quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

CONTO: DESPREZÍVEIS MIGALHAS


Eu compreendo todo o meu medo de seguir em frente, porque sei que acabará chegando um momento em que não poderei mais parar. Também temo pela ideia de parar, justamente porque seguir em frente é o que me livra da aflição.

Conceitos contraditórios...

Sempre achei bacana a ideia de poder voltar. O regresso pressupõe humildade e não é sempre que dispendemos desse atributo. Mas talvez por pura covardia de meu ser, eu nunca consegui voltar... No entanto, eu acho que nunca voltei nessa vida, porque de fato, eu nunca fui.

Os arrependimentos estão sempre ao meu lado. Sentam-se comigo no banco da praça e esperam, pacientemente, por alguma solução, respostas... Muitas vezes esta dor toma emprestado um avatar, então ela adquire forma e sua aparência se torna ainda mais angustiante. Nesta tarde cinzenta e onerosa, a dor está vestida de menino. Têm seis anos de idade, a pele branca como a areia que cerca o nosso banco, os cabelos lisos cortados bem curtos, bochechas avermelhadas de ternura, os olhos amendoados que ele coça constantemente, talvez por conta da poeira sem gravidade a respingar em nossa face. Ou pode ser apenas um tique nervoso que antecipa os acontecimentos que estão por vir.

O menino não da muita importância para a minha presença ao seu lado. Prefere observar os pombos, que perambulam sob nossos pés. Um deles estaciona bem em nossa frente. Seu pescoço hiperativo pende de um lado para o outro, questionando-nos à cerca de onde estão as migalhas.

Eu as jogo para ele, que degusta avidamente, usando a ponta do bico para destilar seus modos formais de ave submissa. Passado alguns minutos, eu me dou conta de que não posso estar jogando migalhas, simplesmente porque eu não tenho nenhuma em que esteja pronta a me desfazer... O pobre pombo também não demora a compreender que seu bico só encontra aquilo que eu não joguei.

A realidade é uma brincadeira sarcástica e cruel.

Sei que sou um ser constituído de sobras e farrapos, mas não tenho nem mesmo isso a oferecer. Ou talvez minhas migalhas sejam tão desprezíveis que não sirvam nem mesmo para saciar a fome de um pequeno pombo.

O garotinho se cansa da ave faminta e finalmente olha para mim. Talvez me reprovando por eu não ter feito nada pela fome do pobre animal alado. Condena-me por deixar que a pomba vá à procura de outros bancos onde outros seres talvez tenham migalhas degustáveis.

As minhas são amargas demais para servir de alimento.

– Vamos pra casa agora? – o menino quer saber.

Eu balanço a cabeça negando. Evito o brilho de expectativa em seus olhos.

Desvio o olhar rápido para não ver a dor. Eu sei o que o termo “casa” quer dizer para aquela pequena vida; sei o significado de sua pergunta aflitiva; sei também que a mochila pendurada em suas costas pode responder melhor do que eu àquela pergunta.

Mas inevitavelmente sou traída pelo meu silêncio. Ele é a transparência que eu tento evitar...
Um homem idoso se aproxima de nós. Ele arrasta com certa dificuldade um carrinho pela alça, mas acho que de certa maneira, é o carrinho que o puxa pelas mãos.

– Você quer um picolé? – Pergunto ao menino, quando o velho claudicante para em nossa frente e sugere que a tarde é quente e propícia a uma iguaria gelada.

Dessa vez é o garoto quem balança a cabeça negando. Outra vez eu não me atrevo a olhá-lo por completo. Mas meio de canto, eu vejo que ele está emburrado.

Quer voltar pra casa, eu entendo. Mas como posso levá-lo para um lugar que eu não sei onde fica? Pelo menos nunca encontrei no mundo um lugar onde me sentisse abrigada; um lugar em que eu pudesse chamar de lar.

O velho também se afasta carrancudo. Para ele deve ser inaceitável o fato de que um moleque de seis anos acabara de recusar um de seus deliciosos picolés... No fim das contas, parece que todos nós queremos alguma coisa.

A pomba quer migalhas;
O garotinho quer ir pra casa;
O velho quer que as pessoas consumam;
E eu quero que tudo termine logo...

Foi aqui, neste mesmo banco de praça, de assento desconfortável, áspero e rachado pelo tempo, que fui confrontada por uma das questões mais difíceis que alguém já me fez na vida:

– Por que você sempre se senta neste banco? – Perguntou Lucinda, uma amiga dos tempos de escola. Naquele dia, ela parecia distraída, como se não direcionasse sua questão a mim.

