terça-feira, 26 de agosto de 2025

CONTO – EM BUSCA DE SENTIDO – 1º PARTE


 – Como foi o seu dia?

Os manuais de práticas clinicas sugerem que não se deve usar frases estereotipadas durante uma sessão. A premissa é que isso retira a autenticidade da interação com o paciente, faz parecer um diálogo protocolar e, mais do que isso, deixa o paciente pensar que ele é apenas um instrumento do trabalho de alguém. “Como foi o seu dia” é uma pergunta que se faz para alguém que não nos interessa a resposta.

– Outro dia da marmota, doutor. – Respondeu o paciente, referindo-se ao filme O Feitiço do Tempo, em que o protagonista passa dias preso no mesmo dia, num ciclo interminável de repetição do mesmo dia – acordei, dirigi até o escritório, resolvi tarefas, dirigi de volta para casa, jantei com a esposa, assisti vídeos bobos na cama, até pegar no sono.

– Tentou fazer os exercícios que recomendei?

– Tentei sim..., escovei os dentes com a mão esquerda, mudei o trajeto até o trabalho, comecei um curso de origami, arranjei um cachorro – ele se recostou no sofá e suspirou pesadamente – nada disso adianta! Mudar o jeito de fazer as coisas funciona por alguns dias, mas logo vira rotina também.

– A mente humana é programada para automatizar tudo. Isso poupa energia.

– Por que diabos minha mente quer poupar tanta energia, doutor?

– É uma condição ancestral. A humanidade viveu a maior parte de sua existência na escassez. Conseguir alimento era difícil e incerto. Por isso herdamos esse cérebro econômico e agora precisamos lutar contra ele.

As respostas do paciente evidenciam a necessidade de eu iniciar a sessão com aquela pergunta interditada pelos manuais. Aquele paciente sofria de uma espécie de tédio crônico. Perguntar pelo seu dia era condição crucial para entender sua evolução. Não é muito raro entrarem pacientes no meu consultório com queixas de desânimo, falta de motivação ou de sentido no que faziam. A maioria dos casos era apenas um tédio recorrente. Quando faço esse tipo de diagnóstico, foco na busca por tirar o sujeito de sua zona de conforto, algo que não é muito fácil, pois evitar mudanças ou experiências novas é um comportamento tão habitual no ser humano quanto acreditar em divindades ou fazer fofoca. Contudo, ainda é o remédio mais eficaz para se tirar alguém do enfado.

– Meu cérebro deve ser idiota – o comentário dele foi auto infligido, mas fazer alguma observação desviaria nosso objetivo. Também não poderia rir, porque escutar alguém dizer que o próprio cérebro é idiota, meio que diz muito sobre essa pessoa.

– O cachorro não está ajudando?

– O cachorro me odeia, doutor. Passa tempo demais sendo bajulado pelas meninas..., quando chego em casa, ele meio que me enxerga como uma possível ameaça ao seu território.

– Você precisa interagir, se aproximar, levá-lo pra passear, passar algum tempo junto com ele.

– Eu até tento fazer isso. E pode ser coincidência, mas quando está com as meninas, o bicho brinca, corre, abana o rabo, se esfrega em todo mundo..., mas quando eu o levo para passear ele só sabe cagar e latir para as pessoas na rua.

Aquilo me fez pensar que até os animais possuem seus favoritos. Ou talvez meu paciente seja uma companhia desagradável até para o cachorro.

– Pelo menos ele está sendo bom para sua família – comentei, tentando amenizar – E o que mais você tem feito?

– Comecei a ler um livro – ele tentou buscar na mente suas tentativas de fazer atividades fora da rotina – Mas eu confesso que não aguento três parágrafos.

– Dependendo do autor, três parágrafos podem significar mais de uma página.

– Aquilo me dá nos nervos, doutor..., tem palavras demais naquela porra!

– Bem, é um livro. O que você queria?

– Sei lá, doutor..., aquela imensidão de palavras reunidas mais se parecem com uma tortura do que um hobby. Parece um lugar infinito..., fico exausto só de abrir a página.

– Qual é o título do livro?

– É um daqueles que você me recomendou..., O Poder do Hábito.

– Foi uma ótima escolha!

– Foi um ótimo tormento, melhor dizendo – ele parecia mesmo sofrer só de pensar referido objeto – aquilo parece uma lajota, não dá nem pra segurar.

– Encare o livro como um grande desafio, isso talvez te ajude. Grandes desafios geram satisfações igualmente grandes quando realizados.

– Ou grande desgosto caso não consiga vencer o desafio.

Ele tinha razão, mas eu não poderia contornar a hipótese proposta. De fato, quando miramos alto demais num projeto existe o risco real da não realização. E isso pode potencializar muito a noção de fracasso do paciente. Nessa hora é preciso oferecer argumentos válidos que o encorajem a seguir na empreitada.

