sábado, 22 de agosto de 2015

CRÔNICA: MATÉRIA DESCARTÁVEL


Sou acordado pelo ruído familiar do despertador. O som faz com que eu me lembre de que já são 08h30min de uma nova manhã de domingo. Ainda com os olhos fechados, apalpo a lateral direita, à procura do banquinho improvisado como criado-mudo, onde vibra o celular inquieto. Meus dedos só encontram uma protuberância retangular e elevada, forrada com tecido grosso. O toque inesperado me faz recordar que não estou dormindo no meu quarto, mas sim, no sofá-cama da sala. Agora sei onde desativar o alarme do celular, que se encontra um pouco mais acima, precisamente na mureta da sala.

A situação também me faz lembrar de que não durmo sozinho, mas dividindo a colcha king size com outro corpo que se abriga do friozinho matinal. Meu tronco se vira para o lado e eu fico de frente para ela, afundada até o topo da cabeça. Vejo apenas algumas mechas de cabelos loiros, transbordando para fora da colcha.

A constatação daquele ser me causa constrangimento. Não pela pouca familiaridade em estar aconchegado ao lado de uma bela mulher, mas talvez por estar vivenciando o resultado de atitudes impetuosas, ao meu lado uma aventura que deveria ter chegado ao fim horas atrás.

Eu me levanto e ando pela casa. Tudo me parece confuso, desconexo.

Vou até o banheiro. Sirvo-me da privada. Sirvo-me da pia.

Meu rosto, no reflexo do espelho não condiz com a previsão que eu tinha dele. E no lugar do que deveria ser feições de satisfação por uma noite de sexo recém-vivida, eu só vejo resquícios de tédio e desorientação. Esfrego a face com as mãos cheias de sabonete, numa tentativa de apagar traços de um evidente desprezo. Mas concluo que ostento uma realidade absoluta demais para ser desfeita por algo tão ineficaz quanto sabonete líquido... Não sei como esfregar a verdade até ela se transformar em cumplicidade.

Vou até a cozinha... Preparo um café.

Na sala, vejo o rosto amarrotado dela, finalmente emergido da colcha. Espreguiça-se demoradamente, depois olha pra mim e sorri, timidamente. Admito que é um sorriso meigo e cheio de ternura... quase sublime.

Sinto-me na obrigação de perguntar e ela diz que teve uma ótima noite de sono. Ela não devolve a mesma pergunta, mas acho que é melhor assim, pois certamente não iria gostar da resposta. Se é que eu teria coragem de dizer exatamente o que se passava em minha mente.

Um estímulo interno, que apontava para o fato de que a recente noite de sexo fez com que eu me tornasse um ser totalmente liberto das necessidades do corpo. Porém, eu continuava um completo miserável no que se refere a recursos que enriquecem a alma.

Não, ela não poderia ser condenada por isso... Talvez também me achasse fútil e dissimulado; apenas um objeto fálico e descartável, que apenas serviu para aplacar momentaneamente seus impulsos lascivos. E eu desejava que assim ela estivesse pensando, pois dessa forma minha mente poderia continuar censurando sua insignificância, sem que a culpa me torturasse.

Não se trata de uma manhã romântica, mas sim, confusa, na qual dois seres estranhos estudam as conexões primordiais um do outro, com elevada cautela, no intuito de parecermo-nos o menos excêntrico possível. E no meio desta insistente exibição de normalidade fingida, eu não me lembro de levar o café para ela na cama.

Aliás, eu não preciso fazer isso. Afinal, não é uma manhã romântica. É uma manhã confusa... E em manhãs confusas não precisamos levar café para ninguém. Além disso, eu não sei como ela gosta do café; eu não sei se ela gosta de café; eu não sei se ela gosta do cheiro do café; eu não sei se ela gostará do meu café; eu não sei...

Ela não diz absolutamente nada. Como alguém que é plenamente acostumada ao desprezo daquele com quem dividiu a cama, ela se levanta, vai até o banheiro e fecha a porta. E sem esperar por ela, eu me sento à bancada e inicio meu dejejum.

Sirvo-me de pão, biscoito, leite... Quero repor parte das energias que perdi com o sexo, num eterno ciclo de renovação de energia para posteriormente ser gasta com cópulas frívolas.

Ouço os sons abafados que vem do banheiro. Ela se serve de chuveiro, sabonete, creme dental... Livra-se de todos os vestígios meus que ficaram em seu corpo.

Quando a porta se abre, noto que ela está mais bela. Parece aliviada por ter se livrado do meu cheiro; como quem odeia estar impregnada com a essência da matéria descartável.

Descubro que sim, ela gosta de café. Também testemunho que a bebida, quando não está aos seus auspícios, lhe desperta a franqueza. Está fraco demais o seu café, é o que diz... Eu respondo que gosto de café fraco.

Isso resume toda a conversa que tivemos ao longo do café da manhã.

Depois ela arruma suas coisas na bolsa, enquanto eu desfaço o sofá-cama, transformo o quarto improvisado em sala novamente.

Ela comunica que precisa ir embora. Noto certa aflição em seu comportamento; parece ávida por fugir logo de minha casa, de minha presença. Igualmente sou acometido por um alívio crescente, após escutar tal anunciação.

Somos dois espectadores de nossa crueza. Talvez por isso nossa presença incomode tanto. Não gostamos de ser observados por alguém que sabe de nossa recíproca necessidade em usar outro ser humano. Tememos o olhar condenador daquele que aprendeu a reconhecer que somos nada mais do que buscadores da saciedade concupiscente.

Ela sai pelo portão... Não olha pra trás.

Eu o fecho e dou duas voltas na chave... Como se temesse que apenas uma volta fosse insuficiente.

Faremos isso de novo? Provavelmente...

Mas não será com ela, assim como ela não buscará por mim. Porque somos assim: nacos de carne descontrolados e excessivos; gananciosos que buscam suprir as próprias necessidades... Somos apenas Matéria descartável.

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