quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

CENTENÁRIO DE CLARICE LISPECTOR


Ontem precisei resolver alguns assuntos no centro da cidade, e como sempre faço, levo comigo um livro para me ajudar a suportar filas e salas de espera. As pessoas em geral se entretêm com seus modernos smartphones, mas eu gosto mesmo é de aproveitar estes espaços de tempo para ler.

Tratava-se de nova incursão, porque anteontem havia terminado uma leitura fenomenal (cuja resenha estará aqui em breve), então trazia comigo um livro fresquinho e inédito para ler. Contudo, os afazeres fluíram rápidos e não tive tempo de conferir nem a contracapa. Quando cheguei em casa, no fim da tarde, foi que dei falta do meu companheiro. Ato raro: havia perdido meu livro em algum dos muitos lugares que estive ao longo do dia. Deixei-o em algum canto e até agora não sei onde. Espero que tenha sido encontrado por alguém que goste de ler ou alguém que, através dessa descoberta, adquira o gosto pela leitura.

Como eu estava pra começar uma nova leitura e sabendo que hoje, dez de dezembro de 2020, é o dia do centenário de Clarice Lispector, resolvi desfrutar esta data especial “perto” da rainha, em vez de pegar outro livro não lido na estante. Desse modo, trouxe comigo obras da autora para fazer releituras e, por conta delas, despertou-me a vontade de prestar-lhe esta singela homenagem.

E pensei comigo: se fosse anteontem e tivesse perdido a belíssima obra da escritora portuguesa Dulce Maria Cardoso que eu estava terminando de ler, eu teria surtado! Sairia feito um maluco refazendo todos os percursos em que estive até encontrar o livro (com enorme esperança porque perder livros nesse país não costuma ser um problema insolúvel, afinal, ninguém se interessa por um livro esquecido). Do mesmo modo, caso o infortúnio tivesse ocorrido hoje e eu perdesse algum dos meus livros de Clarice, o desespero seria igualmente inevitável. Concluí que foi sorte ter perdido aquele livro ontem, obra que talvez fosse muito boa de ler, mas que desconhecia e acho que é melhor permanecer assim, nesta zona consoladora do desconhecido. Porque perder um livro inédito é infinitamente menos terrível do que perder um livro que amo... E eu amo toda a obra de Clarice Lispector.

Bom, comecei meu dia de Clarice com uma releitura da entrevista que ela concedeu para Afonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti. O mais notório nestes bate-papos é o quanto Clarice era uma pessoa espontânea; dizia o que pensava, destilava constatações inusitadas, não escondia sua condição emocional para parecer correta. O tipo de ser humano que nunca se sabe o que acontecerá durante uma proza, e é precisamente este ineditismo, aparentemente assustador, que nos possibilita resvalar a beleza de sua alma.

Como quando ela conta que certa feita recebeu uma carta da universidade de Boston pedindo detalhes de sua vida. Ela não respondeu e alegou que não o fez por preguiça de escrever cartas. Mas após mostrar o pedido formal da universidade para um amigo, este se mostrou entusiasmado, então ela disse: “Responde a carta por mim. Diz o que você quiser e fala que estou de acordo”. Pois num belo dia, Clarice recebe em sua casa um diploma de Boston. Havia sido considerada como fazendo parte da biblioteca da universidade... Ela confessou que nem sabe onde está esse negócio.

Outra narração divertida foi quando ela conta que uma esperança (aquele grilo verdinho) entrou pela janela de sua casa e pousou na parede. Clarice teria se livrado do bicho, mas o filho a interrompeu, dizendo que aquela criaturinha trazia esperança consigo e era preciso deixa-lo à vontade. Contudo, o grilo acabou preso por uma teia de aranha e eu não me lembro se morreu ou se escapou e foi embora. O fato é que diante do ocorrido, Clarice chamou a empregada e disse categórica: “você nunca mais atrapalhe o curso da esperança dentro dessa casa, entendeu?”. Fico a imaginar a cara da empregada, sem entender o que ela quis dizer com aquilo, afinal, se haviam teias espalhadas pelas paredes, certamente Clarice deduziu que a culpa pelos infortúnios da esperança, era da empregada que não estava fazendo seu serviço direito. Mas o sermão da patroa deve ter soado filosófico demais para ser entendido.

Detalhe marcante na obra de Clarice Lispector é a forte ligação que ela continua mantendo com nós, leitores, algo quase metafísico. Sua influência em nossa vida é muito forte, como se a leitura dos seus textos transformasse nossa consciência em definitivo, sem retorno ao que era. O mais recente biografo dela, Benjamin Moser, alertou: o conteúdo da obra de Clarice Lispector é uma espécie de bruxaria.

Mas talvez esse encantamento progressivo seja mais bem explicado pela própria rainha, que em frase simples, revela a genialidade por trás da criação de sua literatura:

“Não se faz uma frase. A frase nasce...”.

FELIZ ANIVERSÁRIO, QUERIDA CLARICE!!

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