nunca discordamos em nada. Acho que meus sentimentos por
ela são os mais maneiros que uma pessoa poderia sentir por outra. A única coisa
que me faltava era atitude.
Na verdade, sempre me
faltou... Porque se ao menos eu fosse um pouco mais valente, talvez já tivesse
tomado coragem suficiente para ultrapassar esse portão que nos separa. Mas o
máximo que minha vergonhosa bravura me permitiu foi subir no muro. Era noite e
estava muito escuro. E eu fiquei sentado no alto do muro, observando as trevas
do meu antigo quintal, de onde eu até podia ouvir os sussurros dela me
chamando...
Novamente estou aqui, parado
em frente à velha casa. Esperando.
Hoje trouxe aquela pá que você
pediu.
Talvez eu esteja me iludindo
achando que mais cedo ou mais tarde, meu peito vai se encher de valentia, e
fazer com que eu consiga prosseguir na direção de minha amiga.
Mas no momento eu sei de mim.
Conheço essa irrefreável covardia e percebo que toda minha intenção, por mais
que seja boa, não é suficiente pra fazer-me seguir em frente.
Perdoe-me, querida
companheira..., minha única amiga. Mas assim como eu acredito em você, espero
que você também acredite em mim quando falo que sinto sua falta. Contudo, sou
fraco e tenho medo.
Medo de entrar nessa casa;
Medo de que as pessoas estejam
certas sobre eu ser esquisito;
Medo de não a encontrar aí
dentro;