terça-feira, 27 de maio de 2025

CRÔNICA – BIBLIOFILIA

Há alguns anos, contratei o serviço de marcenaria para modificar minha estante de livros. Enquanto fazia suas medidas e anotações, notei que o profissional olhava ao redor, para minha querida e modesta coleção de volumes. Resolveu puxar assunto:

– Você gosta de filosofia?

– Além de outros temas... – respondi, meio surpreso, pois esperava outro tipo de abordagem – Também adoro ler sociologia, história, mas o romance é o meu gênero favorito.

– Um rapazinho que trabalha comigo também curte filosofia, – disse ele, enquanto esticava a fita métrica na parede – vive bancando o pensador lá na oficina, sempre tem um conselho ou opinião sobre as coisas da vida.

– Ele deve gostar de ler – supus, e tentava decifrar se aquele comentário dele seria uma observação despretensiosa, ou se levantava uma hipótese de que toda pessoa que gosta de ler é um chato que adora meter o bedelho na vida alheia, visto que ambas hipóteses são absolutamente plausíveis.

Após outra anotação de medidas, ele pousou as duas mãos na cintura, olhou ao redor do escritório, e concluiu:

– Antes de chegar aqui eu achava que sim. Mas agora que estou diante dessa quantidade toda de livros, estou certo de que, de fato, meu colega até aprecia leitura. Mas obsessão de verdade deve ser o seu caso.

Foi a primeira vez em que alguém reparou nesse meu amor irrecuperável. Envaidecido, concluí que havia contratado o profissional certo (o resultado do serviço provou que ele não era, mas isso não vem ao caso), afinal, ele sabia que teria de caprichar na ampliação da estante. Porque é fato que todo amante quer sempre o melhor para o objeto amado.

– Geralmente não é isso o que as pessoas dizem quando veem meus livros pela primeira vez – comentei, sentindo-me o maior leitor do mundo – mas obrigado.

– E o que elas dizem?

– Basicamente fazem duas perguntas: se eu já li todos esses livros, e se eu gosto de ler.

– Bom, a primeira pergunta é até aceitável, já que quase ninguém lê livros nesse país. Contudo, a segunda pergunta me parece meio óbvia, né?

– Acho que as pessoas costumam perguntar coisas óbvias, porque precisam de algum tempo para assimilar aquela realidade a qual se está confrontando.

Não foi preciso muito para ele concluir que não fazia nenhum sentido comprar livros simplesmente para encher prateleiras. Geralmente um pseudo intelectual compra livros para deixar sua estante cheia e, através disso, parecer erudito aos olhos dos outros; enquanto um leitor de verdade precisa comprar estantes para guardar seus amados livros. Parece se tratar de dois casos semelhantes, mas há uma grande diferença aqui.

Precisei dos serviços de marcenaria, justamente porque meus livros já não estavam a caber nas antigas prateleiras, então tive que repensar o ambiente, arranjar mais espaço. Sim, pois meus livros amontoam-se cada vez mais, e creio que essa rotina de aquisição de novas obras só terá fim quando eu morrer.

O historiador português João José Alves Dias definiu como bibliófilo aquele sujeito que ama os livros. Encontrei o termo por acaso, enquanto fazia uma pesquisa sobre as maiores bibliotecas do mundo. Antes disso, eu não sabia que existia uma definição para essa obsessão que me é característica; contentava-me com a classificação de amante de livros.

Talvez a condição de se gostar tanto de algo ou alguém, deriva de experiências positivas que vivemos. Não acredito na ideia de amor à primeira vista, isso está mais para uma paixão, e como tal, tem prazo de validade. Ou seja, foi preciso que houvesse uma relação transformadora de longa data para que nascesse este bibliófilo que voz escreve.

Eu era muito jovem, vivendo numa década de noventa onde as mudanças culturais aceleravam-se, e as novas tecnologias surgiam como se fossem alienígenas que vieram de muito longe para nos proporcionar avanços significativos na vida cotidiana. Minha maior característica nessa fase foi a timidez; era um jovem muito fechado, passava grande parte do meu dia, sozinho, ouvindo música no rádio ou lendo gibi. Os instantes em que interagia com outras pessoas era na escola ou nas partidas de futebol no meio da rua. Amigos? Quase nenhum, sempre preferi fazer minhas coisas sozinho..., às vezes isso me incomodava um pouco, então para escapar dessa realidade solitária, minha mente criava diversos amigos imaginários, os quais preencheram minha juventude.

Pois numa tarde enfadonha de sábado, estava deitado no quarto, sem nada pra fazer, olhando as manchas na parede, formadas pelo desgaste. Então reparei na cabeceira da cama do meu irmão mais velho, um livro de autoajuda chamado O Poder do Subconsciente.

Vou dar uma olhada nisso, foi o que pensei, já que não tinha mais nada pra fazer mesmo – naquela época não havia internet, tampouco os modernos smartphones, quase nada para nos distrair da rotina enfadonha – Portanto, aquele livro esquecido no quarto, passou de uma opção improvável para um “não custa tentar”. Mal sabia eu que estava vivendo o instante que seria o divisor na minha vida: o fim de uma etapa completamente desprovida de entusiasmos, para iniciar uma nova fase onde os livros se tornariam meus companheiros inseparáveis.

Não exagero quando digo que os livros salvaram a minha vida. Porque conheço bem a melancolia que espreita minha existência, e os pensamentos destrutivos que me acometiam nos dias de profundo desalento..., a leitura servia como um método de apreciação contínuo da vida.

