sábado, 21 de setembro de 2024

RESENHA DE LIVRO – ENQUANTO O DITADOR DORMIA

A história sempre foi fonte inesgotável de inspiração para escritores. Alguns autores de romances históricos sabem construir obras com enorme eficiência, tornando-as quase um relato verídico ou simplesmente fazendo com que o leitor mergulhe naquele determinado universo. Trata-se de um gênero que, articulado para revisitar o passado ou trazer um olhar meticuloso e possível de suas lacunas, faz com que nasça narrativas sensacionais e inesquecíveis. O passado da humanidade é tão diversificado, rico e intrigante, que é difícil compreender quando um autor erra a mão ao fazer uso de fontes históricas.

ENQUANTO O DITADOR DORMIA, do escritor português Domingos do Amaral, tem o país de Portugal como cenário central durante os anos da Segunda Guerra Mundial, em toda sua postura de neutralidade no conflito (muitas aspas aqui). Construído por meio da multiplicidade étnica e estruturando-se em relações temporais e espaciais, a trama se passa na Lisboa do início da década de 40, uma cidade que sustentava posição privilegiada, lugar de fuga e migração de diversas nacionalidades europeias, tudo acontecendo “enquanto o ditador Salazar dormia”, Portugal foi uma das principais rotas de fuga para a América.

A história é narrada em primeira pessoa, deparamo-nos com as memórias de um ex-espião britânico, 50 anos após os acontecimentos, quando já em idade avançada retorna a Lisboa para o casamento de um neto. O reencontro com a cidade suscita memórias daquele tempo efervescente, onde a cidade havia se transformado numa verdadeira capital cosmopolita do continente em guerra.

Domingos do Amaral contextualiza sua trama de forma eficiente, tenta manter-se fiel aos eventos, descreve fatos marcantes, menciona datas, lugares, feitos cruciais e personalidades envolvidas no conflito. Sem a necessidade do olhar jornalístico, o autor faz uso de liberdade artística para enaltecer Portugal, mostrando que o país esteve na condição de cenário charmoso daquele período, onde intrigas aconteciam em suas profundezas, enquanto seu líder tentava conduzir uma postura de neutralidade e proximidade com ambos os lados do conflito.

O livro possui uma leitura ágil e charmosa, os diálogos entre as personagens são deliciosos de serem lidos, principalmente quando o protagonista Jack Gil encarna o 007, alternando instantes de aventuras de espionagem com flertes em mulheres deslumbrantes.

Apesar do período histórico e de sustentar um título que faz referência ao chefe de estado português, a obra se mantém imparcial, não critica nem concorda com Salazar, o que pode ser considerado um acerto, pois não se trata de conteúdo político, mas de um romance. O leitor que possui pouca familiaridade com eventos e personagens da Segunda Guerra poderá se incomodar com algumas referências, mas nada que chegue a interferir na compreensão da trama.

ENQUANTO O DITADOR DORMIA é um romance histórico que nos traz conjecturas interessantes de um cenário que recebeu pouca atenção durante o tempo da Segunda Grande Guerra. Uma narrativa fluida, cheia de referências assertivas e mistura de personagens reais e fictícios..., como o próprio autor definiu em entrevista: trata-se uma ficção criada por um apaixonado pela história daquele período.

NOTA: 7,8

domingo, 8 de setembro de 2024

CONTO - REENCONTRO

Rever a casa onde vivi durante anos de minha infância não me traz nenhuma recordação pela qual se vale a pena lembrar.

Exceto uma...

Os dias de minha rotina de moleque naquele velho barraco eram preenchidos por tédio, isolamento e muita, muita pobreza, além das intermináveis inconstâncias de meus desequilibrados pais.

Mesmo assim, e contra a vontade, estou de volta, parado em frente a fachada desse lugar sorumbático e sem significado. Estaria completamente soterrado num passado adormecido, não fosse...

Um único motivo.

Vejo paredes velhas, a tintas descascando por conta do tempo, levaram toda familiaridade, e o mato no quintal que crescera junto com meu receio de que, ao atravessar o portão, eu me veja magicamente transportado de volta àquele tempo de trevas.

