Em meio a uma desordenada multidão de corpos andantes, eu tentava
encontrar o portão de embarque do meu voo, quando de repente, sou abordado por
uma voz metálica, cujas doses de estáticas se assemelhavam a brinquedos
eletrônicos que me faziam delirar na infância. Bem no meio do salão principal
do Aeroporto Santos Dumont, eu me
assustei perante inusitada recepção, feita por uma máquina ambulante de mais ou
menos um metro e meio de altura. Era sorridente e, para meu completo desespero,
totalmente solícita.
Inteiramente intimidado por aquela coisa – que imaginei se
tratar de um totem de atendimento que conseguiu escapar de sua tomada e saiu
perambulando pelo salão do aeroporto, como se entidades sobrenaturais o
tivessem possuído – eu cambaleei tentando desviar de seu caminho. E num gesto
tipicamente humano, minha covarde massa corpórea conseguiu fugir de sua
investida, afinal, modernidades tecnológicas frequentemente me assustam... Sem
cessar os passos, eu olhei para trás e dei uma receosa olhadela para o objeto solícito,
que embora não viera em meu encalço, continuava a me saudar com seu sorriso
largo em cores, provindo de uma tela onde se lia: “Posso Ajudar?”.
Se no lugar daquela máquina houvesse um ser humano
desempenhando sua tarefa de abordagem, amparado por uma carteira de trabalho e
benefícios previdenciários, certamente ele já teria ido se queixar junto ao
departamento de RH à cerca da forte rejeição que seu trabalho lhe proporciona.
Talvez até fosse submetido a intensas sessões de terapia para conseguir se
livrar dos constantes traumas sofridos em sua ingrata profissão.
Mas não era uma pessoa... Era um robô! E alguns minutos
depois, já sob a improvável segurança dos bancos de espera no meu portão de
embarque, eu pude conferir com mais atenção o que, de fato, fazia aquele
frigobar sorridente.
Era um simpático robozinho a passear de um lado para o outro,
abordando as pessoas e oferecendo sua tela em forma de rosto, onde um discreto menu exibia uma série de auxílios aos
passageiros, e dessa forma, aliviar dos ombros humanos o tedioso fardo de
correr pelas necessidades alheias dos muitos passageiros que por ali
transitavam.
Cheguei a pensar que não teria sido ruim se ele se
encarregasse de levar minhas malas, mas logo suspeitei de que as tarefas que o intrépido
androide oferecia eram escassas demais para dar conta da bagagem dos
preguiçosos. Limitava-se a consultas em sua alegre tela facial dos horários dos
próximos voos, um mapa instrutivo para localização dos serviços no interior do
recinto, informações sobre transportes coletivos, previsão do tempo e
esclarecimentos sobre o funcionamento do aeroporto.
No entanto, mesmo carente de sofisticados recursos, aquele fliperama
com rodas, passeando no meio do salão do aeroporto, fez com que eu me sentisse
inserido numa realidade insólita de ficção científica, bem ao estilo Isaac Asimov.
Se um singelo robozinho que carrega uma tela quase
inexpressiva, abordando pessoas sem a necessidade de uma supervisão humana, me
causou estupefação, o que dizer então do fabuloso Eugene? A primeira máquina na história da inteligência artificial a
passar no teste de Turing...
O computador batizado de Eugene
foi criado pelos programadores Vladimir
Veselov, Eugene Demchenko e Sergey
Ulasen. O teste de Turing é constituído por um júri preparado para testar
as habilidades da inteligência artificial. Eugene
deveria imitar um adolescente com tal perfeição que os juízes não pudessem
perceber que estavam falando com uma máquina. E o próspero Eugene conseguiu convencer nada menos que 33% dos jurados.
O teste de Turing visa estabelecer um critério que determine
o que ou quem pode ser considerado um ser pensante. Basicamente este teste
considerava que a característica distintiva dos seres humanos é a linguagem, e
por isso, o teste sempre se baseou em critérios linguísticos.
Eugene foi capaz de enganar um terço dos
jurados de Turing. E embora este seja um número considerado insuficiente por
alguns pesquisadores, este nos prova que estamos no inevitável caminho de uma
realidade não muito distante. Um futuro no qual algumas vezes o cinema nos faz
ter algum vislumbre, com lágrimas nos olhos. E embora meu inusitado encontro com
aquela geladeira sorridente tivesse sido menos emocionante do que alguns
personagens da telona, eu pude ter um vislumbre da inevitável evolução... Falo
de um futuro não muito distante, que foi belamente retratado num filme de 2013,
o qual eu assisti recentemente, intitulado “Ela” (Her – de Spike Jonze).
A trama desta fabulosa comédia dramática gira em torno de Theodore, que inusitadamente acaba se
apaixonando por seu novo sistema operacional de alta tecnologia – talvez uma espécie
de versão definitiva de Eugene – Um
sistema capaz de compreender o universo à sua volta e se comunicar com seu
dono, usando todo um arsenal de anseios, desejos, cacoetes e até mesmo a
fragilidade sentimental de um verdadeiro humano.
Confesso que conforme o filme avançava, eu também me vi
algumas vezes apaixonado pela doce voz que rouba o coração do personagem vivido
pelo ator Joaquin Phoenix. Um trabalho
que trás a tona, mesmo que de maneira um pouco contraditória, a complexidade na
relação entre homem e inteligência artificial.
