sábado, 31 de agosto de 2024

RESENHA DE LIVRO – MEMÓRIAS DE MINHAS PUTAS TRISTES

Preciso confessar que minhas expectativas sobre esse MEMÓRIAS DE MINHAS PUTAS TRISTES eram elevadas. Não somente por se tratar de uma obra do nosso querido Gabo – Gabriel Garcia Márquez, Nobel de literatura em 1982 – mas também pela premissa do título e apresentar um velho com pinta de boêmio retratado na capa.

Contudo, digamos que meus anseios foram parcialmente saciados. A trama, que me soava como algo de uma pegada Nabokoviana, mostrou-se uma leitura delicada e, sim, uma história de amor singelo. Não foi uma experiência propriamente ruim, porém, bem diferente do que eu imaginava encontrar aqui.

A personagem central e narrador da história é um velho e entediado cronista de veículo de imprensa local. Vendo a chegada de seus 90 anos de idade, resolve realizar um feito, digamos, pouco habitual para sua longeva condição: celebrar o aniversário se dando de presente uma adolescente virgem.

Ideia desabrochada na mente, nosso protagonista entra em contato com velha conhecida, uma cafetina e dona de um bordel, que em deferência aos velhos tempos, vai em busca de atender inusitado desejo. Não demora e a mulher encontra a candidata ideal, uma jovem rapariga pobre e, portanto, mais suscetível a aceitar ser a realização do anseio obsceno de um nonagenário.

Nosso protagonista sem nome se submete a toda uma preparação, talvez inspirado pela nostalgia dos velhos tempos em que era frequentador assíduo de bordéis, começa então as situações inusitadas: ele encontra a garota nua sobre a cama do quarto que lhe fora reservado. Porém, a garota está profundamente adormecida, o que não torna a situação menos intensa para o velho, que se senta ao lado da cama e passa horas contemplando a jovem, até adormecer ao seu lado, levantar antes que ela acorde, e assim encerrar o encontro.

A situação descrita acima volta a se repetir ocasionalmente e com algumas mudanças, mas tudo dentro dessa relação visual e nada física, apenas a perspectiva da sensualidade mesclada a um respeito ímpar.

Todas as noites de encontro a letárgica garota vai se tornando um arquétipo do desejo platônico, cuja manutenção de sua continuidade é que este se encontre precisamente como se encontra no presente: algo continuado na esfera do desejo, sem que haja a glorificação do ato sexual.

Conforme os encontros se sucedem, ocorre uma evolução na condição desejante do protagonista, que aparentemente em sua distinta idade, parece sentir, pela primeira vez, o gosto singelo do amor.

Como é habitual nos textos de Márquez, a leitura é fluida e sedutora, leva o leitor a imersão com facilidade. Não faz uma homenagem à velhice, tampouco a retrata como a prisão inescapável da precariedade humana. Em alguns momentos a personagem chega a parecer usufruir de condições que apenas a longevidade fora capaz de proporcionar e, claro, também o desejo de celebração com algo motivado pela noção de proximidade com a morte.

Mas apesar de ser delicioso acompanhar tais momentos da vida do narrador, em especial seus encontros com sua bela adormecida, senti que a narrativa não nos deixa nos aproximar muito da intimidade de suas personagens. Mesmo uma leitura em primeira pessoa, que costuma facilitar a conexão do leitor com o cerne do protagonista, senti falta de um pouco mais de incidência do caráter privado de pensamento. Talvez isso fosse possível se o livro fosse um pouco mais longo do que suas estreitas 120 páginas.

MEMÓRIAS DE MINHAS PUTAS TRISTES é uma obra sutil, honesta e afável, uma história de amor que foge dos padrões clichês da literatura. De narrativa crua e ao mesmo tempo poética, cujos destinos dos amantes aqui relatados faz elevar a ansiedade do leitor...

NOTA: 8

sábado, 17 de agosto de 2024

RESENHA DE LIVRO – A COZINHA DO PENSAMENTO

Culinária e filosofia são duas instâncias distintas demais para serem objeto de interesse de uma mesma empreitada. É o que eu pensava até colocar meus olhos no trabalho deste espanhol chamado Josep Muñoz Redón, intitulado A COZINHA DO PENSAMENTO, onde já na introdução podemos ter um vislumbre de sua premissa, quando diz que “a gastronomia é a arte de condimentar os alimentos para produzir felicidade, enquanto a filosofia é o engenho de cozinhar ideias para obter perguntas”.

Faz sentido, senhor Redón, afinal, só se pode produzir o alimento da alma, mentes saciadas do alimento do corpo. Portanto, temos aqui uma produção rara de literatura filosófica, mesclada a informações e curiosidades gastronômicas, o que os mais notórios pensadores comiam, de que maneira a sociedade fazia suas refeições, quais eram os alimentos mais comuns. E os dois assuntos, que antes da leitura pareciam imiscíveis, tornaram-se uma divertida e estruturada obra, ganhadora do importante prêmio Sent Sóvi, no ano de 2004.

Cada capítulo nos introduz um filósofo, faz-se um breve resumo sobre sua vida e obra, juntamente com informações a respeito do costume alimentar que levava. Partindo dessas definições, Josep Muñoz Redón procura esquadrinhar o intelecto de um bem alimentado grupo de filósofos, imaginando seus hábitos à mesa e seus desejos por inovar no paladar.

Ao término de cada um dos capítulos, temos uma receita de pratos sofisticados, com ingredientes oriundos dos principais itens citados no texto. Em seguida, segue-se um enigma de sobremesa; um breve probleminha para o leitor instigar e abrir o apetite da mente.

Imagino que o livro pretenda, acima de tudo, atrair leitores de diferentes nichos por meio de uma escrita divertida, mas sem parecer leviano, a ideia é exibir a relevância que o alimento possui como ferramenta que fortalece o pensamento, popularizar a filosofia através da associação com a gastronomia.

Outro aspecto que me parece central é que o livro tenta desmitificar a gastronomia. Sim, pois se a filosofia parece ter total pertinência na esfera literária, acho que com a gastronomia isso se torne, digamos, algo restritivo; a literatura gastronômica parece limitada a livros de receita, inclusive há quem considere uma estética sem linguagem, ou uma estética que não pode ser definida como arte.

O autor buscar com sua obra nos mostrar a necessidade de um comer reflexivo como procedimento à mesa, desafiando a alienação que a gastronomia ocidental traz como marca de nascença.

A COZINHA DO PENSAMENTO é um compilado de pensamentos filosóficos, que não são estranhos aos processos do apetite e da digestão. As ideias, assim como os pratos, também são preparadas, desejadas, cozinhadas, digeridas e oferecem, mais do que analogias, conexões complexas e imprevisíveis.

NOTA: 9,3