Este é um espaço de reflexão e opinião de um improvável leitor... Ordinário em sua existência, às vezes transgressor em sua análise. Mas como eu disse, é apenas um espaço. E como tal, precisa ser eternamente preenchido...
segunda-feira, 23 de novembro de 2015
CONTO: ORDINÁRIA LOUCURA
sábado, 21 de novembro de 2015
RESENHA DE LIVRO: O DIÁRIO DE SIBYL DANFORTH, PARTEIRA
terça-feira, 10 de novembro de 2015
CRÔNICA: O FIAT BRANCO
Sentado à mesa de uma
lanchonete perto de casa, vejo minha visão abrangente das frivolidades de uma
tarde de sábado serem bruscamente bloqueadas pela repentina presença de um carro branco, que parou bem diante da
calçada onde me encontrava. Era um modelo da FIAT, não muito novo, mas se
encontrava limpo e possuía uma aparência relativamente conservada.
O motorista abriu a porta e
saiu de sua caixa de metal ambulante, altivo, como se fosse um genuíno membro
da nobreza, recém-chegado do século XV e que acaba de descer de seu coche.
Constatei certa semelhança nos traços de seu rosto quando, ao passar por mim,
fez um leve aceno digno da realeza. Foi em direção ao balcão do bar e pediu uma
Coca-Cola. Após efetuar o devido
pagamento – que ele deve ter achado ultrajante o fato de um lorde ter que pagar
por sua bebida – voltou para a fachada do estabelecimento, onde eu me
encontrava visivelmente abrandecido, pois em instantes, me veria livre daquela
parede de lata ordinária e intrometida.
Acontece que sempre que vou
aos meus barzinhos prediletos, gosto de me sentar nas mesas que são colocadas
em frente à calçada, o que permite um despretensioso testemunho da vizinhança.
Porque se for para beber do lado de dentro do bar, cercado por paredes fóbicas que
impossibilitam meu senso de ociosidade, então eu prefiro beber no conforto de casa.
Mas para a infelicidade total
deste que vos escreve, o orgulhoso proprietário do FIAT branco resolveu apreciar sua Coca-Cola, sentando-se precisamente em uma mesa ao meu lado. Logo notei
seu olhar de admiração e orgulho para com o seu antiquado artefato de
locomoção, que certamente devia lhe conferir ganho de autoestima.
Inevitavelmente, iniciei um
embate interior com meu próprio ser, que pesava os prós e os contras de
continuar ali, sentado, tendo como única possibilidade de contemplação a
lataria rudimentar daquele veículo, estacionado indevidamente – ou quem sabe
propositalmente – para o meu minguado deleite.
Se eu fosse embora, estaria
livre do FIAT branco em toda sua
intromissão, e só isso já valeria à pena o esforço. Poderia levar umas cervejas
pra casa e, no conforto do lar, eu ainda teria o privilégio de poder escolher
uma boa música. No entanto, eu me veria outra vez confinado, acuado, escondido
dos inéditos encontros com o mundo do lado de fora do meu portão, que embora
sejam frustrantes em sua maioria, exatamente como estava sendo o encontro
inesperado com o FIAT branco, algumas
vezes nos fazem escapar do tédio. Também é válido salientar que a cerveja
estupidamente gelada colaborava com minha impossibilidade de fuga. E a cada
novo gole que eu dava, mais o meu corpo parecia acometer-se por uma redoma de amparo,
a me abrigar do incessante calor.
Com o termômetro intuitivo
batendo na extremidade do “seja forte e
fique no bar mais um pouco, porque o malquisto já deve estar de saída. Afinal,
os bebedores de Coca-Cola não costumam demorar em bares”, uma fagulha de
otimismo mental fez seu trabalho de recordar a expectativa de que a vida
algumas vezes nos surpreende com encontros alegradores... Contudo, eu admito
que perseverar pelos raros embates prazerosos é ato de gente obstinada e
insistente para além do que jamais conseguirei ser. E no meu caso, o resultado
desse tipo de pensamento acaba surtindo efeito contrário de sua pretensão, e eu
acabo sustentando o bordão de que nada é tão ruim que não possa piorar.
Cautelosamente olhei para o
lado e vi que o dono do detestável veículo estava a me devolver o fitar, agora
com um sorriso largo e ufano.
