sábado, 26 de julho de 2025

RESENHA DE LIVRO – A CARA DA MORTE

Imaginário não é o mesmo que fantasia ou ilusão. Trata-se de um conjunto de imagens, símbolos, narrativas e crenças que uma sociedade desenvolve para dar sentido a certos fenômenos como o nascimento, o amor, o mal, e claro, a morte. Mas seria possível compreender o imaginário da morte?

Do ponto de vista psicanalítico, Freud tratava a morte como um conteúdo fundamental do inconsciente, ligado ao medo, à pulsão e ao sagrado.

Enquanto isso, a sociedade moderna, mais especificamente a ocidental, tenta desenvolver meios de camuflar a morte: hospitais afastam os corpos, cemitérios são murados, capelas mortuárias para que velórios ocorram longe dos lares, evita-se falar sobre luto ou finitude. Justamente por isso, pesquisar sobre o imaginário da morte é um modo de trazer à consciência o que foi reprimido socialmente.

A CARA DA MORTE é um estudo original que une perspectivas psicológicas, simbólicas e religiosas. A obra analisa o imaginário da morte através dos olhos de quem trabalha diretamente com ela, propondo uma reflexão sobre como a sociedade moderna contempla e administra a morte; sobre o quanto, ao delegarmos aos sepultadores (durante a pesquisa, a autora descobre que o termo “coveiro” é considerado por essa classe trabalhadora como pejorativo) o trabalho da morte, a sociedade retira de si o ônus simbólico desse enfrentamento.

O conteúdo aqui trata-se originalmente de uma dissertação de mestrado da autora Clarissa De Franco, no programa de Ciências da Religião da PUC-SP, que foi defendida no ano de 2008. Clarissa explora o imaginário da morte por meio dos relatos e sonhos dos sepultadores de alguns cemitérios paulistanos. A autora considera desde temas da antiguidade clássica e tradições cristãs, até as influências da herança afro-indígena na religiosidade brasileira.

Senti falta de um pouco mais de profundidade sobre o tema da terceirização da morte, muito embora eu saiba que esse não era o escopo central da obra. Quando entregamos a morte às mãos de profissionais como médicos, sepultadores, agentes funerários, o que estamos evitando de fato? Seria o sofrimento de ver um corpo? O medo da finitude? A desordem do fim? Ou estaríamos fugindo da percepção mais radical de todas: a noção de que aquela perda, aquele vazio, um dia também será eu.

Um ponto central que o livro aponta é sobre a precarização do trabalho dos sepultadores, identifica também que existe certo grau de dificuldade em se trabalhar em cemitérios das periferias, em relação aos cemitérios tradicionais utilizados pelas classes médias e altas, evidenciando que até mesmo a morte, esse fim universal e comum, também é marcada por desigualdade social.

Ou seja, na teoria a morte é igual para todos, mas na prática isso não ocorre. O que Clarissa mostra é que, mesmo no momento final, as diferenças de classes persistem e se manifestam de modo brutal. Cemitérios de periferia têm estrutura precária, escassez de materiais de trabalho, ausência de apoio psicológico e sobreposição de túmulos. Os sepultadores, pessoas que lidam com a dor alheia todos os dias, frequentemente trabalham em condições insalubres, sem reconhecimento, com baixos salários e quase nenhuma estabilidade. Já nos cemitérios da elite, os túmulos são tratados com ornamentos, capelas privativas, velórios longos e personalizados, serviços funerários caros e ostensivos.

Qual seria, afinal, essa cara da morte que intitula a obra? Clarissa De Franco nos propõe a pensar que sim, a morte tem uma cara. Mas de modo algum refere-se a um retrato estático que pode vestir qualquer sociedade em qualquer tempo, como se fosse uma máscara. A cara da morte que surge com a leitura, talvez seja algo mais arquetípico da morte, senhora de si, cujos conteúdos socioculturais foram sendo registrados em sua expressão, carregando-a de rugas e marcas, mas sem aspectos clichês como o manto negro e a foice alongada. A morte é, na verdade, um marcador cultural: o lugar e como se morre diz muito sobre quem se é, dentro de uma estrutura social.

NOTA: 8,4

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