Certamente as mentes por trás da indústria desenvolvedora de tecnologia
inteligente já notaram o quanto irão encher ainda mais os seus cofres, caso
coloquem suas mãos em tamanho avanço tecnocientífico, como mostrado neste belo
filme. Porém, este futuro, temivelmente não muito distante, talvez precise ser analisado
com um pouco mais de cautela.
Se as consequências dessa realidade vindoura já podem ser sentidas
nos dias atuais, o que dizer em algumas décadas, quando de fato, eu tiver as
minhas malas gentilmente carregadas por um simpático androide, que me
recepcionará com um cumprimento de mãos caloroso e cordialidade fluente?
Se os nossos atuais celulares e smartphones já são sedutores
o suficiente para fazer com que os andantes das grandes cidades percam total
atenção à urbanização existente ao seu redor; aparelhinhos que fazem com que
nos comportemos feito altistas tecnológicos que caminham com suas cabeças
baixas, fixadas numa telinha que cabe na palma da mão, o que dizer do tempo em
que poderemos ter diálogos complexos e profundos, com objetos artificiais que
imitam o real no seu comportamento, capazes de nos aproximar do tato com um
humanismo jamais alcançado em anos de entrosamento com outros seres humanos?
Exatamente como nos provoca o filme citado acima.
O pobre Theodore
teve sua carência e solidão amainada por uma placa de circuitos. E além de não
o condenar, eu sou capaz de confessar que também poderia me ver vitimado pelo
mesmo mal, frente à tamanha sedução de uma voz que, mesmo oriunda de um sistema
operacional, seu encanto nos leva à cegueira da sanidade... Ou será que o filme
nos faz o retrato de um futuro improvável?
Á meu ver, tem sido cada vez mais difícil duvidar da evolução
tecnológica.
Imaginem os consultórios terapêuticos do futuro, lotados de
gente em busca de ajuda para superar aquele relacionamento que terminou de
forma trágica com um sistema operacional. “Leve-o
na loja de informática do Zé, e mande trocar a placa mãe por outra que seja
mais próxima do seu temperamento apegado”, dirá o terapeuta, que, aliás,
será um circunspecto robô, de feições imparciais e usando jaleco branco.
Tomemos outro exemplo cinematográfico que gosto muito de
trazer à tona para pensarmos sobre o que estamos fazendo de nós mesmo, ou
melhor, o que a tecnologia está fazendo conosco: o filme de 2008 Wall-e (Wall-e – de Andrew Stanton) nos mostra
uma sociedade que passou a viver em colônias espaciais por conta da elevada
destruição da Terra. Mas o ponto que quero atentar é quanto ao padrão desta
sociedade; pessoas obesas que se locomovem por meio de cadeiras flutuantes,
onde uma grande tela fixada bem próxima à face humana atrai 100% da atenção do
cadeirante. Neste mundo imaginário da ficção – ou seria visionário? – O ser
humano se tornou definitivamente um escravo tecnológico, incapaz de se relacionar
com coisas triviais, como vislumbrar os detalhes do lugar em que vive (isso nos
é mostrado numa rápida cena em que um humano cai de sua cadeira voadora e, pela
primeira vez, se vê encantado com a grandeza ao seu redor, a qual ele jamais
havia reparado).
Notou certa familiaridade com nosso mundo atual, caro leitor?
Se sua resposta for não, basta olhar com mais atenção para os ambientes
sociais: transporte coletivo, bares noturnos, escolas, e certamente você irá se
deparar com uma sociedade literalmente adormecida por uma telinha que cabe na
palma da mão. No entanto, se você é incapaz de notar isso, talvez seja tarde e
você já esteja devidamente inserido nesta sociedade altista, que bestialmente
fora dominada pela tecnologia.
Outro dia, eu perguntei a uma moça que subia as escadas do
prédio onde trabalho, como ela conseguia subir degraus e digitar no celular ao
mesmo tempo. Por breves dois segundos, ela desviou a atenção da tela para me
dizer que já estava acostumada.
Pois é... Estamos nos acostumando à domesticação social; a
vivermos feito escravos pós-modernos. E o que é pior: a obviedade deste nosso
umbroso presente parece ter desabado sobre nossas cabeças.
Talvez o grande problema não seja a chegada dessa tecnologia
assustadoramente sedutora, mas sim, a nossa própria alienação. Porque não sei
ao certo se sou antiquado demais para este mundo moderno, ou se tem sido cada
vez mais comum me deparar com mesas de bar lotadas de pessoas interagindo umas
com as outras pelo celular; seres reais que estão perdendo o interesse no mundo
físico que lhes rodeiam, para continuar vivendo dentro de uma rede social
editável, onde podemos nos vestir de deuses majestosos, felizes e belos,
camuflando assim a nossa realidade ordinária e menos atraente.
Estamos enfim, diante de uma assustadora evolução? Pode ser
que sim, mas talvez, ela não seja tão desastrosa como nos mostra o imaginário
cinematográfico. Contudo, o grande aprendizado que infelizmente ainda nos
escapa, é a eficiência de dominarmos as nossas admiráveis máquinas, antes que
sejamos dominados por elas... Mas será que ainda há tempo?
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