– A receita ideal do progresso é o estabelecimento de metas pequenas, constantes e alcançáveis. Quebrar um grande desafio em várias etapas menores, porém, passíveis de serem vencidas. Isso pode ajudar.

– O que você sugere, doutor?

– Que você não pense no livro como um todo, nem imagine o término da longa leitura. Em vez disso, tente focar em três parágrafos por dia..., consegue fazer isso?

– Devo ler somente três parágrafos por dia?

– Não necessariamente, você pode ler o quanto quiser..., mas no lugar de pensar no término da leitura, estabeleça como meta três parágrafos por dia. Isso deve fazer com que seu cérebro perceba a meta como algo possível e você se sentirá motivado.

Ele fez um breve silêncio, coçou a barba, refletiu e então me encarou.

– Não acha que essa é uma meta ridícula?

– Isso é você quem vai definir. Se com o passar dos dias três parágrafos se tornarem fácil demais, aumente para cinco, depois para dez, quinze parágrafos.... Com o passar do tempo você vai estar lendo dez páginas diariamente.

– Não consigo me imaginar lendo tanto assim.

– Não tem problema. Por hora foque apenas nos três parágrafos.

Basicamente, o livro não teria um efeito de amainar o tédio, mas a esperança era de que o conteúdo despertasse seu interesse. O ser humano funciona muito melhor quando consegue enxergar resultados naquilo que se propõe a fazer. Aquele paciente queria acabar com um enfado que já o acompanhava há anos. Mas se tratava de um caso típico da sociedade contemporânea: após as questões básicas da vida serem resolvidas, como alimentação, repouso, moradia, segurança, emprego, saúde, propriedade…, vem as necessidades psicológicas como amor, amizade, família, estima, confiança, respeito dos outros e com os outros. Superada essas etapas, o ser humano entra na fase que considero a mais complicada da vida. E eu sabia que isso só seria possível quando meu paciente conseguisse se encaixar nessa tão abstrata fase: a busca de sentido na vida.


*continua*

sábado, 9 de agosto de 2025

RESENHA DE LIVRO – INTIMIDADES – dez contos eróticos de escritoras brasileiras e portuguesas

O erotismo que me agrada na literatura contemporânea, não é aquele que se impõe de fora para dentro, como acontece costumeiramente na literatura erótica tradicional (geralmente escrita sob o olhar masculino). O melhor do erotismo, em minha opinião, é aquele que nasce da interioridade feminina, que é vivenciado de forma a constituir as mulheres como individualidades que anseiam e agem, não apenas figuras clichês passivas ou meros objetos de desejos.

Os contos que foram organizados para compor esta compilação, são representantes desse cenário: o erotismo aqui não é romântico no sentido tradicional, muitas vezes, se aproxima de algo ambíguo, contraditório, uma mistura de prazer e vulnerabilidade, ternura e impotência, desejo e silêncio. O olhar feminino estabelecido nas narrativas presente em INTIMIDADES confere profundidade psicológica.

A organizadora por trás dessa empreitada é Luisa Coelho, portuguesa que vive no Brasil desde 2002, professora da Universidade de Brasília e autora de várias obras de ficção. Este compilado de contos reúne autoras brasileiras e portuguesas, proporcionando uma aproximação entre as duas culturas.

A obra reúne dez contos, explorando o erotismo sob diferentes perspectivas, com linguagem que passeia pela sutileza poética, realismo cru e intersubjetividade. O tema do erotismo aqui não é gratuito, mas está profundamente ligado à intimidade emocional.

Como já mencionei, o ponto forte está no protagonismo feminino. Livre de censura, culpa ou estigma, as autoras destilam a sensualidade de suas protagonistas, combinando erotismo com introspecção que não cai em clichês pornográficos, algo tão comum em literaturas eróticas escritas por homens.

Além disso, uma compilação como essa possui uma enorme relevância cultural, pois se inscreve numa posição que busca romper o silêncio histórico em torno da sexualidade feminina. Ao reunir autoras de dois países ligados por um trágico histórico colonial, a antologia também traça um mapa afetivo e cultural do erotismo em língua portuguesa, que ao meu ver, ainda foi pouco explorado sob a ótica feminina.

A curadoria de Luisa Coelho é atenta à diversidade; há contos com uma linguagem mais poética, outros são insinuantes, alguns dotados de realismo orgânico. Há experiências urbanas e íntimas, algumas são oníricas e simbólicas. Meus favoritos são Cobertor Engomado, de Branca Maria de Paula; Só Sexo, da sempre fabulosa Inês Pedrosa e Mónica, de Maria Teresa Horta.

INTIMIDADES é uma obra provocativa e, acima de tudo, um ensaio de liberdade. Quando uma mulher fala sobre seu corpo e seus desejos, como ocorre com as personagens dessa coletânea, ela não está apenas contando uma história, mas reivindicando sua existência e subvertendo silêncios históricos.

NOTA: 8,7