domingo, 29 de maio de 2022

CONTO - A ÚLTIMA BATALHA


“A canção do aço eleva-se em conformidade com o vigor dos metais em choque..., no derradeiro instante da luta, a espada de Imann destilava notas ininterruptas, como quem acredita somente na linguagem do conflito...”

“E embora haja o instante de cessar, o orgulho sempre será um maestro mais atento do que a própria morte...”.


Vilarejo de Hittin, século doze.

Um par de olhos se abriu no inferno. Enfim, um relapso de vida, ou quase isso, porque em lugares os quais se parecem com necrópoles a céu aberto, a desarmonia faz o ato parecer efêmero.

Imann estava desnorteado, exposto, deitado sobre o lençol cadavérico, olhando para os corvos, que voavam em círculos no firmamento. Cogitou as possibilidades de sua situação, talvez porque só restasse isso a fazer, levando-se em conta o corpo exaurido. Havia dores em lugares específicos, não sabia identificar com exatidão..., mas o ódio, elemento central de sua trajetória como guerreiro, este havia desaparecido. Ele percebera a mente infestar-se de memórias, carregar-se de lembranças..., não sabia o que era essa sobriedade excêntrica.

As lembranças eram como intrusos em sua mente, o conduziam à força até certos instantes que passaram despercebidos por Imann, como se fossem os caprichos de um cenário banal.

Diante dos olhos, transpassando as aves negras no céu, a infância..., viu o quintal onde brincava com o cavalo do avô. A crina eriçada, o cheiro de suor e pelo selvagem, o primeiro tombo...

Então as memórias deram um salto e ele viu o início da fase adulta, quando havia feito um juramento junto aos templários. Imann pôde novamente apreciar o sabor da integração junto à ordem, e então, a adrenalina de pisar pela primeira vez no campo de batalha.

Em seguida, sua viagem nostálgica levou-o de encontro ao amargo gosto da traição, quando líderes religiosos nos quais ele havia jurado proteger com sua espada, com a vida se assim fosse, voltaram-se contra Imann e os demais cavaleiros...

Memórias..., memórias.

O bravo guerreiro, quis dar um basta na projeção mental, e com dificuldade se sentou. Meio corpo esticado ao solo não combinava com sua trajetória gloriosa. E nesse momento, ele contemplou o inferno pela primeira vez. Era uma infinita extensão de morte por todos os lados..., até onde a visão alcançava. Corpos de homens mutilados de toda forma imaginável, por variados instrumentos cortantes, corpos queimados, corpos atravessados por flechas que haviam salpicado o céu. Uma bandeira da ordem dos templários estava atirada na lama, manchada com o sangue daqueles que ousaram protegê-la.

Meio corpo já era mais do que os demais no horizonte... Imann pensou ser o único remanescente, mas a constatação não o fez se sentir melhor, pois seus camaradas também eram parte do carpete funesto. Ele reconheceu cada rosto sem vida de seus companheiros, cujas partes eram disputadas por animais carniceiros. 

O guerreiro pensou na possibilidade de ter dado a ordem para que fossem de encontro a inevitável morte, talvez ele tivesse hesitado e, por conta disso, ainda respirava... Contudo, a visão da morte daqueles que ele próprio admirou em silêncio por toda a vida, fora demais para sua alma. Não era da natureza de Imann abster-se da batalha, geralmente ele tomava a dianteira e era seguido pelos demais. 

O guerreiro não conseguia ordenar os pensamentos, não conseguia se expressar..., beligerante mudo! Não insistiu, porque o velho ódio, que sempre o impulsionava, havia lhe deixado, assim como seus companheiros. Havia cortes e dilacerações, e a dor o levava de volta aos pensamentos. 

Não era bom em ruminar. Tinha maior proximidade com ações;

O esforço fora imenso, até que Imann ficasse de pé;

Agora poderia vislumbrar melhor o oceano de corpos;

Os corvos e chacais aproveitavam o infinito banquete;

Pais, filhos, maridos, amigos, irmãos, vizinhos, todos tombados; 

Há poucos metros de onde Imann estava, ele avistou sua espada; a mais fiel companheira. Instrumento estático, abandonado, longe dos punhos ágeis de seu mestre, que quando juntos, formavam uma unidade perfeita de matar. 

A visão do objeto o motivou. Passos cambaleantes com o propósito de socorrer aquilo que considerava sua infalível protetora. Porém, fora interrompido por uma situação ainda mais urgente, a qual Imann não poderia passar despercebido: 

Ele reconheceu o corpo de Drax, o melhor e mais antigo amigo. Estava atirado sobre outro corpo, e uma enorme lança atravessava ambos os homens. Sobre eles havia um larápio que tentava retirar um amuleto do pescoço de Drax. O amuleto que fora presente de Imann para o amigo. 

Finalmente houve um familiar sinal de fúria, enrijecendo os músculos do guerreiro. Ele partiu apressado em direção do ocorrido, intencionado a esgoelar o vagabundo larápio. 

Pensava estar prestes a praticar o elemento surpresa, uma vez que o gatuno não havia percebido sua aproximação. Suas duas mãos esticadas como garras de um falcão, desceram firmes até o pescoço do rapaz e o transpassaram, como se ele não existisse. Imann espatifou-se no chão do outro lado. O vagabundo terminou de retirar o amuleto, e saiu andando, tranquilamente, em busca de outros objetos de valor, sem sequer notar a presença furiosa do guerreiro caído. 

