Conseguir um lugarzinho dentro
de um ônibus coletivo em manhã de dia útil é basicamente o anseio que permeia a
mente de todo usuário deste tipo de transporte. Mas talvez tão ruim quanto passar
algum tempo em pé e espremido com outros trabalhadores, seja viajar sentado ao
lado de alguém que, portador de carência incontida, sustenta incontida necessidade
de conversar. E muitas vezes esse ato inesperado acontece no instante em que começava
nos fones de ouvido aquele som bacana que massagearia a exaustão do
pós-expediente. Desse modo, penando contra a própria vontade, vemo-nos
obrigados a desligar a música, para decifrar o que já estava a sair dos lábios
do malquisto, agraciando-nos com seus esquecíveis relatos, que se iniciaram antes
mesmo de termos a chance de interromper o som.
Esse episódio se repete com
certa frequência, e nunca, em nenhuma dessas infelizes ocasiões, eu fui
contemplado por considerável abordagem ou alguma reflexão produtiva; nem mesmo uma
notícia do mundo que realmente valesse à pena ser conversado... Nada.
Sempre são as mesmas
perguntinhas vazias e comentários insossos: “Trabalhando muito, cara?”, “Como
é que vai a vida?”, “E esse tempo maluco?” “Você tá sumido, hein...” “esses ônibus estão sempre atrasados”.
Abordagens as quais eu ofereceria todo o meu carinho, caso fosse um pouco mais
honesto: “Sim, estou trabalhando muito. Mas
seria melhor ainda estar no trabalho, do que conversando contigo”; “Sim, a vida
estava perfeita até você se sentar do meu lado”; “Não estou sumido não, mas
adoraria conseguir fazer isso agora”.
Provavelmente, se você tolerou
esse desabafo até aqui, deve estar me mapeando como um sujeito arrogante, chato
ou antissocial. Mas me permita justificar esta minha inevitável transgressão:
Por mais nebuloso que possa
parecer, o que você está lendo aqui, nada mais é do que um manifesto de devoção.
E quem ama, odeia ver seu instante de contato com o objeto amado sendo
bruscamente interrompido.
Sim, caro leitor. Pode parecer
piegas, mas eu amo as minhas músicas; ou como diz minha mãe: “aquelas suas músicas doidonas”. E quando
você se sentar ao meu lado, justamente no instante em que meus acalentos
auditivos estiverem rolando, saiba: só lhe darei atenção, porque ainda não
possuo singeleza o bastante para dizer em sua cara, que você acabou de
interromper um momento infinitamente mais prazeroso do que qualquer coisa que
você tenha a dizer. O zelo pela tolerância na convivência, infelizmente, não me
permite essa naturalidade.
Ter pouca ou nenhuma
inclinação para um bate-papo dentro do ônibus, algo moralmente impronunciável,
não me acomete por eu ser um rabugento intratável ou qualquer outra definição
que tenha lhe ocorrido na mente. Bom, talvez eu seja para algumas pessoas, mas
o que quero fomentar aqui é o quanto da frustração que sinto, pois costumo usar
o tempo de viagem do trabalho até em casa para curtir um tantinho dos prazeres
os quais não tive tempo de apreciar durante o expediente. E estes se resumem em
ler um livro ou ouvir um pouco de música. Portanto, a menos que as pessoas
tenham algo realmente interessante pra dizer, eu prefiro ficar com os meus
prazeres.
E há muito tempo que vivo um
caso de amor com o rock.
Em tempos passados, eu teria
afirmado que sou apenas um apaixonado. Sim, eu já fui acometido pela patologia
da paixão pela música. Mas atualmente o meu caso evoluiu para amor. E você se
perguntará: dado como exemplo a preferência musical, qual é a diferença entre
paixão e amor?
É muito simples: a diferença é
exatamente a mesma que ocorre quando nos relacionamos com uma pessoa. Ou seja,
quando estamos apaixonados, perdemos o senso, nos tornamos compulsivamente
irracionais e precisamos nos familiarizar de forma obcecada com o objeto de
nossa paixão. Já quando se ama nada disso precisa mais ocorrer. Porque quando
se ama, simplesmente se gosta. Não há espaço para deliberar sobre nada... Você
ama e ponto final. Qualquer reação, reclusão, inclusão, proximidade ou
afastamento, ocorrem automaticamente e na total ausência de conjecturar por
outra reação. Não há influência externa, apenas sentimento puro.
Darei um exemplo disso:
Quando era jovem, precisamente
no auge da adolescência, eu descobri o rock e me apaixonei. Foram tempos em que
eu precisava me afirmar, e para isso, tive que tomar algumas atitudes, as quais
hoje eu as entendo como um tanto obsessivas: precisava ter sempre alguma coisa
a dizer que parecesse legal aos ouvidos de outros “roqueiros”, para que não pensassem que sou um poser; comprava camisas das bandas mais famosas, mesmo que eu não
as conhecesse, porque isso fazia de mim alguém mais aceito pela tribo; temia
afirmar aos meus colegas algum apreço por aquela banda considerada ruim pela
maioria, simplesmente porque existem alguns amores que devem ser negados socialmente.
Naquele tempo de atos banais, eu era o egocêntrico que não sabia se gostava
mais de rock ou de ser aceito, só o que importava era me parecer com um roqueiro
nato. E me ultrajava quando não era reconhecido como tal.
Hoje a paixão morreu, dando
lugar ao puro e singelo amor. Não mais sinto nenhuma necessidade de ser
incluído ou aceito por grupos; só uso camisa de bandas as quais me identifico e,
por consequência, eu as quero homenagear. Ainda privilegio a cor preta, mas
hoje me visto pra mim e não para mostrar aos outros. Também aprendi que não dói
confessar que se gosta de ouvir aquela banda considerada careta por aqueles que
se dizem entendedores de música..., ah, e eu não sinto a menor vontade em
trocar ideias sobre minhas predileções musicais, até porque, hoje eu sei que
isso faz parte de nossa particularidade, e exatamente como é a clareza dessa
definição, particularidades não existem para ser entendidas por ninguém, além
de nós mesmos. Mesmo a definição de “roqueiro” se tornou uma adjetivação que me
incomoda, porque faz parecer que sou um ser limitado, um rótulo que reduz minha
existência.
Se este amor me tornou uma
pessoa melhor ou pior eu não sei dizer. Mas eu posso garantir que sou muito
mais feliz hoje, porque consegui tirar da minha consciência aquela neurótica
necessidade de estar sempre a caráter para que as pessoas saibam quem eu queria
ser.
Porque hoje este pacato
transgressor que vos escreve só quer ser ele mesmo.
Sou um amante de rock, Não um
roqueiro. E por isso continuarei odiando ter que desligar os fones de ouvido.
Não odeio você, meu caro companheiro diário dos transportes coletivos. Só o que
peço é que não julgue este confessor inconsequente. Porque eu sei muito bem que
você também ama coisas ou pessoas. E da mesma forma que eu, você também odeia
ter que se afastar de seu objeto amado.
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