quarta-feira, 7 de outubro de 2015

CONTO: A INSÔNIA

0h: 17min.

Perco os reflexos, as pálpebras ficando pesadas. O entorpecimento do corpo se elevando, os sentidos cada vez menos perceptíveis..., apago a luz e rendo-me, fecho os olhos. Deveria haver a imediata desconexão com o mundo...

Mas na penumbra algo continua aceso, agitado. Dentro da escuridão ouço vozes, penso em coisas incoerentes, relembro instantes idiotas e sem importância..., através das trevas recordo situações que vivi antes de estar ali, semi desplugado. Às vezes, tudo parece se projetar ao mesmo tempo, minha mente é uma snowglobe que alguém agitou freneticamente. E enquanto aguardo impotente no travesseiro, os pedacinhos de memórias voam de um lado para o outro, aleatoriamente.

Ainda mergulhado em trevas, ouço ruídos importunos, farfalhar de persianas, vozes abafadas ao longe, o volume de algum televisor ligado, cachorros latindo, fúrias entrecortadas, a manifestação de insetos que optam pela camuflagem noturna...

Contraditório ao sono, a insistência faz as pálpebras fechadas doerem e então abro-as. Não é assim que se dorme, o ato de fechar os olhos não garante nada! Então, nesse mesmo escuro ruidoso que o vejo, outra vez parado no marco da porta do quarto, me velando... Hoje ele está de terno, detém tons escuros e sua gravata bege não combina com o resto do figurino. A face esquelética dele me desaprova, sabe que novamente me será negada a transição para fora deste plano..., ele vira as costas e desaparece, em direção à cozinha. Nunca soube o que ou quem realmente é aquele sujeito, mas sempre me visita quando não consigo dormir. Se o faz nas raras noites em que estou desfalecido é difícil saber..., sinceramente eu acho que não. Ele é como um espectro vigia, que sabe com exatidão as noites em que não dormirei.

Acho que ele vem até meu quarto para apreciar meu desalento;

Para ver de perto o quanto sou incapaz de exercer ato tão ordinário;

Para ratificar a semelhança de nossa catástrofe;

Para me dizer com seu olhar gélido que meus esforços são inúteis...

Sempre pensei nele como uma alma que fora negado o sono, e agora perambula, acordado pelo mundo, à procura de mais dos seus.

 01h: 24min.

Derrotado, reacendo a luz. Sou um leitor antiquado, então no lugar de sofisticados meios tecnológicos, busco o livro no criado-mudo e o abro. Costumo ler por horas e horas..., nada acontece. Apenas mitoses e meioses que se recusam a se desprender da lucidez. Espero pelo instante em que serei vencido, o instante em que as frases do livro parecem cada vez mais disformes... O livro despencando no chão.

Apago a luz.

Aqui estou, desnudo..., desmascarado. Sem uniformes, sem roupas sofisticadas, sem camuflagens sociais. Nada de perfumes, gel capilar, loções corporais ou qualquer outro meio objetivo que ajude a despistar a natureza vulgar. Meu único anseio não exige ornamento. Só o que quero é pegar no sono! E transgressivamente desperto, sou estudado pela noite com seus olhos escuros e agigantados, cuja penumbra é como um holofote, que no lugar do clarão, emana trevas que profanam o sossego e roubam minha letargia.

Entretanto, a esperança ainda está por aqui em algum lugar... Talvez tenha escorregado pelos lençóis e foi parar debaixo da cama. Só que não me atrevo, pois é lá onde vivem os monstros. Debaixo da cama repousam as maiores fontes dos pânicos noturnos; Aranhas negras, serpentes malignas, insetos peçonhentos, espectros desenganados.

Se eu fosse menos covarde talvez apalpasse embaixo da cama para procurar pelo meu sono, mas não ouso fazê-lo. Em vez disso, encolho-me sobre o colchão para me proteger..., cada vez menor, até meu corpo reduzido suar, angustiado.

02h: 10min.

Levanto-me e vou até o banheiro. Os pés descalços desbravam o piso fresco. A insanidade me faz pensar que não seria uma má ideia deitar no chão... Dou descarga, aperto a maçaneta da torneira que gotejava pecaminosamente, faço tudo sem acender a luz. Valho-me da familiaridade que me permite antecipar cada obstáculo sem ver... Faço tudo, e me esqueço de lavar as mãos. Sigo o caminho de volta, ciente de que inversamente a mim, a noite me enxerga com clareza.

Passo pela cozinha e abro a geladeira. A claridade irrompe no mármore, na pia, nas paredes esbranquiçadas..., e nele. A iluminação, mesmo fraca, permite que o veja de novo. É aquele sujeito! Está agachado num canto qualquer a me espreitar. Trocamos olhares mudos, silenciosos, como dois suspeitos. Ele agora parece um pouco constrangido com minha presença, como se eu o tivesse flagrado em alguma de suas transgressões noturnas. Para tornarmo-nos cúmplices, ele desce o olhar até a garrafa de água em minhas mãos e parece me condenar por ter bebido do gargalo... Agora não podemos mais nos delatar, tornamo-nos iguais, transgressores da madrugada.