– Devolva o cordão dele, desgraçado!!!!! – gritou Imann, novamente derrotado ao solo. O homem seguiu seu caminho, ignorando-o, como se não ouvisse. 

Aturdido, Imann não compreendera o que havia se passado. Ele simplesmente atravessara o corpo do vigarista, como se ele fosse um fantasma. 

Novamente de pé, involuntariamente ele olhou para trás, para o percurso que havia feito. Então, um arrepio terrível lhe envolveu os poros da pele. Imann estarreceu! Estava olhando agora, para o local onde esteve deitado. Incrédulo, vislumbrava seu próprio corpo, que permanecia estirado no mesmo lugar, imóvel, e sem vida... 

"O que está acontecendo comigo?" 

Nesse momento, um sujeito surgiu de algum lugar incerto, ereto, atravessava o mar de corpos. Caminhava na direção do guerreiro, de forma tranquila, como se estivesse passeando por um jardim de flores. Era um homem alto, de pele alva como a neve, tinha cabelos longos e encaracolados. Ele usava um manto dourado que ofuscava os olhos de quem olhasse. 

– Saudações, bravo Imann! – disse o homem ao se aproximar – finalmente é chegada a tua hora.

– Quem é você? – perguntou o guerreiro, ainda assustado com a situação inexplicável.

– Sei que deves estar com a mente perturbada, uma vez que és um homem que só acredita no julgamento do aço. 

Imann não disse nada em resposta. A consciência parecia afirmar-lhe exatamente o que os olhos testemunhavam. E como tudo em sua vida só era entregue mediante a luta, estava disposto a travar uma batalha contra a própria sanidade. 

– Vá embora daqui! Desapareça!

– Não tenhas medo de mim, bravo Imann.

– Deixe-me!!!

– Eu vim livrá-lo das chamas do inferno. Por favor, permita que eu o salve. Eu já vi o inferno uma vez, grande guerreiro. E não desejo que homem algum também o veja...

– Quem é você?

– Eu me chamo Ariel. Sou o zelador dos mortos, o coletor de almas perdidas. A tua se perdeu após a sangrenta batalha. – o estranho fez uma pausa. Observou uma repentina mudança no céu, e este começou a escurecer. Dezenas de vultos alados intrometeram-se ao redor deles.

– Não temos muito tempo, Imann. Eles estão vindo buscá-lo. 

Dessa vez, o guerreiro nada disse, mergulhado no próprio orgulho. Ele levou as mãos à cabeça. As palavras do outro faziam com que as neblinas que escureciam sua mente, dissipassem como numa ventania feroz. Foi quando conseguiu resgatar as lembranças de seus últimos instantes de vida. O exato momento em que o inimigo triunfara sobre ele. 

As incessantes trocas de golpes;

O choque de dois aços perfurantes emitindo faíscas;

Músculos enrijecidos a segurar o instrumento decisivo;

Imann versus o doutrinador de templários;

Em volta deles, a batalha estava no seu auge;

Os guerreiros sob a chuva forte que parcialmente os cegavam;

Um embate que só terminaria com a morte de um deles;

Então o adversário de Imann esquivou-se de um golpe mortal;

A espada do guerreiro jamais havia falhado;

Passou por cima do corpo do inimigo abaixado;

Ele contra atacou com determinação e firmeza;

E a espada adversária, atravessou o peito de Imann.

Depois disso, houve escuridão... 

– Imann!! Imann!! 

O guerreiro abriu os olhos. O anjo estava parado em sua frente, o sacudia os ombros, numa insistente busca em ser ouvido: 

– Rápido, Imann! Os demônios querem levá-lo!

– Demônios? – perguntou Imann, resgatando a consciência.

– Sim, Imann. E se não vier comigo, terá que ir com eles.

– Onde estão todos?

– Não importa agora, Imann. Vamos sair daqui!! 

O firmamento estava tomado por uma tonalidade lúgubre. Os vultos se aproximavam de Imann. Um deles saiu das sombras, e foi até Ariel: 

– Deixe-o, querubim. Você não pode interferir no livre arbítrio.

– Afaste-se, imundo! Essa alma não lhe pertence.

– Ele se decidiu, Ariel. Não quer ir com você... 

O guerreiro estava cabisbaixo, como se pouco importasse aquela disputa por sua alma. Seu olhar apontado na direção do vazio. Não conseguia desfocar da derrota; inconformado com a realidade. Percebeu que era inevitável. E mesmo agora, depois de tudo acabado, a vergonha pela queda lhe trouxera mágoa, fúria e um desejo enorme de autodestruição. 

– Por favor, não se entregue, Imann. – implorou o anjo.

O guerreiro caiu de joelhos;

Os enviados de Lúcifer envolveram sua alma;

Ariel nada pôde fazer;

Não houve nenhuma resistência;

Imann punia-se com a abstenção. 

Ariel retornaria sem a alma do Guerreiro. O azul do céu voltou a normalidade, as nuvens brancas reapareceram. O anjo estava atônito, sem saber qual seria a verdadeira razão pela qual outra alma, por mais perturbada que fosse, negligenciara sua súplica. 

Jamais alguém havia sido inconsequente a ponto de recusar tal oferta de salvação. 

A verdade era que anjos não conheciam a vaidade humana.

Assim como o bravo Imann jamais havia conhecido a derrota...

***

(Conto postado no site Recanto das Letras, no ano de 2012).

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