0h:
17min.
Perco os reflexos, as
pálpebras ficando pesadas. O entorpecimento do corpo se elevando, os sentidos
cada vez menos perceptíveis..., apago a luz e rendo-me, fecho os olhos. Deveria
haver a imediata desconexão com o mundo...
Mas na penumbra algo continua
aceso, agitado. Dentro da escuridão ouço vozes, penso em coisas incoerentes,
relembro instantes idiotas e sem importância..., através das trevas recordo situações
que vivi antes de estar ali, semi desplugado. Às vezes, tudo parece se projetar
ao mesmo tempo, minha mente é uma snowglobe
que alguém agitou freneticamente. E enquanto aguardo impotente no travesseiro,
os pedacinhos de memórias voam de um lado para o outro, aleatoriamente.
Ainda mergulhado em trevas,
ouço ruídos importunos, farfalhar de persianas, vozes abafadas ao longe, o
volume de algum televisor ligado, cachorros latindo, fúrias entrecortadas, a
manifestação de insetos que optam pela camuflagem noturna...
Contraditório ao sono, a
insistência faz as pálpebras fechadas doerem e então abro-as. Não é assim que
se dorme, o ato de fechar os olhos não garante nada! Então, nesse mesmo escuro
ruidoso que o vejo, outra vez parado no marco da porta do quarto, me velando...
Hoje ele está de terno, detém tons escuros e sua gravata bege não combina com o
resto do figurino. A face esquelética dele me desaprova, sabe que novamente me
será negada a transição para fora deste plano..., ele vira as costas e
desaparece, em direção à cozinha. Nunca soube o que ou quem realmente é aquele
sujeito, mas sempre me visita quando não consigo dormir. Se o faz nas raras
noites em que estou desfalecido é difícil saber..., sinceramente eu acho que
não. Ele é como um espectro vigia, que sabe com exatidão as noites em que não
dormirei.
Acho que ele vem até meu
quarto para apreciar meu desalento;
Para ver de perto o quanto sou
incapaz de exercer ato tão ordinário;
Para ratificar a semelhança de
nossa catástrofe;
Para me dizer com seu olhar
gélido que meus esforços são inúteis...
Sempre pensei nele como uma
alma que fora negado o sono, e agora perambula, acordado pelo mundo, à procura
de mais dos seus.
01h: 24min.
Derrotado, reacendo a luz. Sou
um leitor antiquado, então no lugar de sofisticados meios tecnológicos, busco o
livro no criado-mudo e o abro. Costumo ler por horas e horas..., nada acontece.
Apenas mitoses e meioses que se recusam a se desprender da lucidez. Espero pelo
instante em que serei vencido, o instante em que as frases do livro parecem
cada vez mais disformes... O livro despencando no chão.
Apago a luz.
Aqui estou, desnudo...,
desmascarado. Sem uniformes, sem roupas sofisticadas, sem camuflagens sociais.
Nada de perfumes, gel capilar, loções corporais ou qualquer outro meio objetivo
que ajude a despistar a natureza vulgar. Meu único anseio não exige ornamento.
Só o que quero é pegar no sono! E transgressivamente desperto, sou estudado
pela noite com seus olhos escuros e agigantados, cuja penumbra é como um
holofote, que no lugar do clarão, emana trevas que profanam o sossego e roubam
minha letargia.
Entretanto, a esperança ainda
está por aqui em algum lugar... Talvez tenha escorregado pelos lençóis e foi
parar debaixo da cama. Só que não me atrevo, pois é lá onde vivem os monstros.
Debaixo da cama repousam as maiores fontes dos pânicos noturnos; Aranhas
negras, serpentes malignas, insetos peçonhentos, espectros desenganados.
Se eu fosse menos covarde
talvez apalpasse embaixo da cama para procurar pelo meu sono, mas não ouso
fazê-lo. Em vez disso, encolho-me sobre o colchão para me proteger..., cada vez
menor, até meu corpo reduzido suar, angustiado.
02h:
10min.
Levanto-me e vou até o
banheiro. Os pés descalços desbravam o piso fresco. A insanidade me faz pensar que
não seria uma má ideia deitar no chão... Dou descarga, aperto a maçaneta da
torneira que gotejava pecaminosamente, faço tudo sem acender a luz. Valho-me da
familiaridade que me permite antecipar cada obstáculo sem ver... Faço tudo, e
me esqueço de lavar as mãos. Sigo o caminho de volta, ciente de que
inversamente a mim, a noite me enxerga com clareza.
Passo pela cozinha e abro a
geladeira. A claridade irrompe no mármore, na pia, nas paredes
esbranquiçadas..., e nele. A iluminação, mesmo fraca, permite que o veja de
novo. É aquele sujeito! Está agachado num canto qualquer a me espreitar.