Através dos livros aprendi a ter maior concentração, melhorei a dicção e aumentei meu vocabulário, adquiri o prazer pelo desenvolvimento de longo prazo, aprendi a ser mais paciente, descobri pessoas incrivelmente sábias, conheci culturas distintas, impressionei-me com a engenhosidade dos criadores de mundos…, seja para o bem ou para o mal, compreendi a leitura como uma plataforma de conhecimento inesgotável…, também chorei perante descrições sensíveis que desnudam a alma humana.

Os livros entraram na minha vida naquela tarde cheia de tédio e dela nunca mais saíram. Aquele singelo volume sobre a cabeceira, desprezado, ignorado por todos, inclusive por seu proprietário. Meu irmão nunca teve interesse em ler, mas na sua cabeça de jovem cheio de hormônios, pairava o interesse em seduzir garotas. Então ele andava pra cima e pra baixo com aqueles livros de autoajuda (o gênero estava na moda naquela época), porque isso o fazia parecer um rapaz distinto, intelectual. Ao que parece, isso atraía a atenção das garotas..., bons tempos aquele.

Foi também por influencia dos livros que adquiri o gosto pela escrita, quase como um inevitável destino. Mas confesso que gosto mais da palavra bibliófilo do que escritor, pois soa pedante. Fato é que, independente de haver um termo que defina minha relação de amor com os livros, talvez para além dessa definição romântica sobre um hábito, o que exista seja algo mais ordinário, apenas um costume que foi praticado até se tornar uma recorrência inevitável. Afinal, não sou especial porque leio, mas os livros sim, são especiais por conseguirem atrair o interesse do mais desinteressado sujeito, entediado naquele quarto de paredes desproporcionais, e o transformá-lo neste orgulhoso bibliófilo…

sábado, 3 de maio de 2025

RESENHA DE LIVRO – MAR DE TELHAS

Nos tempos em que literatura era pedantismo burguês e seu pleno acesso um privilégio de poucos, as histórias e fábulas geralmente terminavam com casais heroicos vivendo felizes para sempre. Se fossem narrativas menos fantasiosas ou, no mínimo, intencionadas em desnudar a verdadeira natureza das relações humanas, haveria mesmo espaço para serem felizes no final?

A escritora e jornalista Mariana Lozzi surgiu no meu percurso de leituras sem pedir licença, e escancarou a realidade, digamos, menos palatável do ser humano; deixou explicitado que não existe um passado idílico ao qual podemos retornar para que sejamos mais felizes. Só o que nos é possibilitado é a crueza de nossa natureza, cuja banalidade muitas vezes será obscurecida por instintos mais primitivos e indecorosos.

MAR DE TELHAS é uma obra singular que consegue, de maneira generosa sem deixar de ser suave, dialogar com o leitor. Uma narrativa que possui frescor trágico, quase como um sopro após a palmada, dimensões que ligam, por camadas enevoadas, a autora, a mãe, o pai, o filho e o leitor. Pode ser que algumas dimensões mais fortes desses seres nos levem a lapsos de memórias em comum.

Na trama, três membros de uma família dividem as páginas dessa meticulosa trajetória (há um quarto membro, mas que nos abandona logo nas primeiras páginas), na qual uma família compartilha excentricidades, comunga o absurdo e idolatra o tédio; a mãe, cujo casamento nublou os instintos mais primitivos ou se livrou de influências que lhe soavam mais características; o pai que do alto da sua mediocridade procura um modo de fazer dessa abundante banalidade uma forma de manter seus afetos distantes da natureza repulsiva; e temos o filho, menino quieto e delicado, que parece não encontrar sentido em sua existência, por isso vive em silêncio sepulcral, talvez por temer certa familiaridade com os seus, ou por mero desencaixe.

A evolução da leitura é prazerosa, segmenta-se por capítulos curtos, de linguagem fácil, porém, não menos delicada, muitas vezes comunga de um trejeito regional, alguns instantes me fizeram lembrar grandes escritores, como Graciliano Ramos. Temos aqui uma narrativa cuja beleza se sustenta em seu encruamento, o foco está sempre no ser humano. O resto é apenas pano de fundo.

Mariana Lozzi enriquece seu texto por meio de uma compreensão ampla não apenas de sua própria reflexão intelectual sobre os fatos, mas também estimula o desenvolvimento do apreço pela problematização de questões que não foram analisadas profundamente por suas personagens (recurso que é apreciável, visto que deixa esta tarefa para o leitor). Seu texto não visa docilizar os corpos para narrar cidadãos integrados ao sistema vigente, mas despertar no leitor a capacidade de pensar por conta própria sobre todos os problemas e questões que afloram no cotidiano.

 Os subcapítulos curtos se mostraram um caprichoso problema. Conforme eram modestos em extensão, eu sentia falta de mergulhar um pouco mais na vivência de cada indivíduo. De qualquer forma, a autora dedica um capítulo exclusivamente a cada uma de suas personagens, cujas vivências possibilita a inserção de outras personagens que igualmente seriam interessantes de se ler, e nos deixa familiarizado com a tragédia daquela singela família, a qual poderia se estender geracionalmente, como fez Gabriel Garcia Marques em seu notório Cem anos de Solidão.

MAR DE TELHAS é uma tragédia pós moderna no sentido mais grego do termo, narrado de um modo sensível, honesto e quase poético. Não convida à uma épica jornada instrumental, mas nos joga para dentro daquilo que talvez nos seja mais familiar: o lado grotesco e surreal do inconsciente humano.

NOTA: 9,08