Devo dizer que meus motivos não sejam exatamente nobres, mas merecem notoriedade; vim reencontrar uma antiga amiga. Na verdade, ela foi a minha única amiga..., única.

Fomos embora quando eu ainda era jovem, mamãe se cansou de apanhar do meu pai alcoólatra, juntou nossas coisas e fugimos.

Depois de nossa família, ninguém mais viveu na velha casa. Agora só restam muros pichados que circundam o matagal do quintal, janelas e portas podres, o balanço no qual eu brincava nos fundos da casa..., e a minha amiga.

Não que eu seja desnaturado, eu a convidei para nos acompanhar na fuga, mas ela sempre foi muito conservadora, não gostava de mudanças. Disse que ficaria aqui, esperando por minha visita.

Certa feita, tive a péssima ideia de falar sobre ela com um colega de escola. Disse como eram os nossos encontros, como era fascinante seu jeito, falei sobre como a gente combinava em quase tudo. Cheguei a confessar que queria me casar com ela quando crescêssemos. Mas quando citei seu nome, o interlocutor começou a rir de mim, disse que eu precisava procurar um psicólogo, pois estava doido.

Depois disso, não falei mais dela com ninguém.

Hoje tenho dezoito anos, acho que nunca me apaixonei por ninguém. As pessoas me acham estranho, atravessam a rua para me evitar. Não são como minha amiga, que me respeita, me entende, e minha cara de chapisco nunca foi um problema para ela.

Sua lembrança me traz coragem. Devolve-me o ânimo, eu fico cheio de esperança de que as coisas irão voltar a ser como eram antigamente, quando a gente brincava juntos pela casa velha, no quintal, no balanço; eu e ela, subindo e descendo, pendurados por correntes enferrujadas, sentindo a brisa soprar em nossos rostos durante a descida. Muitas vezes ao som dos gritos histéricos de minha mãe e meu pai, se digladiando dentro de casa, feito dois idiotas.

É engraçado pensar nisso, pois sempre que mamãe me via a brincar no balanço, se comportava como as outras pessoas, dizia que eu era idiota.

Eram tempos difíceis, mas como mencionei antes: minha amiga estava do meu lado, então nunca me sentia sozinho.

Lembro-me do dia em que levei uma surra porque havia me esquecido de limpar a cozinha. Doeu pra caramba, sabe, mas aquela surra valeu muito a pena. Se eu pudesse voltar no tempo, faria tudo de novo, pois foi naquela tarde que minha amiga me pediu em casamento pela primeira vez.

Eu não sei direito como os adultos lidam com essa coisa de amor. Mas diferente de meus pais, eu e minha amiga nunca brigamos, nunca discordamos em nada. Acho que meus sentimentos por ela são os mais maneiros que uma pessoa poderia sentir por outra. A única coisa que me faltava era atitude.

Na verdade, sempre me faltou... Porque se ao menos eu fosse um pouco mais valente, talvez já tivesse tomado coragem suficiente para ultrapassar esse portão que nos separa. Mas o máximo que minha vergonhosa bravura me permitiu foi subir no muro. Era noite e estava muito escuro. E eu fiquei sentado no alto do muro, observando as trevas do meu antigo quintal, de onde eu até podia ouvir os sussurros dela me chamando...

Novamente estou aqui, parado em frente à velha casa. Esperando.

Hoje trouxe aquela pá que você pediu.

Talvez eu esteja me iludindo achando que mais cedo ou mais tarde, meu peito vai se encher de valentia, e fazer com que eu consiga prosseguir na direção de minha amiga.

Mas no momento eu sei de mim. Conheço essa irrefreável covardia e percebo que toda minha intenção, por mais que seja boa, não é suficiente pra fazer-me seguir em frente.

Perdoe-me, querida companheira..., minha única amiga. Mas assim como eu acredito em você, espero que você também acredite em mim quando falo que sinto sua falta. Contudo, sou fraco e tenho medo.

Medo de entrar nessa casa;

Medo de que as pessoas estejam certas sobre eu ser esquisito;

Medo de não a encontrar aí dentro;

Medo de descobrir que esses olhos verdes lindos, só existiram na minha imaginação...

                                                                     ***

* TEXTO PUBLICADO NO PORTAL RECANTO DAS LETRAS, NO ANO DE 2009