Há alguns anos, contratei o serviço de marcenaria para modificar minha estante de livros. Enquanto fazia suas medidas e anotações, notei que o profissional olhava ao redor, para minha querida e modesta coleção de volumes. Resolveu puxar assunto:
– Você gosta de
filosofia?
– Além de outros temas...
– respondi, meio surpreso, pois esperava outro tipo de abordagem – Também adoro
ler sociologia, história, mas o romance é o meu gênero favorito.
– Um rapazinho que
trabalha comigo também curte filosofia, – disse ele, enquanto esticava a fita
métrica na parede – vive bancando o pensador lá na oficina, sempre tem um
conselho ou opinião sobre as coisas da vida.
– Ele deve gostar de ler
– supus, e tentava decifrar se aquele comentário dele seria uma observação
despretensiosa, ou se levantava uma hipótese de que toda pessoa que gosta de
ler é um chato que adora meter o bedelho na vida alheia, visto que ambas
hipóteses são absolutamente plausíveis.
Após outra anotação de
medidas, ele pousou as duas mãos na cintura, olhou ao redor do escritório, e
concluiu:
– Antes de chegar aqui eu
achava que sim. Mas agora que estou diante dessa quantidade toda de livros,
estou certo de que, de fato, meu colega até aprecia leitura. Mas obsessão de
verdade deve ser o seu caso.
Foi a primeira vez em que
alguém reparou nesse meu amor irrecuperável. Envaidecido, concluí que havia
contratado o profissional certo (o resultado do serviço provou que ele não era,
mas isso não vem ao caso), afinal, ele sabia que teria de caprichar na ampliação
da estante. Porque é fato que todo amante quer sempre o melhor para o objeto
amado.
– Geralmente não é isso o
que as pessoas dizem quando veem meus livros pela primeira vez – comentei,
sentindo-me o maior leitor do mundo – mas obrigado.
– E o que elas dizem?
– Basicamente fazem duas
perguntas: se eu já li todos esses livros, e se eu gosto de ler.
– Bom, a primeira
pergunta é até aceitável, já que quase ninguém lê livros nesse país. Contudo, a
segunda pergunta me parece meio óbvia, né?
– Acho que as pessoas
costumam perguntar coisas óbvias, porque precisam de algum tempo para assimilar
aquela realidade a qual se está confrontando.
Não foi preciso muito
para ele concluir que não fazia nenhum sentido comprar livros simplesmente para
encher prateleiras. Geralmente um pseudo intelectual compra livros para deixar
sua estante cheia e, através disso, parecer erudito aos olhos dos outros;
enquanto um leitor de verdade precisa comprar estantes para guardar seus amados
livros. Parece se tratar de dois casos semelhantes, mas há uma grande diferença
aqui.
Precisei dos serviços de marcenaria,
justamente porque meus livros já não estavam a caber nas antigas prateleiras,
então tive que repensar o ambiente, arranjar mais espaço. Sim, pois meus livros
amontoam-se cada vez mais, e creio que essa rotina de aquisição de novas obras
só terá fim quando eu morrer.
O historiador português
João José Alves Dias definiu como bibliófilo aquele sujeito que ama os livros. Encontrei
o termo por acaso, enquanto fazia uma pesquisa sobre as maiores bibliotecas do
mundo. Antes disso, eu não sabia que existia uma definição para essa obsessão
que me é característica; contentava-me com a classificação de amante de livros.
Talvez a condição de se
gostar tanto de algo ou alguém, deriva de experiências positivas que vivemos.
Não acredito na ideia de amor à primeira vista, isso está mais para uma paixão,
e como tal, tem prazo de validade. Ou seja, foi preciso que houvesse uma
relação transformadora de longa data para que nascesse este bibliófilo que voz
escreve.
Eu era muito jovem,
vivendo numa década de noventa onde as mudanças culturais aceleravam-se, e as
novas tecnologias surgiam como se fossem alienígenas que vieram de muito longe
para nos proporcionar avanços significativos na vida cotidiana. Minha maior
característica nessa fase foi a timidez; era um jovem muito fechado, passava
grande parte do meu dia, sozinho, ouvindo música no rádio ou lendo gibi. Os
instantes em que interagia com outras pessoas era na escola ou nas partidas de
futebol no meio da rua. Amigos? Quase nenhum, sempre preferi fazer minhas coisas
sozinho..., às vezes isso me incomodava um pouco, então para escapar dessa
realidade solitária, minha mente criava diversos amigos imaginários, os quais
preencheram minha juventude.
Pois numa tarde enfadonha
de sábado, estava deitado no quarto, sem nada pra fazer, olhando as manchas na
parede, formadas pelo desgaste. Então reparei na cabeceira da cama do meu irmão
mais velho, um livro de autoajuda chamado O Poder do Subconsciente.
Vou dar uma olhada nisso,
foi o que pensei, já que não tinha mais nada pra fazer mesmo – naquela época
não havia internet, tampouco os modernos smartphones, quase nada para nos
distrair da rotina enfadonha – Portanto, aquele livro esquecido no quarto,
passou de uma opção improvável para um “não custa tentar”. Mal sabia eu que
estava vivendo o instante que seria o divisor na minha vida: o fim de uma etapa
completamente desprovida de entusiasmos, para iniciar uma nova fase onde os
livros se tornariam meus companheiros inseparáveis.
Não exagero quando digo
que os livros salvaram a minha vida. Porque conheço bem a melancolia que
espreita minha existência, e os pensamentos destrutivos que me acometiam nos
dias de profundo desalento..., a leitura servia como um método de apreciação
contínuo da vida.
Através dos livros
aprendi a ter maior concentração, melhorei a dicção e aumentei meu vocabulário,
adquiri o prazer pelo desenvolvimento de longo prazo, aprendi a ser mais
paciente, descobri pessoas incrivelmente sábias, conheci culturas distintas,
impressionei-me com a engenhosidade dos criadores de mundos…, seja para o bem
ou para o mal, compreendi a leitura como uma plataforma de conhecimento
inesgotável…, também chorei perante descrições sensíveis que desnudam a alma
humana.
Os livros entraram na minha vida naquela tarde cheia de tédio e dela nunca mais saíram. Aquele singelo volume sobre a cabeceira, desprezado, ignorado por todos, inclusive por seu proprietário. Meu irmão nunca teve interesse em ler, mas na sua cabeça de jovem cheio de hormônios, pairava o interesse em seduzir garotas. Então ele andava pra cima e pra baixo com aqueles livros de autoajuda (o gênero estava na moda naquela época), porque isso o fazia parecer um rapaz distinto, intelectual. Ao que parece, isso atraía a atenção das garotas..., bons tempos aquele.
Foi também por influencia dos livros que adquiri o gosto pela escrita, quase como um inevitável destino. Mas confesso que gosto mais da palavra bibliófilo do que escritor, pois soa pedante. Fato é que, independente de haver um termo que defina minha relação de amor com os livros, talvez para além dessa definição romântica sobre um hábito, o que exista seja algo mais ordinário, apenas um costume que foi praticado até se tornar uma recorrência inevitável. Afinal, não sou especial porque leio, mas os livros sim, são especiais por conseguirem atrair o interesse do mais desinteressado sujeito, entediado naquele quarto de paredes desproporcionais, e o transformá-lo neste orgulhoso bibliófilo…