Nos tempos em que literatura era pedantismo burguês e seu pleno acesso um privilégio de poucos, as histórias e fábulas geralmente terminavam com casais heroicos vivendo felizes para sempre. Se fossem narrativas menos fantasiosas ou, no mínimo, intencionadas em desnudar a verdadeira natureza das relações humanas, haveria mesmo espaço para serem felizes no final?
A escritora e jornalista Mariana
Lozzi surgiu no meu percurso de leituras sem pedir licença, e escancarou a
realidade, digamos, menos palatável do ser humano; deixou explicitado que não
existe um passado idílico ao qual podemos retornar para que sejamos mais
felizes. Só o que nos é possibilitado é a crueza de nossa natureza, cuja
banalidade muitas vezes será obscurecida por instintos mais primitivos e
indecorosos.
MAR DE TELHAS é uma
obra singular que consegue, de maneira generosa sem deixar de ser suave,
dialogar com o leitor. Uma narrativa que possui frescor trágico, quase como um
sopro após a palmada, dimensões que ligam, por camadas enevoadas, a autora, a
mãe, o pai, o filho e o leitor. Pode ser que algumas dimensões mais fortes
desses seres nos levem a lapsos de memórias em comum.
Na trama, três membros de uma
família dividem as páginas dessa meticulosa trajetória (há um quarto membro,
mas que nos abandona logo nas primeiras páginas), na qual uma família
compartilha excentricidades, comunga o absurdo e idolatra o tédio; a mãe, cujo
casamento nublou os instintos mais primitivos ou se livrou de influências que
lhe soavam mais características; o pai que do alto da sua mediocridade procura
um modo de fazer dessa abundante banalidade uma forma de manter seus afetos
distantes da natureza repulsiva; e temos o filho, menino quieto e delicado, que
parece não encontrar sentido em sua existência, por isso vive em silêncio
sepulcral, talvez por temer certa familiaridade com os seus, ou por mero
desencaixe.
A evolução da leitura é
prazerosa, segmenta-se por capítulos curtos, de linguagem fácil, porém, não
menos delicada, muitas vezes comunga de um trejeito regional, alguns instantes
me fizeram lembrar grandes escritores, como Graciliano Ramos. Temos aqui uma
narrativa cuja beleza se sustenta em seu encruamento, o foco está sempre no ser
humano. O resto é apenas pano de fundo.
Mariana Lozzi enriquece
seu texto por meio de uma compreensão ampla não apenas de sua própria reflexão
intelectual sobre os fatos, mas também estimula o desenvolvimento do apreço
pela problematização de questões que não foram analisadas profundamente por
suas personagens (recurso que é apreciável, visto que deixa esta tarefa para o
leitor). Seu texto não visa docilizar os corpos para narrar cidadãos integrados
ao sistema vigente, mas despertar no leitor a capacidade de pensar por conta
própria sobre todos os problemas e questões que afloram no cotidiano.
Os subcapítulos curtos se mostraram um caprichoso problema. Conforme eram modestos em extensão, eu sentia falta de mergulhar um pouco mais na vivência de cada indivíduo. De qualquer forma, a autora dedica um capítulo exclusivamente a cada uma de suas personagens, cujas vivências possibilita a inserção de outras personagens que igualmente seriam interessantes de se ler, e nos deixa familiarizado com a tragédia daquela singela família, a qual poderia se estender geracionalmente, como fez Gabriel Garcia Marques em seu notório Cem anos de Solidão.
MAR DE TELHAS é uma tragédia pós moderna no sentido mais grego do termo, narrado de um modo sensível, honesto e quase poético. Não convida à uma épica jornada instrumental, mas nos joga para dentro daquilo que talvez nos seja mais familiar: o lado grotesco e surreal do inconsciente humano.
NOTA: 9,08
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