sábado, 20 de fevereiro de 2016

CRÔNICA: INEVITÁVEL EVOLUÇÃO

Em meio a uma desordenada multidão de corpos andantes, eu tentava encontrar o portão de embarque do meu voo, quando de repente, sou abordado por uma voz metálica, cujas doses de estáticas se assemelhavam aos brinquedos eletrônicos que me faziam delirar na infância. Bem no meio do salão principal do Aeroporto Santos Dumont, assustei-me perante inusitada recepção, feita por uma máquina ambulante de mais ou menos um metro e vinte de altura. Era sorridente e, para meu completo desespero, totalmente solícita.

Inteiramente intimidado por aquela coisa – que imaginei se tratar de um totem de atendimento que conseguiu escapar da tomada e saiu perambulando pelo salão do aeroporto, como se entidades sobrenaturais o tivessem possuído – cambaleei tentando desviar de seu caminho. E num gesto tipicamente humano, minha covarde massa corpórea fugiu de sua investida, afinal, modernidades tecnológicas frequentemente me assustam..., e sem cessar os passos, virei-me, dando receosa olhadela no objeto inusitado que, embora não viera em meu encalço, continuava a me saudar com aquele sorriso largo em cores, provindo de uma tela onde se lia: “Posso Ajudar?”.

Se no lugar daquela máquina houvesse um ser humano desempenhando sua tarefa de abordagem, amparado por uma carteira de trabalho e benefícios previdenciários, certamente ele já teria ido se queixar junto ao departamento de RH à cerca da forte rejeição que aquele trabalho proporciona. Talvez até fosse submetido a intensas sessões de terapia, no intuito de se livrar dos constantes traumas sofridos na ingrata profissão.

Mas não era uma pessoa... Era um robô! E alguns minutos depois, já sob a improvável segurança dos bancos de espera, no meu portão de embarque, pude conferir com mais atenção qual era a função daquele frigobar sorridente.

Era um simpático robozinho a passear de um lado para o outro, abordando as pessoas e oferecendo sua tela em forma de rosto, onde uma discreta interface exibia uma série de auxílios e, dessa forma, aliviar dos ombros humanos o tedioso fardo de correr pelas necessidades alheias dos muitos passageiros que por ali transitavam.

Cheguei a pensar que não teria sido ruim se ele se encarregasse de levar minhas malas, mas logo suspeitei de que as tarefas que o intrépido androide oferecia eram escassas demais para dar conta da bagagem dos preguiçosos. Limitava-se a consultas em sua alegre tela dos horários dos próximos voos, um mapa instrutivo para localização dos serviços no interior do recinto, informações sobre transportes coletivos, previsão do tempo e esclarecimentos sobre o funcionamento do aeroporto.

No entanto, mesmo carente de sofisticados recursos, aquele fliperama com rodas, passeando no meio do salão, fez com que eu me sentisse inserido numa realidade insólita de ficção científica, bem ao estilo Isaac Asimov.

Se um singelo robozinho com uma tela limitada de expressão, abordando pessoas sem a necessidade da supervisão humana, já me causou estupefação, o que dizer então do fabuloso Eugene? A primeira máquina na história da inteligência artificial a passar no teste de Turing...

O computador batizado de Eugene foi criado pelos programadores Vladimir Veselov, Eugene Demchenko e Sergey Ulasen. O teste de Turing é constituído por um júri preparado para verificar as habilidades da inteligência artificial. Eugene deveria imitar um adolescente com tal perfeição que os juízes não pudessem perceber que estavam falando com uma máquina. E o próspero Eugene conseguiu convencer nada menos que 33% dos jurados, um feito inédito.

O teste de Turing visa estabelecer um critério que determine o que ou quem pode ser considerado um ser pensante. Basicamente este teste considera que a característica distintiva dos seres humanos é a linguagem, e por isso, o teste sempre se baseou em critérios linguísticos.

Eugene foi capaz de enganar um terço dos jurados de Turing. E embora este seja um número considerado insuficiente por alguns pesquisadores, ele nos prova que estamos no inevitável caminho de uma realidade não muito distante. Um futuro no qual algumas vezes o cinema nos fez ter algum vislumbre com lágrimas nos olhos. E embora meu inusitado encontro com aquela geladeira sorridente tivesse sido menos emocionante do que os personagens criados na telona, eu pude ter uma noção da inevitável evolução... Falo de um futuro não muito distante, que foi belamente retratado num filme de 2013, o qual eu assisti recentemente, intitulado “Ela” (Her – de Spike Jonze).

A trama desta fabulosa comédia dramática gira em torno de Theodore, que inusitadamente se apaixona por seu novo sistema operacional de alta tecnologia – talvez uma espécie de versão definitiva de Eugene – um sistema capaz de compreender o universo à sua volta e se comunicar com seu dono, usando todo um arsenal de anseios, desejos, cacoetes e até mesmo a fragilidade sentimental de um verdadeiro humano.

Confesso que conforme o filme avançava, eu também me via igualmente apaixonado pela doce voz que rouba o coração do personagem vivido pelo ator Joaquin Phoenix. Um trabalho que traz à tona, mesmo que de maneira um pouco contraditória, a complexidade na relação entre homem e inteligência artificial.

