Imaginário não é o mesmo que fantasia ou ilusão. Trata-se de um conjunto de imagens, símbolos, narrativas e crenças que uma sociedade desenvolve para dar sentido a certos fenômenos como o nascimento, o amor, o mal, e claro, a morte. Mas seria possível compreender o imaginário da morte?
Do ponto de vista
psicanalítico, Freud tratava a morte como um conteúdo fundamental do
inconsciente, ligado ao medo, à pulsão e ao sagrado.
Enquanto isso, a sociedade
moderna, mais especificamente a ocidental, tenta desenvolver meios de camuflar
a morte: hospitais afastam os corpos, cemitérios são murados, capelas
mortuárias para que velórios ocorram longe dos lares, evita-se falar sobre luto
ou finitude. Justamente por isso, pesquisar sobre o imaginário da morte é um
modo de trazer à consciência o que foi reprimido socialmente.
A CARA DA MORTE é um
estudo original que une perspectivas psicológicas, simbólicas e religiosas. A
obra analisa o imaginário da morte através dos olhos de quem trabalha
diretamente com ela, propondo uma reflexão sobre como a sociedade moderna contempla
e administra a morte; sobre o quanto, ao delegarmos aos sepultadores (durante a
pesquisa, a autora descobre que o termo “coveiro” é considerado por essa classe
trabalhadora como pejorativo) o trabalho da morte, a sociedade retira de si o
ônus simbólico desse enfrentamento.
O conteúdo aqui trata-se
originalmente de uma dissertação de mestrado da autora Clarissa De Franco,
no programa de Ciências da Religião da PUC-SP, que foi defendida no ano de
2008. Clarissa explora o imaginário da morte por meio dos relatos e sonhos dos
sepultadores de alguns cemitérios paulistanos. A autora considera desde temas
da antiguidade clássica e tradições cristãs, até as influências da herança
afro-indígena na religiosidade brasileira.
Senti falta de um pouco mais
de profundidade sobre o tema da terceirização da morte, muito embora eu saiba
que esse não era o escopo central da obra. Quando entregamos a morte às mãos de
profissionais como médicos, sepultadores, agentes funerários, o que estamos
evitando de fato? Seria o sofrimento de ver um corpo? O medo da finitude? A
desordem do fim? Ou estaríamos fugindo da percepção mais radical de todas: a
noção de que aquela perda, aquele vazio, um dia também será eu.
Um ponto central que o livro
aponta é sobre a precarização do trabalho dos sepultadores, identifica também
que existe certo grau de dificuldade em se trabalhar em cemitérios das
periferias, em relação aos cemitérios tradicionais utilizados pelas classes médias
e altas, evidenciando que até mesmo a morte, esse fim universal e comum, também
é marcada por desigualdade social.
Ou seja, na teoria a morte é igual para todos, mas na prática isso não ocorre. O que Clarissa mostra é que, mesmo no momento final, as diferenças de classes persistem e se manifestam de modo brutal. Cemitérios de periferia têm estrutura precária, escassez de materiais de trabalho, ausência de apoio psicológico e sobreposição de túmulos. Os sepultadores, pessoas que lidam com a dor alheia todos os dias, frequentemente trabalham em condições insalubres, sem reconhecimento, com baixos salários e quase nenhuma estabilidade. Já nos cemitérios da elite, os túmulos são tratados com ornamentos, capelas privativas, velórios longos e personalizados, serviços funerários caros e ostensivos.
Qual seria, afinal, essa cara da morte que intitula a obra? Clarissa De Franco nos propõe a pensar que sim, a morte tem uma cara. Mas de modo algum refere-se a um retrato estático que pode vestir qualquer sociedade em qualquer tempo, como se fosse uma máscara. A cara da morte que surge com a leitura, talvez seja algo mais arquetípico da morte, senhora de si, cujos conteúdos socioculturais foram sendo registrados em sua expressão, carregando-a de rugas e marcas, mas sem aspectos clichês como o manto negro e a foice alongada. A morte é, na verdade, um marcador cultural: o lugar e como se morre diz muito sobre quem se é, dentro de uma estrutura social.
NOTA: 8,4

