Ontem ao acordar, me deparei com uma barata no chão do banheiro. Quando me aproximei, ela começou a espernear de modo histérico, o que me fez esquecer a hipótese de que estivesse morta. Fiquei parado, diante daquele ser que sempre tive asco, observando seu desespero em desvirar para então fugir..., é inevitável: quando olho demais para esse inseto, minha memória se enche da leitura de um dos melhores livros que já li na vida: A Paixão segundo G.H., de Clarice Lispector.
Mas nunca pensei em esmagar a
barata e provar de sua massa, como faz a protagonista na trama. Falta-me a
coragem e destreza de G.H. Então, com a ponta do coturno, ajudei a intrusa a se
desvirar e acompanhei sua fuga desesperada..., foi a primeira vez que deixei
uma barata escapar com vida de minha casa.
Estava em silêncio, observava
a barata, mas pensava na obra de Clarice e todo o seu conteúdo imersivo e
filosófico por excelência.
Se estivesse viva, possivelmente
a autora negaria qualquer similaridade com a filosofia, mas penso que a
literatura de Clarice Lispector deve causar assombro em muito filósofo que se
orgulha de seu ofício. Desse modo, talvez pudéssemos cometer uma branda
transgressão aqui, classificando o conteúdo de sua obra como “pensamentos
claricianos; a filosofia do indizível”.
Ler Clarice Lispector nos faz
refletir sobre a existência de uma camada de realidade que escapa à linguagem,
mas que ainda assim tenta ser dita. Quem já leu essa autora, sabe muito bem do
que estou falando: Clarice nos toca sem pedir licença, ela é uma escritora que
nos lê, não o contrário.
Porém, esse “indizível” não é
uma mera abstração, mas uma força viva, que pulsa, incomoda e assusta. Ou seja,
ela pensa a anterioridade do ser, como pensava Bergson “a intuição como acesso
ao real”.
Talvez o ápice filosófico em
toda sua bibliografia, esteja mesmo em A Paixão segundo G.H., na qual a
protagonista passa por um processo violentíssimo de rompimento com a própria
existência. Mas o que, propriamente, está sendo rompido?
Quem sabe a perda da
humanidade entendida como distinta, a personagem referida apenas por suas
iniciais G.H., percorre o caminho que remete à mística apofática, como menciona
Eckhart e Sartre, com a ideia de que perder o eu é o primeiro passo para acessar
a verdade do mundo. Quando sua protagonista, cuja jornada inteira ocorre dentro
de um quarto de empregada, encara a barata esmagada, está diante do núcleo duro
da existência. Aquele ser horroroso e banal, uma mera barata esmagada, vira o
símbolo do real que não se deixa domesticar.
Este seria o escopo essencial
da filosofia clariciana: G.H. percebe que a vida é indiferente, mas absoluta;
que há uma unidade profunda em todas as formas de ser; que não existe
hierarquia entre aquilo que é humano e o que não é; que o mundo é inteiramente
feito de uma mesma matéria. Ou seja, estamos diante de um pensamento filosófico
que não é, de maneira alguma, simples e fácil..., trata-se de uma filosofia de
ruptura, de ferida, de excessos e de revelação quase divinatória. Em A Paixão
segundo G.H., a epifania é uma experiência de sofrimento, de lucidez extrema. E
após o asco, o medo e o desconforto, a revelação ocorre.
Poderíamos ainda dentro dessa
mesma deliberação, mencionar outro aspecto que me parece interessante: Clarice
trabalha toda sua construção narrativa se utilizando de um sagrado sem dogma, sem
nenhuma teologia, apenas uma espiritualidade feita do choque com a matéria,
como uma mística do banal: Deus como uma barata, no absoluto silêncio.
Por outro lado, a autora lida
com sua ausência de intenção. Para Clarice, escrever é um ato perigoso, porque
implica enfrentar a si mesmo. Ela escreve como quem caminha na beira de um
abismo. Suas frases são instrumentos de escuta interior e tentativa de tocar o
núcleo da realidade. Clarice filosofa com dedos ágeis em sua máquina de
escrever, deixa de lado formalismos de tratados. Para Clarice, a realidade
existe antes de qualquer nome, a palavra é sempre tardia. Esse real seria o
núcleo duro, aquilo que G.H. identifica quando se depara com a barata: a vida
em seu estado mais bruto. É um ato que nos oferece uma espécie de ontologia
igualitária, pois o humano não é superior à barata ou a qualquer outro ser da
natureza..., tudo é a mesma matéria viva.
Portanto, a identidade
revela-se como ilusão. A sensação de “eu” é apenas um artefato, um arquétipo. O
eu seria uma construção social, psicológica, uma máscara que esconde a verdade
do ser. E a verdadeira experiência ontológica só ocorre quando houver uma
ruptura, quando a máscara se quebrar..., nesse momento surge a
desidentificação. A personagem G.H. diz: “Perdi a minha forma humana”.
Essa perda é necessária para
que ela acesse o estado neutro. É o contrário do cogito cartesiano: o
pensamento não fundaria o eu, mas o dissolveria. Contudo, é um encontro que
exige aceitação da própria fragilidade, quando G.H. compreende que o outro
absoluto é uma barata, fazendo o respeito ontológico se estender a todos os
seres. Só então poderá haver uma transformação, pois toda transformação nasce
da fratura.
Nessa hipotética filosofia
clariciana, a verdade não estaria nas convenções sociais, mas naquilo que nos
assusta. É uma teologia negativa, distante de qualquer transcendência ou moral.
O sagrado estaria incutido naquilo que é repulsivo, bruto..., está em todos os
animais.
E como se faz para conhecer
esse sagrado? Pela intuição, pois para Clarice a racionalidade não capta aquilo
que é essencial. É preciso ir ao extremo e causar a fratura do eu.
Seria preciso um
desprendimento estoico para tal. Não é o meu caso, pelo menos ainda não. Deixei
que a barata fugisse, assim como deixei escapar todas as chances de romper com
meus egos, minhas fraquezas. A filosofia clariciana é um encontro com o que nos
causa terror e estranheza…, e por hora sou a mera teoria escrita. Pois como nos
ensinou a própria Clarice Lispector, a escrita é apenas um método
epistemológico: um modo de tentar dizer o indizível.
FELIZ ANIVERSÁRIO, QUERIDA CLARICE!!

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