Um dos reducionismos mais atrozes que assombra a história e a ciências humanas é o completo e suspeito silêncio acerca do pensamento feminino e da mulher como pensadora. A grande maioria dos documentos oficiais, manuais de orientação comportamental e jornalístico, assim como a própria literatura, todos foram escritos por homens, e quase todos eles tratam os temas femininos exatamente como o senso comum e vulgar de sua época. Ou seja, sempre foi relegado ao homem o desenvolvimento da história…, mas a exclusão do feminino trouxe prejuízos para a construção do conhecimento.
Desse modo, quando se entra na
esfera da história da intimidade sexual, o cenário é ainda mais opressivo,
relegando à mulher a condição de mero receptáculo gestatório ou diversão
libidinal, condição das plebeias que não conseguiram um casamento arranjado. É
o que relata a própria Mary Del Priore, autora deste excelente HISTÓRIAS
ÍNTIMAS – sexualidade e erotismo na história do Brasil: “o historiador
pouco sabe sobre como se comportavam, na cama, homens e mulheres” (pag. 77). Só
o que resta fazer é mergulhar profundamente em documentos da época em que se
estuda, verificar anotações de religiosos, tratados médicos, pinturas e
poesias, mas principalmente, os meios de comunicação; e exatamente como mencionado,
são instâncias perpetuamente dominadas por homens. Portanto, a história da
sexualidade brasileira, e por que não dizer a história da sexualidade mundial,
é uma história essencialmente misógina.
Del Priore encarou o desafio e
tentou abranger, da colônia ao império, os aspectos da intimidade na história
brasileira. Divido em cinco capítulos, a obra aborda os séculos XVI, XVII e
XVIII, intitulado de “O século hipócrita”. Depois vem o século XIX como sendo a
“Primeira rachadura no muro da repressão”, passando pelas primeiras décadas do
século vinte “Olhares indiscretos”, terminando a jornada abarcando desde o
regime militar até os dias atuais “As transformações da intimidade”.
Desde a estranheza por parte
da corte portuguesa que desembarcou aqui a cerca da nudez de povos indígenas,
passando pelo traumático abuso de escravizadas por parte de seus senhores, que
mais do que usá-las como força de trabalho, também serviam como escravas
sexuais, a obra relata a influência pesada da religião sobre o comportamento
sexual da sociedade, que apregoava o sexo como forma exclusiva de procriação, a
opressão do patriarcado, a permissão da promiscuidade irrestrita à toda mulher
que não fosse branca e de “boa família”, as doenças sexualmente transmissíveis
que trouxeram consigo pânicos e preconceitos direcionados as minorias, como foi
o caso da aids.
Um dos aspectos muito legais da obra são muitas curiosidades sobre a sexualidade de nossos ancestrais, como a ausência de beijo na boca, que foi se tornar um hábito prazeroso somente após a introdução de higienizadores bucais pela indústria; exóticos métodos contraceptivos sem nenhuma eficácia científica, o curioso interesse dos homens pelos pés femininos, a ausência de privacidade nos lares do Brasil colônia, impossibilitando o ato sexual, lares sem divisões por aposentos, onde as pessoas pobres vestiam um mísero pedaço de trapo, dentro de uma casa sem fechadura, pois tratava-se de item que custava muito caro. Tudo narrado com o belo e enriquecido conteúdo erudito da autora, o que não torna a leitura cansativa, mas ao contrário, uma experiência extremamente prazerosa.
HISTÓRIAS ÍNTIMAS – sexualidade e erotismo na história do Brasil, é uma obra que articula de forma fluída e agradável, os diferentes momentos da história da sexualidade brasileira, a qual em seu cerne, escancara a difícil jornada de emancipação e libertação pelas mulheres, das amarras opressivas do patriarcado, simplesmente mais um trabalho irretocável dessa grande historiadora que é Mary Del Priore.
NOTA: 🔟😍