Trocamos olhares mudos, silenciosos, como dois suspeitos. Ele agora parece um
pouco constrangido com minha presença, como se eu o tivesse flagrado em alguma
de suas transgressões noturnas. Para tornarmo-nos cúmplices, ele desce o olhar
até a garrafa de água em minhas mãos e parece me condenar por ter bebido do
gargalo... Agora não podemos mais nos delatar, tornamo-nos iguais, transgressores
da madrugada.
Àquela altura, com a visão já
completamente comparsa do negrume, consigo enxergar um pouco melhor. Ele está
segurando uma caneta que usa pra escrever coisas no próprio braço. Vejo um
amontoado desconexo de palavras riscadas em sua magricela página feita de
epiderme. Assim como eu, ele também deve gostar de relatar as frivolidades
consequentes da insônia. São apenas palavras..., palavras que vagueiam pelo
tortuoso terreno de nossas mentes, indo e voltando; construindo imagens,
fazendo conexões com situações ocorridas, outras inéditas, apontando pessoas...
São apenas palavras.
Jornada, madrugada,
precipício, linguagem, passos, casebre, lugubridade, oração, tristeza, inveja,
astuciar, preguiça, maltrato, barulho, frase, rotina, luminária, termômetro,
latido, precário, quarta-feira, asfalto, almoço, medo, tesão, minutos,
administração, poder, insinuante, beleza, invisível, honestidade, calor,
perdição, culpa, solavanco, refratário, inexistente, respeito, dívidas,
rapidez, aurora...
Apenas palavras aleatórias...
Não conheço o significado de algumas, mas sei o que todas juntas querem comigo.
Elas se empenham em me manter acordado.
Com os olhos pesados eu volto
pra cama. julguei que aquele jogo de contar palavras ajudou com o sono.
03h:
14min.
Sabe qual é o ponto mais severo
da angústia? É aquela condição em que você tenta chorar e não consegue. Chorar
seria como expurgar, colocar pra fora toda a raiva, todo desgosto... Nem mesmo
este pequeno agrado a insônia me permite. E abrindo caminho através da noite, sigo
desperto... É estranho estar acordado quando se tem a sensação de que o resto
do mundo dorme. Sinto-me como se todos tivessem sido convidados para uma festa
e eu tive que ficar aqui, sozinho, neste plano escurecido e dissimulado, que
não sente piedade dos que não conhecem o caminho até o palácio de Hypnos, onde certamente todas as almas
do mundo repousam agora.
Completamente desperto neste
mundo de seres que dormem, só posso sustentar a expectativa dos primeiros
clarões que expulsarão as trevas, dando lugar a uma nova manhã. Então, as
pessoas despertarão amassadas de sono, letárgicas, com suas faces inchadas de
tanto dormir...
Vê-los todas as manhãs
caminhando, bêbados de preguiça e ausência de ânimo, característicos efeitos
que acometem aqueles que dormem, mesmo aqueles que usam de meios artificiais
para tal, estes sempre me causaram profunda inveja.
Mas a luz de uma nova manhã
não costuma ser um socorro que surge fácil para aqueles que infortunadamente
estão a lhe aguardar. E enquanto isso, o meu leito segue torturando-me. Mudo de
posição constantemente. Nada do que faço parece proporcionar-me conforto por
mais que dois ou três minutos...
04h:
49min.
A esta altura já existem
sinais de vitalidade mundana. De gente que dormiu o suficiente, os de sono
fácil... Ouço o cantarolar de uma mulher, motores de carros isolados, um casal
conversando, acho que trocam detalhes sobre como será o dia de cada um. Talvez
estejam fazendo uma oração de agradecimento pela noite bem dormida.
No meu quarto, os pensamentos
se tornaram inteiramente coerentes. Como se ao longo da madrugada o
quebra-cabeça de palavras soltas fora encaixando suas peças e finalmente consegui
ter uma visão total do quadro. Penso em atividades que me esperam neste novo
dia; numa garota que por incompetência deixei escapar e que ainda me faz falta;
penso no céu, do lado de fora da janela, que por um instante achei que seria
escuro para sempre; na possibilidade de estar indo novamente ao encontro da mesmice;
no medo de voltar sozinho pra casa; na insônia que estará a minha espere para
mais um encontro; no sujeito moribundo agachado na cozinha, riscando o braço...
Tenho medo de que as pessoas
vejam o caos explicitado em minha face distorcida. Que elas notem o quanto sou
incapaz de algo tão tolo quanto adormecer. Tentarei novamente evitar seus
inúteis conselhos, os quais já foram todos testados... Por que toda pessoa que
não sofre de determinado problema, tem a mania de achar que sabe o que deve ser
feito?
Voltarei para casa no fim do
dia, como sempre faço. Talvez me embriague para forçar a inércia, porque eu não
aguento mais permanecer desperto. Querer a pausa deste mundo é pedir demais?
Quero fechar meus olhos e dormir. Por que me negas o intervalo acalentador da vida, ó despótica insônia?
Cessarei aqui o meu lamurio de incertezas... Dizem que é tudo culpa da cafeína... Estou com vontade de bocejar.
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