Na história da humanidade a substituição de deusas por deuses, de sacerdotisas por padres, de curandeiras por magos, não foi por acaso e, tampouco um ato simbólico; foi um projeto de poder que moldou o mundo em que vivemos hoje. Mesmo com o vagaroso, porém, contínuo avanço de pesquisas antropológicas, a maior falácia atual que ainda sustenta o apagamento de culturas matriarcais da história, é a ideia de que o feminino estaria interessado em interpor e subjugar a cultura masculina atual.
Portanto, a própria ideia de
apagamento de nossa história parece algo fora de cogitação; a sociedade como se
organiza na contemporaneidade nos traz a impressão de que nossa cultura é uma
consequência inevitável e singular. Só que pesquisas históricas recentes
apontam que isso é um grave engano!
DEUSAS, BRUXAS E FEITICEIRAS –
Histórias de quando deus era mulher, da escritora Julia Myara
é uma obra que ilumina o silenciamento simbólico das mulheres ao longo da
história e convida o leitor a repensar o sagrado a partir de uma tradição que
teve (e ainda pode ter) o feminino no centro.
A obra busca resgatar a
presença feminina sagrada em períodos antigos, tempo em que deusas,
sacerdotisas, curandeiras, bruxas e feiticeiras ocupavam papéis centrais na
sociedade. O escopo da autora é analisar mitos de culturas como a neolítica,
suméria, babilônica, canaanita, entre outras, resgatando figuras femininas que
foram silenciadas (propositalmente) e demonizadas com o advento das religiões
patriarcais.
A premissa combina elementos
históricos, filosofia antiga e até uma pitada de psicanálise para oferecer uma
leitura rica e multifacetada sobre o apagamento simbólico do feminino
sacramental. A condução se utiliza de um tom que é ao mesmo tempo livre e erudito,
voltado tanto para o público geral quanto para quem se interessa por
espiritualidade, história e sociologia. Obviamente, é uma obra que levanta
inúmeros temas, portanto, não se esgota em seu conteúdo, mas propõe temas como
itens introdutórios para quem deseja pesquisar.
Mesmo assim, aqui tudo é muito
bem fundamentado. A autora não tira nada do achismo, baseia-se em análises
históricas de outros autores e deixa tudo referenciado em textos de rodapé ou
nas fontes finais.
Por falar na autora, Julia
Myara é professora de filosofia antiga na PUC-Rio e analista junguiana. Seu
trabalho acadêmico inclui pesquisas sobre gênero na antiguidade, narrativas
míticas comparadas e religião. Ela também participa de palestras na Casa do
Saber e de um ótimo podcast no Youtube, em canal intitulado CDH –
Conhecimento da Humanidade.
O ponto forte da obra é que ela visa colocar uma interrogação nas religiões – principalmente as monoteístas – como aparelhos de legitimação. Religiões como o judaísmo, cristianismo e o islamismo, consolidam a figura do homem como imagem e semelhança de Deus, enquanto o feminino é frequentemente associado à tentação, desobediência, ao pecado e a desordem. Ao submeter o feminino, o patriarcado centralizou poder, controle social e discurso religioso. E esse modelo persistiu porque passou a ser visto como natural, muitas vezes como algo sagrado e, portanto, incontestável; quando, na verdade, foi algo construído histórico e ideologicamente.
DEUSAS, BRUXAS E FEITICEIRAS – Histórias de quando deus era mulher é um excelente trabalho que nos chama atenção para distorções quanto a substituição de deusas acolhedoras por deuses guerreiros – um projeto de poder que moldou a grande maioria das sociedades atuais. Contudo, as figuras femininas resistem até hoje, presentes em mitos ignorados, tradições populares antigas, nos rituais ancestrais, nas narrativas que agora estão sendo resgatadas, como faz Julia nesta importante obra.
NOTA: 🔟😍

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