domingo, 5 de julho de 2015

CRÔNICA: DESEJO & VAIDADE


“Vaidade das vaidades, tudo é vaidade. Que proveito tira o homem de todo o trabalho com que se afadiga debaixo do sol? Geração vai e geração vem, mas a terra sempre permanece. Toda palavra é enfadonha, ninguém é capaz de explica-la. O olho não se sacia de ver, o ouvido não se farta de ouvir. O que foi será, e o que se fez, se tornará a fazer. Nada há de novo debaixo do sol”.
                                                                                            (Livro do Eclesiastes 1:2)

“Em última análise, ama-se o nosso desejo, e não o objeto desejado”.
                                                                                             (Friedrich Nietzsche)


Em síntese, desejo é a pura vontade de se obter algo; é a cobiça, a aspiração. Alguns pensadores pós-modernos atribuem o avanço da humanidade em todos seus aspectos, a um forte desejo intrínseco do ser humano. Sim, porque talvez a ausência da cobiça nos conduza a um lugar perigoso chamado tranquilidade. Pessoas desprovidas de desejos podem cair numa tediosa zona de conforto.

A autoajuda gosta de definir o puro desejo como condição essencial para a obtenção de conquistas, sejam elas quais forem. Diz este conceito, contraditório filosoficamente, que desejar com intensidade é tudo o que precisa acontecer para que se obtenha o fruto de tal aspiração...

No entanto, Maquiavel nos recomendaria cautela, pois a aproximação da realização de um desejo causaria elevação da ambição pelo mesmo. E desse modo, tal proximidade também eleva a dor do ambicioso, caso ele não conquiste o objeto de seu desejo.

Porque desejo, puramente válido por si pode ser algo perigoso, pois instigaria o vício.

Pra dar um exemplo da maledicência do desejo puro, usarei minha própria experiência de vida: desde a infância sou apaixonado pelos jogos eletrônicos. Antes mesmo dos livros se tornarem o preenchimento do meu vazio existencial, os games já desempenhavam esta função. Tanto é elevado esse amor platônico, que comprei um Super Nintendo aos doze, com o meu primeiro salário de trabalhador; console que na época era a plataforma mais badalada. E um fato que todo amante de videogames sabe muito bem, é que adquirir produtos originais aqui no Brasil é bem caro. E ao entramos na era moderna do admirável Playstation 3, embora eu já não possuísse mais tanto encantamento pelos jogos, ou pelo menos não dispunha de muito tempo para jogar, ainda assim, continuo gastando horrores com eles. E o pior: atualmente eu tenho bem mais poder de compra, se comparado aos meus tempos de adolescente. Dessa forma, mesmo ciente do abrandamento de minha paixão efetiva, algo nunca diminuiu em meu ser: o desejo de adquirir novos jogos. E do mesmo modo que fazia quando era um entusiasmado jogador, ainda continuo sentindo forte anseio em obter novos games. E o resultado disso é que minha estante da sala está infestada de títulos que nunca joguei, e talvez nunca jogue.

Quanto à vaidade, esta seria um tanto como a característica daquilo que não possui conteúdo e por isso, se baseia numa aparência falsa. Vaidade é o excesso de valor dado à própria aparência, aos atributos físicos ou intelectuais.

A grande problemática que a priore este texto esbarra, é que para se falar de vaidade, talvez seja preciso ser detentor de sua característica exaltada. A título de exemplo, é preciso ser belo para se falar da vaidade da beleza; é preciso ser rico para se falar da vaidade da ostentação; é precisa ser sábio para se falar da vaidade do conhecimento... Porque do contrário, qualquer coisa que seja dito parecerá ressentimento.

Talvez a estética seja a condição mais condenável, justamente por ser o orgulho mais fácil de enxergar. Uma pessoa dotada de elevada beleza é constantemente vigiada pelos olhares alheios, fazendo com que o belo precise estar o tempo inteiro tentando demonstrar que possui outras características, porque a beleza sofre com a ideia de que ela por si não baste. Do mesmo modo, a soberba pelos atributos físicos certamente é a condição mais dura de ser amenizada, embora a única inevitável.

Já a vaidade simbólica, seria uma maneira de depositar toda a nossa idolatria em obtenções materiais. Passamos a viver uma vida que mostre que tudo aquilo que possuímos represente o nosso ser. E então esbarraríamos na condição de vazio do ser humano. Este tipo de vaidade é amplamente notado por despertar a inveja. E talvez dentro desse conceito vaidoso é onde há maior condensação entre vaidade e desejo. Porque suplantar o vazio com coisas é como encher um saco sem fundo.

O terceiro e último exemplo de vaidade é a do sábio. Aquele que olha de cima para baixo, dominado pelos encantos, verdadeiros ou não, de seu próprio intelecto. Este tipo de soberba é talvez uma das mais difíceis de ser identificada, pois a erudição tem o viés de pureza, de condição obtida por meio do esforço elevado. O sábio é aquele que por meio de determinação e esforço, conseguiu se distanciar dos demais e, portanto, tem todo o direito de ser diferente; ele próprio tenta se enxergar como superior...

Muito bem; feito esta breve explanação sobre desejo e vaidade, eu lhes faço uma pergunta provocativa: quando estas duas condições humanas se unem num mesmo ser, o que acontece? Qual é o resultado da mescla entre anseio maior e o complexo de Narciso?

Se você quiser vislumbrar o resultado desta sórdida mistura, caro leitor, basta procurar um espelho.

