segunda-feira, 21 de abril de 2025

RESENHA DE LIVRO – HISTÓRIAS ÍNTIMAS – sexualidade e erotismo na história do Brasil

Um dos reducionismos mais atrozes que assombra a história e a ciências humanas é o completo e suspeito silêncio acerca do pensamento feminino e da mulher como pensadora. A grande maioria dos documentos oficiais, manuais de orientação comportamental e jornalístico, assim como a própria literatura, todos foram escritos por homens, e quase todos eles tratam os temas femininos exatamente como o senso comum e vulgar de sua época. Ou seja, sempre foi relegado ao homem o desenvolvimento da história…, mas a exclusão do feminino trouxe prejuízos para a construção do conhecimento.

Desse modo, quando se entra na esfera da história da intimidade sexual, o cenário é ainda mais opressivo, relegando à mulher a condição de mero receptáculo gestatório ou diversão libidinal, condição das plebeias que não conseguiram um casamento arranjado. É o que relata a própria Mary Del Priore, autora deste excelente HISTÓRIAS ÍNTIMAS – sexualidade e erotismo na história do Brasil: “o historiador pouco sabe sobre como se comportavam, na cama, homens e mulheres” (pag. 77). Só o que resta fazer é mergulhar profundamente em documentos da época em que se estuda, verificar anotações de religiosos, tratados médicos, pinturas e poesias, mas principalmente, os meios de comunicação; e exatamente como mencionado, são instâncias perpetuamente dominadas por homens. Portanto, a história da sexualidade brasileira, e por que não dizer a história da sexualidade mundial, é uma história essencialmente misógina.

Del Priore encarou o desafio e tentou abranger, da colônia ao império, os aspectos da intimidade na história brasileira. Divido em cinco capítulos, a obra aborda os séculos XVI, XVII e XVIII, intitulado de “O século hipócrita”. Depois vem o século XIX como sendo a “Primeira rachadura no muro da repressão”, passando pelas primeiras décadas do século vinte “Olhares indiscretos”, terminando a jornada abarcando desde o regime militar até os dias atuais “As transformações da intimidade”.

Desde a estranheza por parte da corte portuguesa que desembarcou aqui a cerca da nudez de povos indígenas, passando pelo traumático abuso de escravizadas por parte de seus senhores, que mais do que usá-las como força de trabalho, também serviam como escravas sexuais, a obra relata a influência pesada da religião sobre o comportamento sexual da sociedade, que apregoava o sexo como forma exclusiva de procriação, a opressão do patriarcado, a permissão da promiscuidade irrestrita à toda mulher que não fosse branca e de “boa família”, as doenças sexualmente transmissíveis que trouxeram consigo pânicos e preconceitos direcionados as minorias, como foi o caso da aids.

Um dos aspectos muito legais da obra são muitas curiosidades sobre a sexualidade de nossos ancestrais, como a ausência de beijo na boca, que foi se tornar um hábito prazeroso somente após a introdução de higienizadores bucais pela indústria; exóticos métodos contraceptivos sem nenhuma eficácia científica, o curioso interesse dos homens pelos pés femininos, a ausência de privacidade nos lares do Brasil colônia, impossibilitando o ato sexual, lares sem divisões por aposentos, onde as pessoas pobres vestiam um mísero pedaço de trapo, dentro de uma casa sem fechadura, pois tratava-se de item que custava muito caro. Tudo narrado com o belo e enriquecido conteúdo erudito da autora, o que não torna a leitura cansativa, mas ao contrário, uma experiência extremamente prazerosa.

HISTÓRIAS ÍNTIMAS – sexualidade e erotismo na história do Brasil, é uma obra que articula de forma fluída e agradável, os diferentes momentos da história da sexualidade brasileira, a qual em seu cerne, escancara a difícil jornada de emancipação e libertação pelas mulheres, das amarras opressivas do patriarcado, simplesmente mais um trabalho irretocável dessa grande historiadora que é Mary Del Priore.

NOTA: 🔟😍

domingo, 6 de abril de 2025

RESENHA DE LIVRO – A JANGADA DE PEDRA

O crítico literário José Castello escreveu que “a literatura não chega a ser o que está dentro de um livro, é mais sobre a luta que um livro esconde”. Essa ideia basicamente descortina o que não está explicitamente inserido neste A JANGADA DE PEDRA, romance do aclamado escritor português e altamente resenhado aqui no blog, José Saramago: um acidente geológico como metáfora e, por que não dizer o anseio, de um autor crítico de políticas deletérias capitalistas que dominaram a Europa, desde a época de seu lançamento.

Desse modo, na trama os Pireneus se racham e a Península Ibérica se separa do continente Europeu. Temos um romance pós-moderno que, pela via do ficcional problematiza a adesão de Portugal e Espanha à comunidade Europeia. A narrativa começa com um acontecimento insólito; uma ruptura geológica ocorre, provocando o deslocamento da Península Ibérica, que passa a vagar pelo oceano como uma ilha em movimento.

Através desse ocorrido, Saramago insere seus personagens e desenvolve seu universo utópico, baseado na evidente fragilidade dos antigos laços que a região sustentava com a Europa. Das obras do autor que li até aqui, está é, sem sombra de dúvida, sua maior crítica política ao sistema econômico capitalista europeu (a caverna também me parece seguir este modelo crítico, mas aqui a narrativa é mais escancarada e subentende a vontade do autor de uma nova ordem mundial em oposição à então comunidade europeia).

A península se liberta do continente, como se fosse uma jangada de pedra, seria a metáfora para o comportamento da pessoa que, esgotada pela despersonalização do mundo global, se atreve a romper com ditames que lhe eram entendidos como definitivos, tornando-se soberana e responsável pelo seu destino, quase como uma personagem na obra.

E por falar em personagens, temos aqui cinco que são o arco central, inseridos no fenômeno da ruptura, são pessoas que, igualmente a ousadia da ilha agora guiada por vontade própria, eles têm a possibilidade de recuperação de suas múltiplas vozes silenciadas, talvez prontas para se tornarem sujeitos de seus destinos. Desprender-se de sua geografia original exigirá às personagens a mudança que as levará a redescoberta de suas identidades; as personagens, perante a inevitabilidade natural, podem finalmente preencher suas vidas com significação. Cada um deles enfrenta um dilema pessoal, que antes da inesperada ruptura, consideravam como destinos inevitáveis, eles se tornam indivíduos e gestores de suas ações.

Incomodou-me um pouco a forma com que, desconhecidos se encontram de forma efêmera e entram numa condição nômade, juntam-se os cinco, mais um cachorro, quase como uma epopeia justificada por suas existências sem sentido, mas rapidamente orquestram a ruptura com o passado para aceitar o que lhes está diante dos olhos, sem nenhum questionamento, medo ou problematização condicional, me pareceu um pouco corrido, mas talvez até mesmo isso tenha sido proposital na trama: a inserção em uma vida não idealizada que convida a novas experiências. Contudo, de todas as obras que li de Saramago, as relações entre personagens aqui são as mais desinteressantes.  

A JANGADA DE PEDRA é uma crítica dentro de um romance, que busca exibir o que a península tem de melhor e que recusa modelos impostos que trazem o empobrecimento daquilo que somos; tanto a ruptura da ilha, quanto o grupo de pessoas desapegadas de conceitos estabelecidos, buscam uma forma autêntica de viver.

NOTA: 6,6