Certamente as mentes por trás da indústria desenvolvedora de tecnologia inteligente já notaram o quanto irão encher ainda mais os seus cofres, caso coloquem as mãos em tamanho avanço tecnocientífico, como mostrado neste no citado filme. Porém, tal futuro, temivelmente não muito distante, talvez precise ser analisado com um pouco mais de cautela.

Se as consequências dessa realidade vindoura já podem ser sentidas nos dias atuais, o que diremos em algumas décadas, quando de fato tivermos as nossas malas gentilmente carregadas por um simpático androide, que nos recepcionará com um cumprimento metálico e cordialidade fluente?

Se os nossos atuais celulares e smartphones já são sedutores o suficiente para fazer com que os andantes das grandes cidades percam total atenção à urbanização existente ao redor; aparelhinhos que fazem com que nos comportemos feito altistas tecnológicos, que caminham com suas cabeças baixas, fixadas numa tela que cabe na palma da mão, o que dizer do tempo em que poderemos ter diálogos complexos e profundos, com objetos artificiais que imitam o real no seu comportamento, capazes de nos aproximar do tato com um humanismo jamais alcançado em anos de entrosamento com outros seres humanos... Exatamente como nos provoca o filme citado.

O pobre Theodore teve sua carência e solidão amainada por uma placa de circuitos. E além de não o condenar, reitero que também poderia me ver vitimado pelo mesmo mal, frente a tamanha sedução de uma voz que, mesmo oriunda de um sistema operacional, causa encanto que nos leva à cegueira da sanidade... Ou será que o filme nos faz o retrato de um futuro improvável?

A meu ver, tem sido cada vez mais difícil duvidar da evolução tecnológica.

Imaginem os consultórios terapêuticos do futuro, lotados de gente em busca de ajuda para superar aquele relacionamento terminado de forma trágica com um sistema operacional. “Leve-o na loja de informática do Zé, e mande trocar a placa mãe por outra que seja mais próxima do seu temperamento apegado”, dirá o terapeuta que, aliás, será um circunspecto robô, de feições imparciais e usando jaleco branco.

Tomemos outro exemplo cinematográfico que gosto muito de trazer à tona para pensarmos sobre o que estamos fazendo de nós mesmo, ou melhor, o que a tecnologia está fazendo conosco: o filme de 2008 Wall-e (Wall-e – de Andrew Stanton) nos mostra uma sociedade que passou a viver em colônias espaciais por conta da elevada destruição da Terra. Mas o ponto que quero atentar é quanto ao padrão desta sociedade; pessoas obesas que se locomovem por meio de cadeiras flutuantes, onde uma grande tela fixada bem próxima à face humana atrai 100% da atenção do cadeirante. Neste mundo imaginário da ficção – ou seria visionário? – O ser humano se tornou definitivamente um escravo tecnológico, incapaz de se relacionar com coisas triviais, como vislumbrar os detalhes do lugar em que vive (isso nos é mostrado numa rápida cena em que um humano cai de sua cadeira voadora e, pela primeira vez, se vê encantado com a grandeza ao redor, a qual ele jamais havia reparado).

Notou certa familiaridade com nosso mundo atual, caro leitor? Se sua resposta for não, basta olhar com mais atenção para os ambientes sociais: transporte coletivo, bares noturnos, escolas, e certamente você irá se deparar com uma sociedade literalmente adormecida por uma telinha que cabe na palma da mão. No entanto, se você é incapaz de perceber mesmo isso, talvez seja tarde e você já esteja devidamente inserido nesta sociedade adoecida, que bestialmente fora dominada pela tecnologia.

Outro dia, perguntei a uma moça que subia as escadas do prédio onde trabalho, como ela conseguia subir degraus e digitar no celular ao mesmo tempo. Por breves dois segundos ela desviou a atenção da tela para me dizer que já estava acostumada.

Pois é... Estamos nos acostumando à domesticação tecnológica; a vivermos feito escravos pós-modernos. E o que é pior: a obviedade deste nosso umbroso presente parece ter desabado sobre nossas cabeças.

Talvez o grande problema não seja a chegada dessa tecnologia assustadoramente sedutora, mas sim, a nossa própria alienação. Porque não sei ao certo se sou antiquado demais para este mundo moderno, ou se tem sido cada vez mais comum me deparar com mesas de bares lotadas de pessoas interagindo umas com as outras pelo celular; seres reais que estão perdendo o interesse no mundo físico que lhes rodeiam, para continuar vivendo dentro de uma rede social editável, onde podemos nos vestir de deuses majestosos, felizes e belos, camuflando assim a nossa realidade ordinária e menos atraente.

Estamos enfim, diante de uma assustadora evolução? Pode ser que sim, mas talvez, ela não seja tão desastrosa como nos mostra o imaginário cinematográfico. Contudo, o grande aprendizado que infelizmente ainda nos escapa, é a eficiência de dominarmos as nossas admiráveis máquinas, antes que sejamos dominados por elas..., mas será que ainda há tempo?

Parece que nosso atual encantamento diante dos recursos tecnológicos tem deixado bem claro que já é tarde demais para a humanidade, emburrecida por sua própria criação..., mas agora chega dessa conversa de evolução tecnológica, porque já passou da hora de eu dar uma checada em meus estimulantes e irresistíveis perfis online.

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