Não tardou a puxar conversa,
afinal, não havia mais ninguém por perto para ele importunar. Minha
insignificante presença deve ter lhe servido de consolo, porque quando se há
apenas uma única opção, o carecido se torna menos exigente. E como de praxe,
iniciou suas tolices verbais nos atentando para o tempo. Afinal, era uma tarde
de calor evidente demais para ser desprezada por uma forçosa conversa de bar.
Quanto a mim, apenas lhe dei
respostas em total conformidade com suas abordagens esquecíveis, tentando
dispor do máximo que minha já abalada paciência permitia. Pois eis que em meio
aos comentários sobre o calor escaldante, o sujeito resolveu conduzir nossa
enfadonha prosa ao rumo de seu desígnio:
– Sabe de uma coisa: deve
fazer até mal sair nesse calor assim, depois de sair de dentro do ar frio do
meu carro.
Tem toda razão! Então por que
você não volta pra lá e se protege de uma possível insolação, ao mesmo tempo
evita que meus ouvidos sejam bombardeados por suas imbecilidades orais? – por
muito pouco e eu o teria dado essa resposta, mas minha polidez irritante acaba
sempre por me vencer. E no lugar de repelir o indesejável, apenas concordei.
– Pois é... – respondi, em
suspiro profundo, já pensando em tirar o celular do bolso e fingir atender
alguma ligação.
– Comprei esse carro esta
semana, sabe... – continuou ele, com o peito estufado, feito um pardal no
poleiro, na esperança de arrancar de mim algum reconhecimento por sua obtenção
material – Achei que nestes tempos de crise seria melhor pagar à vista. Nunca
se sabe, né?
– Pois é... – Eu era um oceano
de melancolia. Mas então, fui acometido por um sentimento típico dos
derrotados: se não dá pra expurgar o calo, melhor que ficar parado é continuar
caminhando com ele no pé. Elaborei uma piada, fazendo uso de uma frase que
havia no para-brisa traseiro do FIAT branco.
– Você comprou mesmo esse
carro, ou foi Deus quem lhe deu?
Ele soltou um risinho que me
fez lembrar uma hiena abatendo a carniça. Exibiu uma comissão de frente
dentária tão amarela quanto a camisa da nossa Seleção. Olhou para a frase no
vidro e pareceu ter gostado da sugestão que joguei.
– Claro, claro! Você está
certo... Foi mesmo Deus quem me deu – assentiu ele, do alto de sua
religiosidade apalermada.
– Melhor dizendo, quem está
certo é a frase no vidro, né.
Mais risadas. Pensei que seria
melhor não o deixar tão à vontade, ou ele poderia acabar pedindo outra
Coca-Cola.
– Então você acredita mesmo
que Deus lhe concedeu um automóvel como forma de benção? – fiquei a me
perguntar como eram as dádivas antes da invenção da roda ou do motor.
– Com certeza! Deus tem
provido maravilhas em minha vida!
– Muito bem... – Pela primeira
vez, virei-me pra ele, fingindo interesse – Nesse caso, deixe-me ver se
compreendi direito essa lógica: está me dizendo que Deus lhe conferiu um bem
material que indiretamente contribui com a devastação dos recursos naturais que
estão cada vez mais escassos? – deixei que ele pensasse alguns segundos sobre a
pergunta – Isso significa que o seu Deus é totalmente conivente com o aumento
da emissão de CO2 na atmosfera, o que
tem sido causa deste catastrófico calor que estamos enfrentando neste exato
momento... – notei que ele se remexia na cadeira, desconfortável – Seu Deus lhe
abençoou com objeto que melhor simboliza o sistema capitalista vigente, maior
causador de desigualdade social, enquanto nega alimento básico para grande
parcela da população? – outra pequena pausa para ele respirar – O Altíssimo conferiu
um bem que está lhe dando a ilusão de status social, algo que visivelmente
atiça sua soberba, e que aumentará a distância entre você e esse mesmo
criador..., é isso o que está me dizendo?
Eu não havia me dado conta,
mas o FIAT branco deveria estar me
incomodando mais do que havia imaginado, pois fui capaz de proferir aquela breve
impugnação sem ao menos gaguejar... E como já esperava, não houve nenhuma
resposta imediata, além de uma parcimoniosa exclamação bovina:
– Hmmmm...
