Odeio quando algum conhecido entra no mesmo ônibus que eu, se senta ao meu lado, justamente no instante em que começava no meu MP3, aquele som de arrepiar a alma. Então, penando contra minha própria vontade, me vejo obrigado á desligar o som, para decifrar o que já estava á sair dos lábios do malquisto, me agraciando com suas esquecíveis saudações, antes mesmo que eu tivesse tempo de interromper a música.
Esse episódio acontece com certa frequência, e nunca, em nenhuma dessas infelizes ocasiões, eu fui contemplado por uma considerável abordagem. Ou por alguma reflexão inédita; ou mesmo por algo que realmente valha á pena ser conversado.
Não. Sempre são as mesmas perguntinhas vazias e comentários
desprezíveis: “Trabalhando muito, cara?”,
“Como é que vai a vida?”, “Você tá sumido, heim.”. Perguntas às
quais terão de mim, sempre uma resposta no mesmo patamar de intelecto de sua
abordagem, ou seja: receberão apenas idiotices de volta.
Admirarei devotamente aquele que, ao se tornar meu inesperado
acompanhante de cadeira do ônibus, olhar para minha atitude forçada de desligar
os fones, e simplesmente dizer: “pode
continuar escutando sua música, tranquilo, cara. Eu também amo as minhas e sei
o que é isso”. Mas já me conformei com esse mundo automático e repetitivo, e
acho que este modelo de camarada, esbanjador de apreço, talvez não exista. E
seguirei com meu ato de desligar os fones de ouvido, para dar atenção á alguém
que acha que só porque somos conhecidos e moramos no mesmo bairro, temos a
obrigação de papear dentro do ônibus.
Provavelmente, se você degustou essa crônica até aqui, já
deve estar me taxando de arrogante, individualista e antissocial. Mas
permita-me explicar esta minha inevitável indignação:
Por mais nebuloso que possa parecer, o que você está lendo
aqui, nada mais é do que um testemunho de amor. E quem ama, odeia ver seu
instante de contato com o objeto amado, ser bruscamente interrompido.
Sim, caro leitor. Pode parecer piegas, mas eu amo o rock. E
quando você se sentar ao meu lado, justamente no instante em que minha canção
favorita estiver começando, saiba: só lhe darei atenção, porque ainda não
possuo singeleza o bastante para dizer em sua cara, que você acabara de
interromper um momento infinitamente mais importante do que qualquer coisa que
você tenha á dizer. A ética social, infelizmente, não me permite essa
naturalidade.
Eu não sinto essas coisas moralmente impronunciáveis porque
eu sou um chato, arrogante ou qualquer outra definição que tenha lhe ocorrido
na mente. Talvez eu até seja para algumas pessoas. Mas o que quero fomentar
aqui é o quanto da frustração que sinto em momentos como o exemplo mencionado
acima, ocorrerem em meu ser, simplesmente porque eu amo. E odeio ter que
interromper meus instantes de intimidade.
Em tempos passados, eu teria afirmado que tenho paixão pelo
rock. Sim, eu já fui um apaixonado. Mas hoje o meu caso evoluiu para amor. E
você se perguntará: dado como exemplo a nossa preferência musical, qual é a
diferença entre paixão e amor?
É muito simples: a diferença é exatamente a mesma que ocorre
quando nos relacionamos com uma pessoa. Ou seja, quando estamos apaixonados,
perdemos o senso, nos tornamos patologicamente irracionais e precisamos nos
familiarizar compulsoriamente com o objeto de nossa paixão. Já quando se ama,
nada disso precisa mais ocorrer. Porque quando se ama, simplesmente se gosta.
Não há espaço para deliberar sobre nada... Você ama e ponto final. Qualquer
reação, reclusão, inclusão, proximidade ou afastamento, ocorrem automaticamente
e na total ausência de conjecturar por outra reação.
Vou usar á mim mesmo como exemplo disso:
Quando eu era mais jovem, no auge dos meus dezoito, vinte
anos, eu me tornara mais um apaixonado pelo rock. Foram tempos em que eu
precisava me afirmar, e para isso, eu tinha que tomar algumas atitudes, as
quais hoje eu as entendo como um tanto obsessivas: precisava ter sempre alguma
coisa á dizer que parecesse legal aos ouvidos de outros roqueiros, para que não
pensassem que sou um poser; comprava camisas de bandas mais famosas, mesmo que
eu não as conhecesse, porque isso fazia de mim, alguém mais aceito; temia
afirmar aos meus colegas meu apreço por aquela banda considera ruim pela
maioria, simplesmente porque existem alguns amores que devem ser negados
socialmente; naquele tempo, eu era capaz de cometer idiotices grotescas, apenas
para me parecer, cada vez mais, com um roqueiro nato. E me ultrajava quando não
era reconhecido como tal.
Hoje, a paixão morreu, dando lugar ao puro e singelo amor.
Não mais sinto nenhuma necessidade de ser incluído ou aceito por grupos; só uso
camisa de bandas as quais me identifico e por consequência, eu as quero
homenagear. Hoje uso camisas para mim, e não para mostrar aos outros; e sim, eu
adoro confessar que gosto de ouvir aquela banda considerada uma merda pelos que
se dizem entendedores de rock... Ah, e eu não sinto a menor necessidade em
trocar ideias sobre minhas predileções musicais, até porque, hoje eu sei que
isso faz parte de nossa particularidade, e exatamente como é a clareza dessa
definição, particularidades não existem para ser entendidas por ninguém, além
de nós mesmos.
Se este amor me tornou uma pessoa melhor ou pior para aqueles
que me olham, eu não sei. Mas eu posso lhes garantir que sou muito mais feliz
hoje, porque consegui tirar da minha consciência, aquela neurótica necessidade
de estar sempre á caráter para que as pessoas saibam quem eu queria ser.
Sou um amante de rock. E por isso continuarei odiando ter que
desligar os fones de ouvido. Não odeio você, meu caro companheiro diário dos
transportes coletivos. Só o que peço é que não julgue este autor inconsequente.
Porque eu sei muito bem, que você também ama algumas coisas ou pessoas. E assim
como eu, você também odeia ter que se afastar de seu objeto amado.
Feliz dia Mundial do Rock, á toda essa vasta
nação de amante mundo afora!
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