– O que? – eu tentei ganhar tempo. Dizem que responder com outra pergunta denota que não temos resposta e, por isso, tentamos delongar. E eu costumo fazer isso quando sou questionada à cerca de algo sobre mim que nunca parei para refletir – Como assim?

– Ué, sempre que vem nesta praça, você se senta aqui.

– Isso não é verdade – Respondi categórica. O que Lucinda queria dizer com aquilo? Que eu era previsível? Neurótica? Que eu era incapaz de sair da minha regrada rotina?

– Bom, eu sempre vejo você sentada aqui – reforçou ela, convicta.

– É porque eu gosto de me sentar neste banco. Mas se ele não estiver disponível, eu me sento noutro, sem nenhum problema.

Ela não quis combater o meu argumento, mas acho que era porque sabia que eu não conseguiria lhe convencer de nada. Permaneceu sentada ao meu lado, observando uma formiga passear pelo seu braço. Perseguia o inseto que dava voltas em seu cotovelo, como se aquilo fosse ato mais coerente do que minha defesa.

– Era aqui que você se sentava pra dar uns pegas no Edgar; e quando ele te deu um pé na bunda, você veio pra cá e ficou chorando... Sempre que saímos da escola a gente se senta aqui.

– Achei que era você quem escolhia este lugar – Tive que mentir, porque aquelas constatações estavam me deixando nervosa. Era claro que eu já havia me sentado noutros bancos!

– Eu apenas te seguia – completou Lucinda, com ar de indiferença – Mas depois de um tempo, passei a fazer isso no automático, porque entendi que você só fica relaxada quando está neste banco...

Fiquei em silêncio, tentando pensar numa única vez em que eu pudesse ter me sentado em outro lugar... Só consegui me Recordar de uma manhã chuvosa na qual eu insisti em me sentar no mesmo local pelo qual sou acusada de fidelidade, mesmo estando ele molhado e escorregadio. Nas raras vezes em que encontrava alguém aqui, eu me sentia desconfortável, ficava rodando pela praça, feito uma tonta, e acabava indo embora. Acho que até as pessoas que ocasionalmente frequentavam a praça já haviam aprendido que este banco me pertencia. Porque tem sido cada vez mais raro encontrar alguém sentado nele.

A maioria das pessoas evita automaticamente aquilo que foi proclamado por alguém...

E a incapacidade de encontrar justificativa para tamanha obviedade me consumiu por toda a vida.
A complexidade em responder certas questões pressupõe a fragilidade da existência. Talvez este banco velho seja, de fato, o único lugar do mundo onde eu consegui me sentir aconchegada, protegida...

Minha armadura particular.

Mas aquela questão me fez pensar, e do alto de meu amedrontamento, eu procurei justificação. E a cada novo pretexto formulado, uma nova rachadura se fazia em meu concreto quebradiço e frágil. Eu era o meu próprio banco de pedra, o qual eu recusava a aceitar sua majestade ordinária e explícita. Inquietantes e suspeitas eram as minhas conclusões, o que dizer então de meus atos medíocres? De como eu me arrumava toda, sob a alegação de que iria sair para curtir a noite. E no lugar de fazer isso, eu vinha pra cá, me sentar no banco; dos instantes de descontrole porque alguém havia derramado alguma coisa gosmenta no assento e eu tive que ir embora, pensando em voltar com água para lavar o meu minguado pedaço de mundo; dos dias em que eu esperava de longe e em pé, até que os intrusos levantassem e fossem embora, para eu finalmente poder me sentar.

Era estranho pensar no quanto aquele pedaço velho de concreto era presente em minha existência. No quanto eu me encontrava obcecada por isso, e o pior, o quanto as pessoas já haviam notado; comentavam pelas minhas costas...

Eu era a maluca do banco da praça. E talvez temendo que eu os enxotasse ninguém se sentava mais aqui.

Lucinda foi a única que tentou me avisar sobre minha paranoia. Devia ser mesmo uma grande amiga, pois mesmo diante da imensa dificuldade em relatar algo constrangedor, ela foi corajosa e tentou fazê-lo. Focou sua atenção numa formiguinha para fazer parecer que aquela abordagem não era nada demais; que era só uma pergunta sem importância.

Mas o banco da praça era a minha teimosia; o meu hábito pecaminoso...

