sábado, 2 de julho de 2022

RESENHA DE LIVRO – QUASE NOITE

Terceira obra que degusto dessa escritora americana, cujo tema é pesado, instigante e arenoso. Nos dois livros anteriores, Sorte e Uma vida Interrompida, Alice Sebold discorre suas tramas sob a égide do estupro, o primeiro deles, inclusive, é autobiográfico. Dessa vez, o tema é o matricídio, que além de se tratar de um tópico difícil por si, também faz paralelo com outro assunto que considero importante e interminável: relações humanas.

Infelizmente QUASE NOITE, apesar de entregar uma narrativa em primeira pessoa corajosa e sem muito circunlóquio, economizou em introspecção na personagem principal, deixando a leitura ser nada mais que um relato oco, alguns momentos até correndo sério risco de soar manipulador. Sabe quando o autor tenta explicitar no texto aquilo que você deve pensar sobre o que está lendo, sem deixar espaço para a livre análise? Há instantes em que tive essa impressão.

Perdoe-me se crio uma impressão ruim com este suposto início negativo de resenha. QUASE NOITE não é um livro ruim, apesar de ser o mais fraquinho da autora e de sustentar alguns probleminhas técnicos. Alice Sebold é uma escritora de bons atributos narrativos, sabe desenvolver histórias fluidas, não teme assuntos espinhosos e até consegue nos causar empatia com suas personagens (pelo menos isso aconteceu nas duas obras anteriores). A condução aqui é direta, já inicia dando um soco na cara do leitor e habilmente rouba a nossa atenção.

A trama se passa numa pequena cidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, em que um crime inesperado interrompe a rotina maçante daquela comunidade. De imediato, a confissão da personagem, Helen Knightly, de ter assassinado a própria mãe, desconcerta o leitor e oferece a tonalidade pungente que vai perdurar por toda a leitura, quase como se estivéssemos lendo com alguma coisa entalada na garganta.

Por 48 horas vivenciando os acontecimentos posteriores ao crime, sempre sob a ótica de Helen, temos uma narrativa enriquecida pelo relato dos instantes mais marcantes na vida da protagonista, confissões de suas relações de amor e ódio com os familiares, com destaque para a experiência vivida ao lado de sua genitora. O livro mescla relatos presentes dos instantes confusos e inéditos de Helen, com lembranças do passado dela e que fazem este paralelo, cujo intento deliberado parece ser o de fazer o leitor compreender as motivações da personagem, eis o entrave mencionado no início da resenha.

Alguns momentos essa alternância entre passado e presente criou um pouco de confusão; não raro precisava voltar alguns parágrafos na leitura para conseguir me situar.

Outro impasse ocorre quando a personagem relembra instantes do passado, porque ela simplesmente relata e apenas isso. Nenhum problema quanto ao método, o intuito pode ser ajudar o leitor a compreender aquela existência que nos conta sua história. O caso é que a mera descrição de tempos passados, como acontece aqui, soou como se a autora estivesse tentando justificar o crime cometido pela personagem. Sem elementos que validem suas memórias, como sensibilidade ou imersão, os relatos de Helen parecem uma tentativa de convencer o leitor da insignificância de seu crime; como quem alega que isso poderia ser a atitude de qualquer um de nós. Senti-me como se fosse o jurado de um tribunal que acompanha a oratória do réu desesperado.

Muitos escritores se utilizam dessa ferramenta para elevar a identificação com a personagem. O relato pode ser despretensioso, introspectivo ou até mesmo aqueles instantes de devaneios, os quais detalhes muito sutis são narrados e funcionam por agregar alma ao narrador, criando uma aproximação maior com a lisura do ser humano. Infelizmente isso não ocorre com a personagem de Alice Sebold. Temos a aproximação com o instante em que o desespero de um ser humano o leva a tomar decisões ruins, mas talvez não fosse necessário tentar endossar tais ações.

De qualquer forma, QUASE NOITE é um livro, digamos, encruado e corajoso. Mantenedor da ótima narrativa fluida, que já se tornou marca de Alice Sebold, cujos temas centrais causam desconforto e desestabilizam.

NOTA: 6,4

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