Deitada em meu peito, eu notava seu rosto subir e descer
levemente ritmado por minha respiração lenta. Ela olhava atentamente para a
foto que eu havia lhe mostrado; um garotinho assustado, as canelas à mostra
parecendo dois palitos, em cima de uma bicicleta.
– Você era feio – comentou ela, entre o que imaginei ser uma
mistura de sorriso e comedimento.
O quarto era um templo silencioso e isso fazia com que a voz
dela enchesse o ambiente. Paredes brancas, manchadas pelo tempo, eram
espectadoras de frases curtas e desenvoltas. Às vezes, as cortinas balançavam
anunciando a entrada de uma brisa leve que gostava de passear pelo recinto,
para surrupiar aquelas palavras soltas no ar e as levar para longe de mim,
deixando restar apenas a incômoda quietude.
– Me fala o seu nome – pedi, enquanto acariciava a maciez dos
seus cabelos.
Ela não respondeu nada. Apenas ficava olhando para a foto de
minha infância, como se sua mente estivesse emersa, tentando desvendar aquele
instante congelado que lhe era desconhecido.
De repente, ela sorriu para a foto de um jeito meio diferente
de poucos instantes atrás. Quase deu para ter um vislumbre do filme que se
passava em sua cabeça. Agora eu era agraciado pela imagem de seus dentes
surgindo por detrás dos lábios esticados, abertos até quase os molares. Seu
dedo indicador tocou levemente no papel fosco, fazendo uma leve carícia na
bicicleta do garoto.
Naquele momento, eu senti inveja de mim mesmo. Queria voltar
no tempo e ser de novo aquele moleque feio e magricela. Porque embora toda
fragilidade estivesse exposta, a singeleza daquele menino era completamente
capaz de raptar para si toda a atenção daquela dama. Conseguira fazer com que
ela sorrisse de um jeito que eu jamais conseguirei.
– Nunca soube andar de bicicleta – confessou ela, o olhar desmanchado
em anseios.
– Ainda há tempo... Eu posso te ensinar se quiser.
– Não quero mais – ela ergueu o tronco e sentou na beirada. Deu
uma última olhada para o passado irrecuperável em sua mão, depois para os
arranhões em meu peito, apertando os lábios – Tenho vergonha.
Tive vontade de insistir e dizer que era possível recuperar
coisas que se perderam, mas havia algo que eu julgava mais precioso. Aulas de
bicicletas serviriam apenas como uma boa razão para nos reencontrarmos. No
entanto, eu ainda precisava arrancar o essencial dela. E não sabia direito como
fazer...
– Posso ficar com essa foto pra mim? – ela ergueu o olhar até
encontrar o meu. Eram olhos redondos e grandes. Um castanho tão profundo que eu
pensei que fosse me perder para sempre. Minha coragem pífia fixada em suas
esferas brilhantes até eu ser engolido em questão de segundos... A alma, antes
equilibrada e soberba, havia sido totalmente subjugada dentro de seu precipício
de ternura.
Uma vez eu li num livro velho que uma alma nunca se perde,
ela sabe parar na hora certa, na beira do abismo, e deixar apenas que o corpo
caia sozinho, para que um dia ele retorne mais forte e impávido. Como uma fênix
que nasce das próprias cinzas... E embora livros velhos sustentem a premissa de
parecerem detentores de incontestável sabedoria, acho que o abismo tem esse
nome porque ele nos engole em definitivo;
Abismo é sinônimo de queda infindável;
Parado na beira do despenhadeiro, eu desafiei os olhos
castanhos com toda a minha desprezível audácia:
– Eu troco a foto pelo seu nome – propus um acordo que
considerei razoável. Pelo menos, foi o que tentei transparecer. Porque dentro
de mim, eu sabia que aquele nome me era precioso e valeria muito mais do que um
retrato de minha infância banal.
No entanto, minha dama se levantou e andou em direção ao
banheiro. Sua silhueta nua era fabulosa; seu andar ereto e gracioso... Um corpo
que se deixava ser violado para só então violar. Eu me perguntava quanto outros
homens haviam sucumbido aos encantos daquele inebriante pecado. Quantos como
eu, quiseram arrancar coisas dela, como algozes gananciosos, porém,
reconhecidamente fracos e incapazes frente à tentação de sua carne curva e
envolvente. Eu não havia sido o primeiro e certamente não era o único, mas
queria ser o último a explorar sua sublime caverna; queria tê-la só para mim,
sem nenhum pudor, deixando-me perecer às mais impensadas loucuras.
A verdadeira insanidade é reconhecer o veneno e, mesmo assim,
desejá-lo em toda sua sedução.
Mas para me perder definitivamente eu precisava da chave do
castelo... Eu necessitava de um nome. Mesmo sabendo que tê-lo seria a minha
definitiva e total ruína.
Quando ela saiu do banheiro, com o corpo escondido numa
toalha, notei que seus ombros à mostra ainda estavam molhados. Ela andou pelo
quarto, verificou alguma coisa no telefone, abriu o frigobar... Ouço o estalo
da lata de cerveja sendo aberta, enquanto um medo inesperado vem até meu ouvido
e sussurra palavras ardilosas.
E recostado na cabeceira da cama, eu sou intimidado pelo
receio e me torno pequeno, até ser seguro pelo pescoço e ter o ar escasseado.
Eu sabia que tinha hoje e somente hoje para arrancar o nome dela. Precisava daquilo
porque isso daria aos nossos encontros um significado, uma existência. Seria como
lhe tornar parte de minha realidade; deixaríamos de ser subjetivos para mergulharmos
na objetividade segura e acalentadora.
Sem o seu nome eu não poderia contar o que sinto; não poderia
falar dela para os amigos no bar; não poderia relatar para ela como foi o meu
dia após voltar do trabalho; não massagearia seus delicados dedos com minhas
mãos grossas, enquanto me deixava cair novamente no precipício castanho... A
falta daquele nome a isentava de uma identidade e eu não gostava da ideia de
amar um fantasma.
– Tem um cara tocando violão perto da piscina – disse ela,
entre um gole da cerveja, enquanto admirava o mundo lá fora, recostada na
janela.
Levante-se e vá até lá, seu covarde!
Mas não adiantava exigir à minha frágil existência que
fizesse algo. Eu estava sendo enforcado literalmente pelo medo e falar já não
era mais uma opção. Toquei em meu pescoço, num ato desesperado de encontrar as
garras maléficas do pânico a me estrangular. Com extrema dificuldade consegui
me livrar do aperto que certamente me levaria à desfalecer. O ar voltou a
invadir o meu peito, eu transpirava bicas, o coração acelerado bombeando
angústia através da corrente.
Ela continuava a olhar pra fora e não notou a minha intensa
luta em cima da cama.
Tomado por uma coragem inusitada, talvez oriunda de minha recente
bravura em superar o que me parecia invencível, eu me levantei e fui até o
encontro dela. Abracei-a por trás e apertei sua cintura contra o meu corpo.
Lambi seus ombros molhados e subi com a boca até o pescoço e
o beijei avidamente. Senti seus pelos eriçarem. Como ela não me dava nenhuma
resposta, eu a segurei forte pelo braço e a virei, até ficar de frente para
mim.
– Você sabe que eu não posso – concluiu ela, antecipando
minha insistência.
– Eu só quero saber o seu nome... Isso não é um pedido de
casamento.
– Por que temos que fazer deste, um encontro igual a todos os
outros? – seus lábios a poucos centímetros do meu – Sem nossos nomes podemos
ser quem nós quisermos.
– Eu não quero ser um a cada dia; não quero ser nenhum dos
outros... Quero ser eu! Exclusivamente para você. E quero que você seja minha.
– E quem disse que você é o seu nome? Isso é apenas uma
definição que te deram; uma marca social para que suas transgressões pudessem
ser identificadas com mais facilidade – Ela me beijou levemente. Seus lábios
humedeceram saliva e cevada em minha boca – Tudo o que fazemos em nossas vidas
é encher os nossos nomes com a podridão que acumulamos ao longo dela – Ela
falava com sua boca dentro da minha.
Então, lábios foram separados;
Meus olhos procuraram o teto;
Os dela procuravam encontrar minha aprovação em algum canto
do quarto.
Sempre que um argumento vem em forma de justificativa, há por
trás dele uma ruptura; uma divisão que nos deixa mais distantes daquilo que
seria a obtenção do objeto desejado. Por três dias daquele inesquecível
carnaval havíamos compartilhado praticamente tudo; nossa solidão, os abraços,
os beijos, os lençóis do hotel, os cigarros, a mesa do café, os delirantes
orgasmos... E de repente, ela não parecia mais disposta a repartir nem mesmo a
lata de cerveja que estava bebendo. O que dizer então de dividir seu nome
comigo?
Sim, eu havia passado aqueles três dias implorando por ele.
As pessoas olhavam para nós e viam um casal de namorados
vivendo o apogeu da paixão. Sempre de mãos dadas, beijos ardentes e demorados,
risos soltos e fáceis, proximidade quase ininterrupta...
E ao fim do terceiro dia, a recusa definitiva da identidade
sob a bandeira do ineditismo que parecia lhe excitar, enquanto minava as minhas
esperanças.
– Sabe o que acontece? – ela já estava enfiada em seu vestido
de estampas leve de carnaval. Calçou as sandálias e chacoalhou os cabelos
molhados com as mãos, num gesto que anunciava que ela iria escapar urgentemente,
sem nem escová-los – Eu sei que você é como todos os outros; não quer uma
namorada... Homens não gostam de carteira assinada.
Sua beleza era magnífica pela simplicidade.
Ela veio até mim e beijou meus lábios cerrados.
– O que você quer é que este feriado dure para sempre... Mas
isso eu não posso lhe dar.
As palavras ficaram soltas novamente no ar, mas desta vez,
não havia nenhuma brisa para apará-las. Ou talvez o vento entendesse que era a
minha vez de fazer isso.
Minha dama sem nome escorregou pelos meus dedos e saiu pela
porta.
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