Embora minhas indagações
sustentassem requintes de crueldades, eu não tinha a intenção de parecer um
ateu fundamentalista que tenta humilhar a doutrina dos outros. De fato, o meu
verdadeiro objetivo era cessar com o explícito envaidecimento orquestrado por
aquele idiota, que então resolveu que havia se tornado alguém acima dos demais
com quem convive neste mundinho de perdedores, e agora era digno de ostentar
suas desprezíveis aquisições superficiais.
E para brindar a
espiritualidade daquela gloriosa tarde de calor, ele não me deixou sem
resposta, embora tenha sido um tanto evasivo:
– Vou lhe contar uma coisa
sobre o nosso pai que está no céu... – antes, foi até a lixeira, na base do
balcão, e jogou a lata vazia fora. Apesar de tudo, ele era mesmo asseado. Então
retornou para concluir com sua majestosa teoria – Deus é um ser justo,
misericordioso e que nos recompensa na hora certa. O pai sempre é generoso com
seus filhos mais fiéis e concede de acordo com o merecimento de cada um.
E tentou validar sua teoria,
lançando-me um olhar intimista.
– Mas se este seu Deus
meritocrático resolver dar um carro para cada um de seus cerca de seis bilhões
de filhos, atuais viventes deste plano, eu acho que não vai ter recursos
naturais no planeta para atender a toda essa demanda – achei essa bem fácil de
replicar.
– Eu sei... Mas Deus atende
somente aos justos, os que foram bons e seguem fielmente a sua palavra.
– O que nos leva à conclusão
de que você é parte desse seleto grupo de filhos prendados que está fazendo
exatamente a coisa certa, não é mesmo?
– É claro... Contribuo com o
dízimo e faço minhas orações todos os dias.
– E podemos também concluir
que um pagão, feito eu, deva estar agindo exatamente em oposição aos ditames
divinos. Afinal, eu ainda não fui agraciado com um extraordinário FIAT branco.
– Pode ser que sim... – ele já
estava dentro do carro, porta fechada, tentando escapar. Mas o vidro foi
abaixado para que cuspisse sua última lufada venenosa, que certamente me
derrotaria – Você é um homem religioso?
– Não, eu não sou.
– Pois é... – Fez aquela cara
de quem não precisa dizer mais nada.
– Sabe o que eu acho sobre
Deus? – juro que começava a invejar o proprietário do FIAT branco; gostaria muito de poder ver minha estima aumentada por
conta de uma bobagem como a compra de um carro. Mas aproveitei aqueles últimos
momentos na presença do filho bendito, para concluir rápido raciocínio – Acho
que Deus é uma criança com uma fazenda de formigas. Ele nunca toma nenhum
partido. Fica apenas observando, talvez um tanto entediado, tudo o que nós,
suas adoráveis formiguinhas, fazemos dentro da fazendinha de bobagens... Quem
sabe até se permitindo rir de algumas formigas que se acham merecedoras de
recompensas tolas, tomadas por elas como coisas divinas.
Ele ligou o FIAT branco e foi embora. Mas não sem
antes prometer que iria orar para que minha alma perdida encontrasse o caminho
da salvação.
Fiquei sentado em minha mesa,
agora completamente detentor de uma visão privilegiada do nada que acontecia no
tempo e espaço, imaginando onde estaria indo aquele sujeito cheio de verdades.
Será mesmo que ele acreditava
que uma divindade o havia ofertado objeto que só serve para suprir alguma
necessidade mundana? Ou talvez ele usasse o nome de Deus para camuflar sua
vaidade em afirmar aos quatro cantos que não possui capacidades de obtenção sem
o apoio divino?
É difícil saber...
E eu é que não vou me meter no
discernimento alheio. Melhor pensar em coisas menos transcendentais, como a
cerveja que eu estava a degustar e que se encontrava mesmo deliciosamente
gelada. E se é errado dizer que minha bebida seja resultado de meus esforços
pela sobrevivência neste mundo pragmático, então tudo bem... Eu agradeço a
Deus, sem nenhum problema, pela cerveja gelada que ele pôs em minha mesa...
Afinal, como dizia Nietzsche: