sábado, 3 de maio de 2025

RESENHA DE LIVRO – MAR DE TELHAS

Nos tempos em que literatura era pedantismo burguês e seu pleno acesso um privilégio de poucos, as histórias e fábulas geralmente terminavam com casais heroicos vivendo felizes para sempre. Se fossem narrativas menos fantasiosas ou, no mínimo, intencionadas em desnudar a verdadeira natureza das relações humanas, haveria mesmo espaço para serem felizes no final?

A escritora e jornalista Mariana Lozzi surgiu no meu percurso de leituras sem pedir licença, e escancarou a realidade, digamos, menos palatável do ser humano; deixou explicitado que não existe um passado idílico ao qual podemos retornar para que sejamos mais felizes. Só o que nos é possibilitado é a crueza de nossa natureza, cuja banalidade muitas vezes será obscurecida por instintos mais primitivos e indecorosos.

MAR DE TELHAS é uma obra singular que consegue, de maneira generosa sem deixar de ser suave, dialogar com o leitor. Uma narrativa que possui frescor trágico, quase como um sopro após a palmada, dimensões que ligam, por camadas enevoadas, a autora, a mãe, o pai, o filho e o leitor. Pode ser que algumas dimensões mais fortes desses seres nos levem a lapsos de memórias em comum.

Na trama, três membros de uma família dividem as páginas dessa meticulosa trajetória (há um quarto membro, mas que nos abandona logo nas primeiras páginas), na qual uma família compartilha excentricidades, comunga o absurdo e idolatra o tédio; a mãe, cujo casamento nublou os instintos mais primitivos ou se livrou de influências que lhe soavam mais características; o pai que do alto da sua mediocridade procura um modo de fazer dessa abundante banalidade uma forma de manter seus afetos distantes da natureza repulsiva; e temos o filho, menino quieto e delicado, que parece não encontrar sentido em sua existência, por isso vive em silêncio sepulcral, talvez por temer certa familiaridade com os seus, ou por mero desencaixe.

A evolução da leitura é prazerosa, segmenta-se por capítulos curtos, de linguagem fácil, porém, não menos delicada, muitas vezes comunga de um trejeito regional, alguns instantes me fizeram lembrar grandes escritores, como Graciliano Ramos. Temos aqui uma narrativa cuja beleza se sustenta em seu encruamento, o foco está sempre no ser humano. O resto é apenas pano de fundo.

Mariana Lozzi enriquece seu texto por meio de uma compreensão ampla não apenas de sua própria reflexão intelectual sobre os fatos, mas também estimula o desenvolvimento do apreço pela problematização de questões que não foram analisadas profundamente por suas personagens (recurso que é apreciável, visto que deixa esta tarefa para o leitor). Seu texto não visa docilizar os corpos para narrar cidadãos integrados ao sistema vigente, mas despertar no leitor a capacidade de pensar por conta própria sobre todos os problemas e questões que afloram no cotidiano.

 Os subcapítulos curtos se mostraram um caprichoso problema. Conforme eram modestos em extensão, eu sentia falta de mergulhar um pouco mais na vivência de cada indivíduo. De qualquer forma, a autora dedica um capítulo exclusivamente a cada uma de suas personagens, cujas vivências possibilita a inserção de outras personagens que igualmente seriam interessantes de se ler, e nos deixa familiarizado com a tragédia daquela singela família, a qual poderia se estender geracionalmente, como fez Gabriel Garcia Marques em seu notório Cem anos de Solidão.

MAR DE TELHAS é uma tragédia pós moderna no sentido mais grego do termo, narrado de um modo sensível, honesto e quase poético. Não convida à uma épica jornada instrumental, mas nos joga para dentro daquilo que talvez nos seja mais familiar: o lado grotesco e surreal do inconsciente humano.

NOTA: 9,08

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