Tratava-se de nova incursão,
porque anteontem havia terminado uma leitura fenomenal (cuja resenha estará
aqui em breve), então trazia comigo um livro fresquinho e inédito para ler. Contudo,
os afazeres fluíram rápidos e não tive tempo de conferir nem a contracapa.
Quando cheguei em casa, no fim da tarde, foi que dei falta do meu companheiro.
Ato raro: havia perdido meu livro em algum dos muitos lugares que estive ao
longo do dia. Deixei-o em algum canto e até agora não sei onde. Espero que
tenha sido encontrado por alguém que goste de ler ou alguém que, através dessa
descoberta, adquira o gosto pela leitura.
Como eu estava pra começar
uma nova leitura e sabendo que hoje, dez de dezembro de 2020, é o dia do
centenário de Clarice Lispector, resolvi desfrutar esta data especial “perto”
da rainha, em vez de pegar outro livro não lido na estante. Desse modo, trouxe
comigo obras da autora para fazer releituras e, por conta delas, despertou-me a
vontade de prestar-lhe esta singela homenagem.
E pensei comigo: se fosse
anteontem e tivesse perdido a belíssima obra da escritora portuguesa Dulce
Maria Cardoso que eu estava terminando de ler, eu teria surtado! Sairia feito
um maluco refazendo todos os percursos em que estive até encontrar o livro (com
enorme esperança porque perder livros nesse país não costuma ser um problema
insolúvel, afinal, ninguém se interessa por um livro esquecido). Do mesmo modo,
caso o infortúnio tivesse ocorrido hoje e eu perdesse algum dos meus livros de
Clarice, o desespero seria igualmente inevitável. Concluí que foi sorte ter
perdido aquele livro ontem, obra que talvez fosse muito boa de ler, mas que desconhecia
e acho que é melhor permanecer assim, nesta zona consoladora do desconhecido. Porque
perder um livro inédito é infinitamente menos terrível do que perder um livro que
amo... E eu amo toda a obra de Clarice Lispector.
Bom, comecei meu dia de
Clarice com uma releitura da entrevista que ela concedeu para Afonso Romano de
Sant’Anna e Marina Colasanti. O mais notório nestes bate-papos é o quanto Clarice
era uma pessoa espontânea; dizia o que pensava, destilava constatações
inusitadas, não escondia sua condição emocional para parecer correta. O tipo de
ser humano que nunca se sabe o que acontecerá durante uma proza, e é
precisamente este ineditismo, aparentemente assustador, que nos possibilita
resvalar a beleza de sua alma.
Como quando ela conta que
certa feita recebeu uma carta da universidade de Boston pedindo detalhes de sua
vida. Ela não respondeu e alegou que não o fez por preguiça de escrever cartas.
Mas após mostrar o pedido formal da universidade para um amigo, este se mostrou
entusiasmado, então ela disse: “Responde
a carta por mim. Diz o que você quiser e fala que estou de acordo”. Pois num
belo dia, Clarice recebe em sua casa um diploma de Boston. Havia sido
considerada como fazendo parte da biblioteca da universidade... Ela confessou
que nem sabe onde está esse negócio.
Outra narração divertida foi
quando ela conta que uma esperança (aquele grilo verdinho) entrou pela janela de
sua casa e pousou na parede. Clarice teria se livrado do bicho, mas o filho a
interrompeu, dizendo que aquela criaturinha trazia esperança consigo e era
preciso deixa-lo à vontade. Contudo, o grilo acabou preso por uma teia de
aranha e eu não me lembro se morreu ou se escapou e foi embora. O fato é que
diante do ocorrido, Clarice chamou a empregada e disse categórica: “você nunca mais atrapalhe o curso da
esperança dentro dessa casa, entendeu?”. Fico a imaginar a cara da
empregada, sem entender o que ela quis dizer com aquilo, afinal, se haviam
teias espalhadas pelas paredes, certamente Clarice deduziu que a culpa pelos
infortúnios da esperança, era da empregada que não estava fazendo seu serviço
direito. Mas o sermão da patroa deve ter soado filosófico demais para ser
entendido.
Detalhe marcante na obra de
Clarice Lispector é a forte ligação que ela continua mantendo com nós,
leitores, algo quase metafísico. Sua influência em nossa vida é muito forte,
como se a leitura dos seus textos transformasse nossa consciência em definitivo,
sem retorno ao que era. O mais recente biografo dela, Benjamin Moser, alertou: o
conteúdo da obra de Clarice Lispector é uma espécie de bruxaria.
Mas talvez esse encantamento
progressivo seja mais bem explicado pela própria rainha, que em frase simples,
revela a genialidade por trás da criação de sua literatura:
“Não se faz uma frase. A
frase nasce...”.
FELIZ ANIVERSÁRIO, QUERIDA CLARICE!!
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