sábado, 27 de setembro de 2025

RESENHA DE LIVRO – O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS

Leitor que visitar o universo literário do escritor José Saramago precisa ter alguma dedicação, em especial na atenção aos aspectos simbólicos e a metaficção como recurso narrativo. Ah, e se você não é acostumado ao estilo desprendido de convenções gramaticais do autor, com frases longas e ausência quase total de pontuação, esse também poderá ser um desafio. E para além desses obstáculos, este O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS talvez seja a obra que mais oscila entre a ficção, personagens heterônimos e um pano de fundo histórico. Sim, leitores, este é um trabalho que concentra distintos elementos narrativos, o que em algum momento pode tornar a leitura um pouco confusa…, vamos falar disso.

O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS narra o tempo final da personagem que dá nome ao título, que se trata de um português heterônimo do escritor Fernando Pessoa. Após dezesseis anos exilado no Brasil, Ricardo resolve retornar à Portugal. Médico e poeta, o protagonista escrevia suas odes sem jamais publicá-las. Seu retorno à terra natal foi motivado pelo falecimento de Fernando Pessoa em 30 de novembro de 1935, em Lisboa. Entre a melancolia pelo desconhecimento do lugar onde nasceu, Ricardo terá embates filosóficos com o fantasma do falecido amigo, num período histórico efervescente na Europa com a ascensão do salazarismo em Portugal e a instabilidade política no continente pré-segunda guerra mundial.

A trama não é fluida e um tanto prolixa, como sabemos ser marca registrada de Saramago, as coisas demoram para que acontecer aqui. Ricardo Reis é um sujeito distanciado, com uma pegada estoica, mas incapaz de agir diante das transformações sociais. É uma personagem desenvolvida com um viés crítico do autor, que aponta para o comumente lugar do intelectual contemplativo que não age. Após prestar homenagens ao amigo morto, começa a receber visitas de seu fantasma, as quais se desenrolam assuntos variados, como morte, vida, trabalhos literários e política atual.

As ações mais notórias do protagonista, resume-se em ler jornais, os quais retratam os acontecimentos centrais daquele período. Por vezes, Ricardo se sente contrariado, percebe o clima opressivo que cresce rapidamente nos arredores, mas segue apenas como um expectador. Talvez neste aspecto, o fantasma de Pessoa funcione como uma voz de sua consciência, inquieta, irônica e provocativa.

O lugar de cada personagem também pode ser subentendido como metáfora. Sendo Fernando Pessoa um poeta da vida real inserido como fantasma que surge para seu heterônimo, tal condição pode ser entendida como um reencontro com a própria essência do escritor. Ao trazer Pessoa para dentro de um cenário de turbulência política, José Saramago instiga o leitor a perceber que a poesia, quando desconectada da vida concreta, corre o risco de ser cúmplice do cenário atual.

Existe aqui também uma crítica velada ao regime contraditório de Salazar, o autor não menciona diretamente censuras ou prisões políticas, mas deixa tudo muito bem explicitado na ambientação da trama: tensão nas ruas, presença de militares por toda parte, desconfiança generalizada, o jornal de papel como veículo de propaganda, o clima de normalidade artificial.

Dois problemas que considerei foi as constantes menções a figuras históricas do período, o que pode incomodar leitores que têm pouca familiaridade com aquele momento social; também a condução narrativa que segue como pensamentos contínuos, quase orais, como se a intenção de Saramago fosse a de criar fluxos de consciência, como ocorre dentro da mente humana. Vez ou outra, interrompe a narrativa com observações irônicas, como se estivesse conversando diretamente com o leitor. Não se trata de recursos negativos, eles aparecem noutras obras de José Saramago. Porém, o estilo me pareceu um pouco fora de contexto e também pode incomodar leitores desavisados.

O ANO DA MORTE DE RICARDO REIS é uma viagem da incerteza como narrativa estética. A personagem de Ricardo Reis é, em sua essência, feita de hesitação e contemplação. O autor deixa propositalmente algumas pontas soltas, com diálogos que não oferecem todas as respostas, oferecendo o elemento da indecisão como estímulo a que se continue a reflexão e pesquisa.