O desejo seria como uma espécie de efeito e a vaidade a causa que gera este efeito. Porque se vaidade é a busca por se fugir do vazio, logo, surge no ser humano o desejo, e ambicionamos para não nos sentirmos oco.

Contudo, antes que você desista da leitura desta reflexão, se é que já não o fez imaginando que irá se deparar com um conteúdo acusador, que tem a premissa de ser detentor de verdades absolutas, fique tranquilo. Não é este o intuito deste autor, que assim como você, também sofre do mesmo mal. E exatamente em concordância com a bela passagem tirada do livro do Eclesiastes, ou da precisa afirmação nietzschiana, que principiaram este texto, sabemos bem que, ao fim das contas, tudo é mesmo pura vaidade... E é ela que instiga o desenfreado desejo.

Portanto, farei uso novamente de mim mesmo para exemplificar o que significa a busca de algo movido pelo desejo envaidecido:

Há muito eu tenho sido um buscador ávido de conhecimento na área de literatura e filosofia. E quanto mais eu aprendo, maior se torna meu desejo por obter mais informação. Quanto mais me aproximo das ideias dos grandes pensadores da história da humanidade, mais elevado fica a minha cobiça pela didática criativa, pela erudição. Pois bem, este meu comportamento poderia ser desejo puro, benigno, e talvez o seja para aqueles que me olham de fora. Mas eu sei que por trás desta obstinada busca pelo conhecimento, há resquícios, ou quem sabe mais do que apenas vestígios, uma gana ininterrupta e crescente, ambicionada pelo reconhecimento social; pela conquista do capital simbólico; pela concessão em ser ouvido... Porque tudo aquilo que sai de meu teclado, quando estou escrevendo sobre algo por mim estudado, tem o viés de se parecer como verdades incontestáveis; como se minhas palavras fossem inquestionáveis e absolutas. E logo após as cuspir na cara do leitor, eu abaixo a cabeça e dissimulo, finjo que não sou ninguém, que apenas estou expondo uma humilde análise sobre o tema em questão. No entanto, dentro de mim, paira uma constante voz dizendo: “Vamos, fale mais! Eu preciso de seus elogios... Não parem com os aplausos”.

Porque de nada valeria qualquer forma de obtenção, se não houvesse o reconhecimento externo.

Não é por acaso, que o espelho é tido na mitologia como um presente do demônio, a fim de totalizar a auto apreciação e impedir que cesse o envaidecimento humano. Portanto, acho válida a afirmação que fiz, há pouco, para que pensemos sobre nossa ambiciosa realidade: se quiser conhecer o resultado da junção entre desejo e vaidade, olhe-se no espelho e encontrará sua resposta. Porque sempre se trata do eu em detrimento de nós; porque achamos que somos a referência do universo; tudo o que nos aparenta ser maior, chamamos de excesso; enquanto aquilo que parece menor, nós avaliamos como desleixo ou incapacidade. A soberba nos faz pensar que somos o modelo ideal de equilíbrio.

Em outro exemplo oportuno da fragilidade humana, eu usarei a alegoria de Santo Antônio – Santo Antão – figura famosa dos anacoretas, aqueles que vão para cavernas ou passam quase a vida inteira no deserto, jejuando. Santo Antão foi um homem que morreu aos cento e cinco anos, os quais ele passou jejuando em cavernas, onde era atacado diariamente pelo demônio. O propósito da entidade obscura era o de desviar a espiritualidade daquele homem. O maligno se concentrou em Santo Antão por quase oito décadas, fazendo com que quando ele rezasse olhando para o crucifixo de Cristo, enxergasse uma mulher nua; constantemente o erguia no ar para distraí-lo; quando ele jejuava aparecia sobre a mesa as iguarias mais extraordinárias que se pudesse supor. Pois eis que Antão conseguiu resistir a tudo; um homem que provou ser dotado de autocontrole excepcional, quase sobre-humano. Foi então, que finalmente o demônio desistiu, virou-se para seu alvo de tormento e disse: “Você venceu! Foste mais forte do que eu.”, e retirou-se da caverna. E Santo Antão caiu de joelhos e agradeceu com uma oração simples: “Muito obrigado, senhor. Agora eu me tornei um santo.”. E naquela hora, o demônio sorriu e voltou, pois Santo Antão havia resistido a todos os pecados possíveis... Menos a vaidade, que no caso dele, tratava-se da soberba de ser santo.

Porque por trás de cada virtude existe um desejo que nos aproxima do vício.

O desejo é como uma espécie de alavanca que aciona a busca por obtenções que servirão para alimentar a vaidade. E esta premissa se torna acumulativa e insinuante, mas que não deve ser entendida como um mal externo, algo isolado e que pode ser tratado ou extinto por meios objetivos. Não. A vaidade faz parte de nós. É um sentimento incessante que tem como seu combustível maior a observação dos outros. Preferimos viver constantemente sob o olhar de terceiros, do que sentir que estamos sozinhos, alheios ao resto do mundo. Tomados pela vaidade estamos, quando transformamos todas as nossas relações sociais em mercadorias, cada vez mais dadas ao prestígio, quase sempre ilógico e desnecessário.

Desfrutamos de uma vida vivida para os outros. Vaidosos somos quando afirmamos que não possuímos vaidade, e assim, assumimos uma postura de humildade elevada frente ao nosso semelhante.

É querer possuir o melhor sempre, porque ser detentor do melhor é ter a própria honra terceirizada, posta em objetos para deleite dos expectadores da vida. É comprar o que não se precisa, com o dinheiro que não se tem, para mostrar para quem não se gosta.

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