– Como foi o seu dia?
Os manuais de práticas
clinicas sugerem que não se deve usar frases estereotipadas durante uma sessão.
A premissa é que isso retira a autenticidade da interação com o paciente, faz
parecer um diálogo protocolar e, mais do que isso, deixa o paciente pensar que
ele é apenas um instrumento do trabalho de alguém. “Como foi o seu dia” é uma
pergunta que se faz para alguém que não nos interessa a resposta.
– Outro dia da marmota,
doutor. – Respondeu o paciente, referindo-se ao filme O Feitiço do Tempo, em
que o protagonista passa dias preso no mesmo dia, num ciclo interminável de
repetição do mesmo dia – acordei, dirigi até o escritório, resolvi tarefas,
dirigi de volta para casa, jantei com a esposa, assisti vídeos bobos na cama,
até pegar no sono.
– Tentou fazer os
exercícios que recomendei?
– Tentei sim..., escovei
os dentes com a mão esquerda, mudei o trajeto até o trabalho, comecei um curso
de origami, arranjei um cachorro – ele se recostou no sofá e suspirou
pesadamente – nada disso adianta! Mudar o jeito de fazer as coisas funciona por
alguns dias, mas logo vira rotina também.
– A mente humana é
programada para automatizar tudo. Isso poupa energia.
– Por que diabos minha
mente quer poupar tanta energia, doutor?
– É uma condição
ancestral. A humanidade viveu a maior parte de sua existência na escassez.
Conseguir alimento era difícil e incerto. Por isso herdamos esse cérebro
econômico e agora precisamos lutar contra ele.
As respostas do paciente
evidenciam a necessidade de eu iniciar a sessão com aquela pergunta interditada
pelos manuais. Aquele paciente sofria de uma espécie de tédio crônico.
Perguntar pelo seu dia era condição crucial para entender sua evolução. Não é
muito raro entrarem pacientes no meu consultório com queixas de desânimo, falta
de motivação ou de sentido no que faziam. A maioria dos casos era apenas um
tédio recorrente. Quando faço esse tipo de diagnóstico, foco na busca por tirar
o sujeito de sua zona de conforto, algo que não é muito fácil, pois evitar
mudanças ou experiências novas é um comportamento tão habitual no ser humano
quanto acreditar em divindades ou fazer fofoca. Contudo, ainda é o remédio mais
eficaz para se tirar alguém do enfado.
– Meu cérebro deve ser
idiota – o comentário dele foi auto infligido, mas fazer alguma observação desviaria
nosso objetivo. Também não poderia rir, porque escutar alguém dizer que o
próprio cérebro é idiota, meio que diz muito sobre essa pessoa.
– O cachorro não está
ajudando?
– O cachorro me odeia,
doutor. Passa tempo demais sendo bajulado pelas meninas..., quando chego em
casa, ele meio que me enxerga como uma possível ameaça ao seu território.
– Você precisa interagir,
se aproximar, levá-lo pra passear, passar algum tempo junto com ele.
– Eu até tento fazer
isso. E pode ser coincidência, mas quando está com as meninas, o bicho brinca,
corre, abana o rabo, se esfrega em todo mundo..., mas quando eu o levo para
passear ele só sabe cagar e latir para as pessoas na rua.
Aquilo me fez pensar que
até os animais possuem seus favoritos. Ou talvez meu paciente seja uma
companhia desagradável até para o cachorro.
– Pelo menos ele está
sendo bom para sua família – comentei, tentando amenizar – E o que mais você
tem feito?
– Comecei a ler um livro
– ele tentou buscar na mente suas tentativas de fazer atividades fora da rotina
– Mas eu confesso que não aguento três parágrafos.
– Dependendo do autor,
três parágrafos podem significar mais de uma página.
– Aquilo me dá nos
nervos, doutor..., tem palavras demais naquela porra!
– Bem, é um livro. O que
você queria?
– Sei lá, doutor...,
aquela imensidão de palavras reunidas mais se parecem com uma tortura do que um
hobby. Parece um lugar infinito..., fico exausto só de abrir a página.
– Qual é o título do
livro?
– É um daqueles que você
me recomendou..., O Poder do Hábito.
– Foi uma ótima escolha!
– Foi um ótimo tormento,
melhor dizendo – ele parecia mesmo sofrer só de pensar referido objeto – aquilo
parece uma lajota, não dá nem pra segurar.
– Encare o livro como um
grande desafio, isso talvez te ajude. Grandes desafios geram satisfações
igualmente grandes quando realizados.
– Ou grande desgosto caso
não consiga vencer o desafio.
Ele tinha razão, mas eu
não poderia contornar a hipótese proposta. De fato, quando miramos alto demais
num projeto existe o risco real da não realização. E isso pode potencializar
muito a noção de fracasso do paciente. Nessa hora é preciso oferecer argumentos
válidos que o encorajem a seguir na empreitada.
– A receita ideal do
progresso é o estabelecimento de metas pequenas, constantes e alcançáveis.
Quebrar um grande desafio em várias etapas menores, porém, passíveis de serem
vencidas. Isso pode ajudar.
– O que você sugere,
doutor?
– Que você não pense no
livro como um todo, nem imagine o término da longa leitura. Em vez disso, tente
focar em três parágrafos por dia..., consegue fazer isso?
– Devo ler somente três
parágrafos por dia?
– Não necessariamente,
você pode ler o quanto quiser..., mas no lugar de pensar no término da leitura,
estabeleça como meta três parágrafos por dia. Isso deve fazer com que seu
cérebro perceba a meta como algo possível e você se sentirá motivado.
Ele fez um breve
silêncio, coçou a barba, refletiu e então me encarou.
– Não acha que essa é uma
meta ridícula?
– Isso é você quem vai
definir. Se com o passar dos dias três parágrafos se tornarem fácil demais,
aumente para cinco, depois para dez, quinze parágrafos.... Com o passar do
tempo você vai estar lendo dez páginas diariamente.
– Não consigo me imaginar
lendo tanto assim.
– Não tem problema. Por hora foque apenas nos três parágrafos.
Basicamente, o livro não teria um efeito de amainar o tédio, mas a esperança era de que o conteúdo despertasse seu interesse. O ser humano funciona muito melhor quando consegue enxergar resultados naquilo que se propõe a fazer. Aquele paciente queria acabar com um enfado que já o acompanhava há anos. Mas se tratava de um caso típico da sociedade contemporânea: após as questões básicas da vida serem resolvidas, como alimentação, repouso, moradia, segurança, emprego, saúde, propriedade…, vem as necessidades psicológicas como amor, amizade, família, estima, confiança, respeito dos outros e com os outros. Superada essas etapas, o ser humano entra na fase que considero a mais complicada da vida. E eu sabia que isso só seria possível quando meu paciente conseguisse se encaixar nessa tão abstrata fase: a busca de sentido na vida.
*continua*

