terça-feira, 10 de novembro de 2015

CRÔNICA: O FIAT BRANCO


Sentado à mesa de uma lanchonete perto de casa, eu vejo minha visão abrangente do movimento frívolo de uma tarde de sábado, ser bruscamente bloqueada pela repentina presença de um FIAT branco, de aparência relativamente conservada.

O motorista abriu a porta e saiu de sua caixa de metal ambulante, altivo, como se fosse um genuíno membro da nobreza do século XVIII que acaba de descer de seu coche. Constatei certa semelhança nos traços de seu rosto quando, ao passar por mim, fez um leve aceno digno da realeza. Foi em direção ao balcão do bar e pediu uma Coca-Cola. Após efetuar o devido pagamento – que ele deve ter achado um insulto a ideia de que um verdadeiro lorde precise pagar por sua bebida – ele voltou para a fachada do estabelecimento, onde eu me encontrava visivelmente abrandecido, pois em instantes, eu me veria livre daquela parede de lata intrometida em minha frente.

Mas para a infelicidade total deste narrador, o orgulhoso proprietário do FIAT branco resolveu apreciar sua Coca-Cola, sentado precisamente em uma mesa ao meu lado, enquanto admirava com orgulho o seu artefato de locomoção, que logo imaginei, devia lhe conferir certo ganho de autoestima.

Comecei um embate interior com meu próprio ser, que pesava os prós e os contras de continuar ali, sentado, tendo como única possibilidade de contemplação a lataria branca e ordinária daquele veículo, estacionado indevidamente – ou quem sabe propositalmente – para o meu minguado deleite.

Se eu fosse embora, estaria livre do FIAT branco em toda sua intromissão, e só isso já valeria à pena o esforço. Poderia levar umas cervejas pra casa e, no conforto do lar, eu ainda teria o privilégio de poder escolher uma boa música. No entanto, eu me veria outra vez confinado, acuado, escondido dos inevitáveis e inéditos encontros com o mundo do lado de fora do meu portão. Que embora sejam frustrantes em sua maioria, exatamente como havia sido o encontro inesperado com o FIAT branco, algumas vezes nos faz escapar do tédio. Também é válido salientar que a cerveja estupidamente gelada colaborava com minha impossibilidade de fuga. E a cada novo gole que eu dava, mais o meu corpo parecia acometer-se por uma redoma de neve, a me abrigar do incessante calor.

Com o termômetro intuitivo batendo na extremidade do “seja forte e fique no bar mais um pouco, que o malquisto já deve estar de saída”, uma fagulha de otimismo mental fez seu trabalho de recordar à cerca da ideia de que a vida algumas vezes nos surpreende com encontros alegradores... Contudo, eu admito que insistir na espera destes raros embates prazerosos é ato de gente obstinada e insistente além do que jamais conseguirei ser. E no meu caso, o resultado desse tipo de pensamento acaba surtindo efeito contrário de sua pretensão, e eu acabo sustentando o bordão de que nada é tão ruim que não possa piorar.

Olhei para o lado e vi que o dono do detestável veículo estava a me devolver o fitar, agora com um sorriso largo e ufano.

Não tardou a puxar conversa comigo, afinal, não havia mais ninguém por perto para ele importunar. Minha insignificante presença deve ter lhe servido de consolo, porque quando se há apenas uma única opção, o carecido se torna menos exigente.

Como de praxe, iniciou suas tolices verbais nos atentando para o tempo. Afinal, era uma tarde de calor evidente demais para ser desprezada por uma forçosa conversa de bar.

Quanto a mim, apenas lhe dava respostas em total conformidade com suas abordagens esquecíveis, tentando dispor do máximo que minha já abalada paciência permitia. Pois eis que em meio aos comentários sobre o calor escaldante, o sujeito resolve conduzir nossa enfadonha prosa ao rumo de seu auspício:

– Sabe de uma coisa: deve fazer até mal sair nesse calor assim, depois de se estar dentro do ar frio do meu carro.

Tem toda razão! Por que você não volta pra lá e se protege de uma possível insolação, e ao mesmo tempo, evita que meus ouvidos sejam bombardeados por seus atentados orais? – por muito pouco e eu teria lhe dado esta resposta, mas minha polidez irritante acaba sempre por me vencer. E no lugar de repelir o indesejável, eu apenas concordei com suas imbecilidades.

– É verdade... – respondi, em suspiros profundos, já pensando em tirar o celular do bolso e fingir atender alguma ligação.

– Comprei esse carro esta semana, sabe... – insistiu ele, com o peito estufado, feito um pombo, talvez esperando de mim, algum reconhecimento por sua obtenção material – Achei que nestes tempos de crise seria melhor pagar à vista. Nunca se sabe, né?

– Pois é... – Eu era um oceano de concordâncias. Mas então, fui acometido por um sentimento típico dos derrotados: se não dá pra expurgar o calo, melhor tentar continuar caminhando com ele no pé. Resolvi elaborar uma piada, fazendo uso de uma frase que havia no para-brisa traseiro do FIAT branco.

– Você comprou mesmo esse carro, ou foi Deus quem lhe deu?

Ele soltou um risinho que me fez lembrar uma hiena abatendo a carniça. Exibiu uma comissão de frente dentária tão amarela quanto a camisa da Seleção Brasileira. Olhou para a frase no vidro e pareceu ter gostado da sugestão que joguei pra ele.