Àquela altura, com a visão já completamente comparsa do negrume, consigo enxergar um pouco melhor. Ele está segurando uma caneta que usa pra escrever coisas no próprio braço. Vejo um amontoado desconexo de palavras riscadas em sua magricela página feita de epiderme. Assim como eu, ele também deve gostar de relatar as frivolidades consequentes da insônia. São apenas palavras..., palavras que vagueiam pelo tortuoso terreno de nossas mentes, indo e voltando; construindo imagens, fazendo conexões com situações ocorridas, outras inéditas, apontando pessoas... São apenas palavras.

Jornada, madrugada, precipício, linguagem, passos, casebre, lugubridade, oração, tristeza, inveja, astuciar, preguiça, maltrato, barulho, frase, rotina, luminária, termômetro, latido, precário, quarta-feira, asfalto, almoço, medo, tesão, minutos, administração, poder, insinuante, beleza, invisível, honestidade, calor, perdição, culpa, solavanco, refratário, inexistente, respeito, dívidas, rapidez, aurora...

Apenas palavras aleatórias... Não conheço o significado de algumas, mas sei o que todas juntas querem comigo. Elas se empenham em me manter acordado.

Com os olhos pesados eu volto pra cama. julguei que aquele jogo de contar palavras ajudou com o sono.

03h: 14min.

Sabe qual é o ponto mais severo da angústia? É aquela condição em que você tenta chorar e não consegue. Chorar seria como expurgar, colocar pra fora toda a raiva, todo desgosto... Nem mesmo este pequeno agrado a insônia me permite. E abrindo caminho através da noite, sigo desperto... É estranho estar acordado quando se tem a sensação de que o resto do mundo dorme. Sinto-me como se todos tivessem sido convidados para uma festa e eu tive que ficar aqui, sozinho, neste plano escurecido e dissimulado, que não sente piedade dos que não conhecem o caminho até o palácio de Hypnos, onde certamente todas as almas do mundo repousam agora.

Completamente desperto neste mundo de seres que dormem, só posso sustentar a expectativa dos primeiros clarões que expulsarão as trevas, dando lugar a uma nova manhã. Então, as pessoas despertarão amassadas de sono, letárgicas, com suas faces inchadas de tanto dormir...

Vê-los todas as manhãs caminhando, bêbados de preguiça e ausência de ânimo, característicos efeitos que acometem aqueles que dormem, mesmo aqueles que usam de meios artificiais para tal, estes sempre me causaram profunda inveja.

Mas a luz de uma nova manhã não costuma ser um socorro que surge fácil para aqueles que infortunadamente estão a lhe aguardar. E enquanto isso, o meu leito segue torturando-me. Mudo de posição constantemente. Nada do que faço parece proporcionar-me conforto por mais que dois ou três minutos...

04h: 49min.

A esta altura já existem sinais de vitalidade mundana. De gente que dormiu o suficiente, os de sono fácil... Ouço o cantarolar de uma mulher, motores de carros isolados, um casal conversando, acho que trocam detalhes sobre como será o dia de cada um. Talvez estejam fazendo uma oração de agradecimento pela noite bem dormida.

No meu quarto, os pensamentos se tornaram inteiramente coerentes. Como se ao longo da madrugada o quebra-cabeça de palavras soltas fora encaixando suas peças e finalmente consegui ter uma visão total do quadro. Penso em atividades que me esperam neste novo dia; numa garota que por incompetência deixei escapar e que ainda me faz falta; penso no céu, do lado de fora da janela, que por um instante achei que seria escuro para sempre; na possibilidade de estar indo novamente ao encontro da mesmice; no medo de voltar sozinho pra casa; na insônia que estará a minha espere para mais um encontro; no sujeito moribundo agachado na cozinha, riscando o braço...

Tenho medo de que as pessoas vejam o caos explicitado em minha face distorcida. Que elas notem o quanto sou incapaz de algo tão tolo quanto adormecer. Tentarei novamente evitar seus inúteis conselhos, os quais já foram todos testados... Por que toda pessoa que não sofre de determinado problema, tem a mania de achar que sabe o que deve ser feito?

Voltarei para casa no fim do dia, como sempre faço. Talvez me embriague para forçar a inércia, porque eu não aguento mais permanecer desperto. Querer a pausa deste mundo é pedir demais?

Quero fechar meus olhos e dormir. Por que me negas o intervalo acalentador da vida, ó despótica insônia?

Cessarei aqui o meu lamurio de incertezas... Dizem que é tudo culpa da cafeína... Estou com vontade de bocejar.

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