sábado, 30 de dezembro de 2017

CONTO - FOME QUE NÃO SACIA


A fome é condição que movimenta até o mais preguiçoso ser;

A saciedade freia, limita, entorpece;

A fome não te faz sossegar. É forno cheio de calor ansiando por mais lenha;

A saciedade é o tronco ainda estagnado e frio;

A fome é arroz com feijão fresquinho;

A saciedade é a sobremesa que engorda;

A fome se encanta com o mais corriqueiro;

A saciedade precisa do extraordinário para lhe arrancar um suspiro;

A fome é a vontade de consumir o mundo;

A saciedade é mundo consumido;

A fome é espaço vazio para que algo aconteça;

A saciedade é a completude tosca e imutável;

A fome vive desperta porque quer descobrir;

A saciedade dorme no tempo;

A fome é como as passadas velozes à procura de algo;

A saciedade já não procura por nada, pois acha que tem tudo;

A fome te faz mover-se rumo ao desconhecido;

A saciedade arrasta-se emburrada através de mundos sempre iguais;

A fome sabe que não precisa comer até se saciar por completo;

A saciedade é desapegada e preguiçosa, pois sabe que nunca tem fome;

A fome trás vida;

A saciedade mata...

Por essas e outras é que eu quero é a fome! Quero estar faminto de conhecimento, faminto de arte, faminto de frases, faminto de poesia! E você, também tem fome ou já se encontra saciado?

terça-feira, 26 de dezembro de 2017

RESENHA DE LIVRO – ONZE


Enquanto permaneço sentado em frente ao computador, pensando em como iniciar esta resenha, vem-me a noção de que estou agora mesmo fazendo parte de um ciclo interminável de causa e efeito. E mesmo sozinho em casa, desempenhando função aparentemente inócua, os efeitos de qualquer frivolidade parecem inevitáveis. Sim, pois a inação também é uma escolha que surte em consequências. E toda consequências também é causa que gera mais efeito...

Afinal, enquanto me tranco em casa e me escondo do resto do mundo, situações seguirão determinado curso que poderiam ter sido diferente se eu fosse um sujeito menos fechado dentro de meu próprio universo.

Outro exemplo que me ocorre foi um acidente que quase me aconteceu. Eu estava dirigindo quando me lembrei de que estava sem o cinto de segurança. Parei no acostamento para afivelar e segui viagem. Minutos depois um carro enlouquecido cruzou em minha frente e tive que frear bruscamente. Por uma questão de centímetros a colisão não aconteceu, algo que talvez tivesse sido inevitável, caso eu não tivesse parado por alguns segundos para colocar o cinto.

As razões pelas quais fiz esta inusitada introdução, se devem ao fato de que estes três parágrafos iniciais são, basicamente, a essência por trás deste ótimo trabalho intitulado ONZE.

Como se fossem peças de dominó que despencam e atingem umas às outras, ações e inações das pessoas geram efeitos que se tornam mais ações, e assim sucessivamente.

O autor Mark Watson fez um ótimo trabalho no enredo, amarrando situações de seus personagens para nos mostrar o lado delicado da existência humana, onde um ato insignificante esbarra noutro até que uma enorme redoma de consequências inevitáveis transforma o mundo; é o bater de asa de uma borboleta que culmina num tornado do outro lado do planeta.

Exagero à parte, a história é bem contata. Xavier Ireland é um locutor de rádio que apresenta um programa que ajuda a aliviar a solidão durante as madrugadas da população londrina. E como qualquer ser humano que viveu traumas no passado, o personagem é o resultado existencial da tentativa de começar de novo. E embora as dores continuem a espreitar em seu ser, Xavier tentar levar sua existência de modo alheio, pois a experiência lhe ensinou que é mais seguro manter distância de outros indivíduos.

Em determinado momento seu passado nos é revelado, e junto à consternação inevitável, o leitor passa a entender sua natureza indiferente. Enquanto isso, a avalanche de causa e efeito segue seu rumo irrefreável, metamorfoseando algumas vidas e anulando outras.

Talvez a resenha esteja soando um pouco abstrata, mas acredito que esta belíssima obra deva ser degustada exatamente desse modo, pois há vários personagens entremeados sem que quase nada se conte sobre eles; como se pudéssemos ver apenas a ponta do iceberg. E desse ponto de vista ONZE funciona como leitura intensa e refinada; um romance sobre seres humanos seguindo com suas tomadas de decisões impensadas, dentro de um ciclo interminável e sutil de prejuízos que serão causas de outros mais...

É um livro simplesmente fascinante!

quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

CRÔNICA - OPORTUNA FIDELIDADE


Minha constituição de fidelidade se sustenta a partir de bases moralistas. Pressupõe uma existência cuja exclusividade se atrela à ideia de irredutibilidade e inflexibilidade, dentro de concepções por mim estabelecidas, o que me torna um truculento fundamentalista, talvez pelo fato de que o fiel seja o maior dos conservadores. Porém, costumo me vestir de uma fidelidade a qual seu manifesto precisa ser enaltecido, embora eu saiba que isso seja inútil... Mesmo assim, eu a exerço sob falácias na intenção mordaz de receber legitimidade, pois é preciso que este ato seja vangloriado, como se fosse um recipiente furado que carece de ser reenchido a todo instante.