– Claro, claro. Você está certo... Foi mesmo Deus quem me deu – assentiu ele, do alto de sua religiosidade apalermada.

– Então você acha que Deus lhe concedeu um automóvel como forma de benção? – fiquei a me perguntar como eram as bênçãos antes da invenção da roda ou do motor.

– Com certeza! Deus tem provido maravilhas em minha vida!

– Muito bem... – Pela primeira vez, virei-me pra ele, fingindo estar interessado – Nesse caso, deixe-me ver se compreendi direito essa história: você está me dizendo que Deus lhe conferiu um bem material que indiretamente contribui com a devastação dos recursos naturais, que estão cada vez mais escassos? – deixei que ele pensasse alguns segundos sobre a pergunta – Isso significa que o seu Deus é totalmente conivente com o aumento da emissão de CO2 na atmosfera, o que tem sido causa deste catastrófico calor que estamos enfrentando neste exato momento? – notei que ele se remexia na cadeira, visivelmente desconfortável com tais indagações – Seu Deus lhe abençoou com o objeto que melhor simboliza o sistema capitalista vigente, maior causador do distanciamento entre classes sociais neste mundo materialista? – outra pequena pausa para ele respirar – O seu altíssimo lhe conferiu um bem que certamente está lhe proporcionando status social, algo que visivelmente lhe atiça a soberba, o que aumentará a distância entre você e esse mesmo criador... É isso que está me dizendo?

Eu não havia me dado conta, mas o FIAT branco deveria estar me incomodado mais do que havia imaginado, pois fui capaz de proferir aquele questionário sem ao menos gaguejar... E como eu já esperava, não houve nenhuma resposta imediata, além de uma parcimoniosa exclamação bovina:
– Hmmmm...

Embora minhas indagações sustentassem requintes de crueldades, eu não tinha a intenção de me parecer com um ateu fundamentalista que tenta humilhar a doutrina dos outros... De fato, o meu verdadeiro objetivo era cessar com o explícito envaidecimento orquestrado por aquele idiota, que então resolveu que havia se tornado alguém acima dos demais com quem ele convive neste mundinho de perdedores, e agora era digno de ostentar suas desprezíveis aquisições materiais.

E para brindar a espiritualidade daquela gloriosa tarde de calor, ele não me deixou sem resposta, embora tenha sido um tanto evasivo:

– Vou lhe contar uma coisa sobre o nosso pai que está no céu... – antes, foi até a lixeira, na base do balcão, e jogou a lata vazia fora. Então, retornou para concluir sua majestosa teoria – Deus é um ser justo, misericordioso e que nos recompensa na hora certa. O pai sempre é generoso com seus filhos mais fiéis.

Ele tentou validar sua teoria, lançando-me um olhar intimista.

– Mas se ele quiser dar um carro para cada um de seus cerca de seis bilhões de filhos, atuais viventes deste plano, eu acho que não vai ter recursos naturais no planeta para atender a toda essa demanda – achei essa bem fácil de replicar.

– Eu sei. Mas Deus atende somente aos justos, os que foram bons e seguem fielmente a sua palavra.
– O que nos leva à conclusão de que você deva ser parte desse seleto grupo de filhos prendados que está fazendo exatamente as coisas certas, não é mesmo?

– É claro... Faço minhas orações todos os dias.

– E podemos também concluir que um desnaturado, feito eu, deva estar agindo exatamente em oposição aos ditames divinos... Afinal, eu ainda não fui agraciado com um FIAT branco.

– Pode ser que sim... – ele já estava dentro do carro, porta fechada, mas o vidro abaixado para cuspir uma última pergunta, que certamente me derrotaria – Você é um homem religioso?

– Sabe o que eu acho sobre Deus? – ignorei sua pergunta aliciante, para aproveitar aqueles últimos momentos em sua impoluta presença e concluir rápido o meu raciocínio – Eu acho que Deus é uma criança com uma fazenda de formigas. Ele nunca toma nenhum partido. Fica apenas observando, talvez um tanto entediado, o que nós, suas adoráveis formiguinhas, fazemos dentro de sua fazendinha de bobagens... Quem sabe até se permitindo rir de algumas formigas que se acham merecedoras de recompensas tolas, tomadas por elas como coisas divinas.

Ele ligou o FIAT branco e foi embora. Mas não sem antes concluir que iria orar para que minha alma perdida encontrasse o caminho da salvação.

Fiquei sentado em minha mesa, agora completamente detentora de uma visão privilegiada do nada que acontecia no mundo ao redor, imaginando onde estaria indo aquele sujeito cheio de verdades... Será mesmo que ele acreditava que uma divindade havia lhe dado um objeto que só serve para exprimir alguma necessidade mundana? Ou talvez ele usasse o nome de Deus para camuflar sua vaidade em afirmar aos quatro cantos que não possui capacidades de obtenção sem o apoio divino?

É difícil saber...

E eu é que não vou me meter no discernimento alheio. Melhor pensar em coisas menos transcendentais, como a cerveja que eu estava a degustar e que se encontrava mesmo deliciosamente gelada. E se é errado dizer que minha bebida seja resultado de meus esforços pela sobrevivência neste mundo pragmático, então tudo bem... Eu agradeço a Deus, sem nenhum problema, pela cerveja gelada que ele pôs em minha mesa... Afinal, como dizia Nietzsche:

A verdade é um produto da necessidade psicológica de duração”.

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