E outra vez eu estou sentada nele, pois somente aqui sou capaz de resolver questões cruciais de minha desprezível existência. Ou pelo menos, porque eu preciso pensar em como dar algum significado à vida de alguém. E já que eu não sei voltar de nenhum lugar por jamais ter ido, acho que tal ideia acabou se tornando um acalento, porque sou alguém que desconhece o caminho do regresso, e isso me impede de dar espaço ao arrependimento.

O casal que eu aguardo surge ao longe. Adentram timidamente na praça e não precisam procurar por mim, pois sabem em qual banco eu estou sentada.

Os passos dos dois se tornam imprecisos conforme se aproximam. A mulher caminha grudada ao homem; está usando saia longa e blusa de manga curta. Apoia-se com as duas mãos no braço do marido, num gesto que denota toda a sua apreensão. Ele está usando calça social e camisa de manga longa; trajes formais demais para um passeio na praça.

– Estamos no horário – disse o homem, mas eu não soube interpretar se aquilo foi uma pergunta ou se ele está só exaltando sua pontualidade. Sorriu para o garotinho ao meu lado e o cumprimentou, fazendo uma tosca vozinha de criança.

– Nós trouxemos o seu dinheiro – disse a mulher, sem fazer cerimônias. Parece cada vez mais desconfortável. Cada segundo ali, perto de mim, faz aumentar a angústia em seu olhar. Ela teme que eu possa desistir.

– Não, eu não quero mais o dinheiro de vocês.

– Como assim você não quer? – indagou o homem – Nós já havíamos combinado tudo... Quer que aumentemos a oferta?

– Esse dinheiro é sujo. Não é certo receber por uma vida...
– Você vai desistir, não vai? – perguntou a mulher, melindrada. As mãos a apertar cada vez mais o braço do marido.
– Não. Eu não vou voltar atrás... Não sei como fazer isso.

Os olhos dela são duas bolas redondas e brilhantes. Parecem bestificados por testemunhar minhas constatações, ao mesmo tempo em que se sentem aliviados por eu ser louca. Um segundo de lucidez e eu estragaria todos os sonhos de maternidade daquela pobre mulher... Sonhos que foram depositados numa realidade que teme a manifestação da salubridade.

Eu devia mesmo me parecer com uma louca desvairada. Mas contraditoriamente, minha loucura se fez necessária para a felicidade daquele casal.

– Se você quiser podemos fazer um depósito – insistiu o homem, certamente convicto de que importâncias monetárias lhe serviriam como uma espécie de garantia; um seguro contra possíveis arrependimentos – Talvez você não esteja à vontade em pegar o dinheiro assim, dessa maneira.

Assim, dessa maneira... Que maneira ele se referia? Escrota? Vulgar? Canalha?

– Se você me oferecer isso mais uma vez, eu pego o garoto e sumo daqui para sempre!

– Desculpa – ele resolve assumir uma postura submissa, chegou até a baixar a cabeça... Mas eu sei que toda essa encenação é só pra me humilhar; pra fazer transparecer o lixo de ser humano que eu sou; que ele jamais seria alguém capaz de fazer o que eu estou fazendo; seu gesto é pra mostrar o quanto ele se considera melhor do que eu – Por favor, me desculpa. Eu só achei que você estivesse desconfort...

– Já terminamos o que viemos fazer aqui! – ignoro seu apelo e ergo a voz, talvez sejam resquícios do orgulho que ainda me resta. Concentro meu foco nos olhos daquela vindoura mãe, para que ela entenda o que está acontecendo.

Corajosamente, ela permanece firme, encarando-me. Parece conseguir ler tudo o que meu silêncio quer lhe dizer. E seus olhos me retornam respostas que me ajudam a concluir com o ato final:

Sei que o que está fazendo não é culpa sua... Pelo menos, não é somente culpa sua. Sei que mulher é sinônimo de dor. Sei que o fardo sempre fica por nossa conta... Deixe-me te ajudar a carregar este fardo. Prometo que darei a ele tudo o que você tentou e não conseguiu, mas sempre o lembrarei de sua enorme coragem”.

O casal foi embora, levando aquela pequena vida no colo. O pai lhe retirou a mochila para aliviar o peso de suas costas, enquanto a mãe o envolvia em seus braços com terna firmeza... Ninguém olhou para trás e isso é um bom final.

Ao meu entendimento, significa que agora eles são uma família que seguirá sempre em frente. Mesmo quando o adiante não lhes parecer tão nítido.

Por que eu sempre me sento aqui neste banco?

Dizem que cada um tem da vida aquilo que merece. Talvez eu não mereça mais do que um banquinho trincado e velho, cuja estrutura desgastada assemelha-se ao meu coração...

Um lugar cimentado, feio e endurecido.

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