Pensando em circunstâncias coletivas, creio que tendemos a seguir modelos sociais institucionalizados e, portanto, a padronização existencial tende a ser, em grande medida, igual ou parecida. E a vontade de correr na contramão da maioria é o que desperta minhas ambições de lealdade. Em outras palavras, eu não sou fiel por respeito genuíno à instituição que estabeleci relações, mas faço por vaidade de poder me afirmar como ser distinto; para exaltar minha exclusividade regrada e cheia de autocontrole. Se isso soa confessional ou não, o fato é que seria muito provável que se vivêssemos num mundo de completo comprometimento ético, eu talvez me tornasse um transgressor, puramente para me ver desenquadrado do senso comum. Como se minhas escolhas não pudessem ser convenientes ou mesmo combatidas.

Não tenho meios de garantir fidelidade eterna a nada nem a ninguém. Mas enquanto eu identificar neste ato elementos legitimadores do meu árduo autocontrole, tudo farei para fundamentar a integridade de minha ação, através da promoção obstinada dos valores que foram convencionados a outrem. No entanto, tais valores se mostram nocivos a partir do instante em que oprimo meu ser em detrimento de ajustes ilegítimos, pois é impossível sanar desejos por meio da intenção deliberada... Este ato, quando bem executado, apenas os adormecem temporariamente.

Anseios só podem ser eliminados quando da obtenção de seu objeto; quando alcançamos o escopo desejante. E o fiel só poderá ser considerado como tal, se porventura se encontrar diante de uma situação a qual ele tenha 100% de certeza de que não está sendo vigiado. Caso contrário, seu comportamento não será de fidelidade, mas sim, de medo de ser flagrado.

Desejos são inevitáveis, porém, passíveis de ser controlados dependendo de sua intensidade. E acredito que uma mente lúcida e conhecedora da própria fraqueza é uma mente menos suscetível ao prejuízo resultante de ações impetuosas. Só que esta conclusão nos remete a duas problemáticas: o controle dos próprios impulsos; e a conclusão do verdadeiro ato fiel.

Oscar Wilde nos diria que se conseguirmos resistir a uma tentação é porque ela não foi forte o suficiente. Este pensamento elucubra o quanto de nossa incapacidade frente aos impulsos do desejo. Ser fiel aos próprios princípios pressupõe a perda de outras oportunidades que são incompatíveis com a nossa conduta.

O mundo contemporâneo transformou toda a forma de relação em objeto mercadológico. Isso nos deixa com a sensação de que ao levarmos nossa constância ao pé da letra estamos abrindo mão de infinitas possibilidades. Desse modo, ser fiel a algo nos causa desconforto; uma sensação de redução existencial. Afinal, por que manter lealdade em X se há todo um alfabeto que parece esperar por nossa predileção. A convivência num meio social escasso nos atrai para uma ética de conveniência, em que tudo se pode e tudo se justifica. Então a adaptabilidade do ser depende do mundo em que nos será apresentado daqui a pouco.

Muitas foram às vezes em que deliberei sobre como controlar os impulsos, e embora eu mantenha certos princípios intactos, seja por vaidade ou não, creio ainda não ter encontrado nenhuma solução definitiva para este problema.

Quanto a definição do ato de fidelidade, este também é assunto espinhoso, porque envolve diversos elementos como conceitos, opiniões, predileções e a própria ética. Com tantas particularidades mescladas, penso que ser fiel pressupõe o ininterrupto ato de zelar pelas formas de convivência estabelecidas, embora nenhuma imutável. Só se pode ser fiel a algo a partir de juízos instituídos entre as parte envolvidas. E a quebra desses acordos é o que chamamos de infidelidade.

Mas uma fidelidade só pode de fato se tornar um hábito quando se a leva como um comportamento fechado, cego... É o moralismo que menciono no início desta reflexão. Partindo desse ponto, podemos afirmar que seremos fieis aos nossos conceitos, não importando que tipo de realidade nós estejamos inseridos. Contudo, mostrar-se fiel a uma escolha, quando esta é a decisão moralmente aceita ou comungada pelo urro da sociedade dissimulada em que estamos inseridos, não passa de puro decoro; a predileção ajustada ao mesmo sentido do interesse comum.

O grande desafio de ser fiel seria bradar este valor quando tudo parecesse nebuloso ou se estivéssemos indo contra a maioria do senso comum. Se nossas inclinações poligâmicas fossem vistas com benevolência, então a fidelidade monogâmica tornar-se-ia um ato verdadeiramente corajoso.

Alguma vez você já parou pra pensar no tipo de informação que fornece quando lhe é perguntado quem é você?

Eu tenho certeza de que neste instante só o que preenche sua mente são seus valores, deixando suas imperfeiçoes a cargo da capacidade do outro de identificá-las ou não. E como uma ética de relações está sendo formada naquele exato instante em que se está diante de uma nova relação, deve-se valer muito expor para o outro somente os vínculos em que você foi capaz de ser fiel ao longo de sua existência, pois são estes que irão lhe conferir o arsenal capaz de lhe proporcionar orgulho; que atestarão o tipo de indivíduo que você é. Portanto, se fidelidade fosse conceito mal visto por nossas relações atuais, certamente inundaríamos os ouvidos de nossos postulantes com intermináveis argumentos em prol da deslealdade.

Mas caso você já tenha sido dominado pelo mundo materialista em toda sua gama de sedução, é muito possível que só o que tenha a dizer sobre si mesmo sejam suas conquistas materiais; sua vida explicada por meio de “coisas” que conseguiu acumular, e que lhe conferirão a certeza de que você é o produto adquirido; desejante voraz identificado por objetos sem alma... Fiel aos símbolos de consagração social ou simplesmente pela própria arrogância.