NOTA: 7,1

sábado, 13 de setembro de 2025

RESENHA DE LIVRO – DEUSAS, BRUXAS E FEITICEIRAS – histórias de quando Deus era mulher

Na história da humanidade a substituição de deusas por deuses, de sacerdotisas por padres, de curandeiras por magos, não foi por acaso e, tampouco um ato simbólico; foi um projeto de poder que moldou o mundo em que vivemos hoje. Mesmo com o vagaroso, porém, contínuo avanço de pesquisas antropológicas, a maior falácia atual que ainda sustenta o apagamento de culturas matriarcais da história, é a ideia de que o feminino estaria interessado em interpor e subjugar a cultura masculina atual.

Portanto, a própria ideia de apagamento de nossa história parece algo fora de cogitação; a sociedade como se organiza na contemporaneidade nos traz a impressão de que nossa cultura é uma consequência inevitável e singular. Só que pesquisas históricas recentes apontam que isso é um grave engano!

DEUSAS, BRUXAS E FEITICEIRAS – Histórias de quando deus era mulher, da escritora Julia Myara é uma obra que ilumina o silenciamento simbólico das mulheres ao longo da história e convida o leitor a repensar o sagrado a partir de uma tradição que teve (e ainda pode ter) o feminino no centro.

A obra busca resgatar a presença feminina sagrada em períodos antigos, tempo em que deusas, sacerdotisas, curandeiras, bruxas e feiticeiras ocupavam papéis centrais na sociedade. O escopo da autora é analisar mitos de culturas como a neolítica, suméria, babilônica, canaanita, entre outras, resgatando figuras femininas que foram silenciadas (propositalmente) e demonizadas com o advento das religiões patriarcais.

A premissa combina elementos históricos, filosofia antiga e até uma pitada de psicanálise para oferecer uma leitura rica e multifacetada sobre o apagamento simbólico do feminino sacramental. A condução se utiliza de um tom que é ao mesmo tempo livre e erudito, voltado tanto para o público geral quanto para quem se interessa por espiritualidade, história e sociologia. Obviamente, é uma obra que levanta inúmeros temas, portanto, não se esgota em seu conteúdo, mas propõe temas como itens introdutórios para quem deseja pesquisar.

Mesmo assim, aqui tudo é muito bem fundamentado. A autora não tira nada do achismo, baseia-se em análises históricas de outros autores e deixa tudo referenciado em textos de rodapé ou nas fontes finais.

Por falar na autora, Julia Myara é professora de filosofia antiga na PUC-Rio e analista junguiana. Seu trabalho acadêmico inclui pesquisas sobre gênero na antiguidade, narrativas míticas comparadas e religião. Ela também participa de palestras na Casa do Saber e de um ótimo podcast no Youtube, em canal intitulado CDH – Conhecimento da Humanidade.

O ponto forte da obra é que ela visa colocar uma interrogação nas religiões – principalmente as monoteístas – como aparelhos de legitimação. Religiões como o judaísmo, cristianismo e o islamismo, consolidam a figura do homem como imagem e semelhança de Deus, enquanto o feminino é frequentemente associado à tentação, desobediência, ao pecado e a desordem. Ao submeter o feminino, o patriarcado centralizou poder, controle social e discurso religioso. E esse modelo persistiu porque passou a ser visto como natural, muitas vezes como algo sagrado e, portanto, incontestável; quando, na verdade, foi algo construído histórico e ideologicamente.

DEUSAS, BRUXAS E FEITICEIRAS – Histórias de quando deus era mulher é um excelente trabalho que nos chama atenção para distorções quanto a substituição de deusas acolhedoras por deuses guerreiros – um projeto de poder que moldou a grande maioria das sociedades atuais. Contudo, as figuras femininas resistem até hoje, presentes em mitos ignorados, tradições populares antigas, nos rituais ancestrais, nas narrativas que agora estão sendo resgatadas, como faz Julia nesta importante obra.


NOTA: 🔟😍