quinta-feira, 27 de novembro de 2014

CRÔNICA: PEQUENOS ATOS DELINQUENTES


Uma ação pode ter efeitos contraditórios daquilo que fora pretendido, após sua execução. E isso acontece simplesmente por conta do ineditismo da vida. A ação é ato pensado, mas infelizmente o pensamento é pequeno demais para antecipar determinados efeitos. E embora algumas vezes o resultado alcançado seja exatamente aquilo que fora esperado, seus efeitos podem ser entristecedores.

Porque efeito também é causa. E esta resulta em mais efeitos.
Era uma manhã de sábado e eu cuidava de alguns afazeres domésticos, quando a Tekila (minha pequena e ruidosa Poodle) começou a latir agudamente, em direção específica, mais precisamente focada nas escadas da porta de entrada. Geralmente ela faz alardes com qualquer coisa, mas quando sua atenção está fixada em um único ponto, é porque algo indevido violou a privacidade de nosso lar.

São nessas horas que eu tenho que intermediar o latido ininterrupto com o objeto de sua causalidade. Então, quando olhei para a escada, eis que avistei um calango, estacionado num dos degraus. Era talvez um dos maiores que eu já havia visto, tinha em torno de uns trinta centímetros, da ponta da cauda até a cabeça.
E meu embate mental se deu início.

O que fazer com aquele representante colossal de sua espécie? Afinal, embora uma criatura pequena, o calango era amplamente maior que os demais de sua categoria. Portanto, soube que não cabia á mim, destruir aquele que era uma espécie de mandatário do poderio robusto da natureza em sua vasta diversidade. Por outro lado, ele não era bem vindo, dada sua inusitada presença. Nunca havia recebido em minha casa, a visita de um réptil, portanto, eu não sabia exatamente o que fazer... Sem falar que Tekila não fechada o focinho.
Foi quando tive uma considerável ideia (ação), que foi a de encher um copo com água e jogar no inopinado lagarto, a fim de afugentá-lo. Contudo, após o que eu imagino ter sido a quarta “canecada d’agua” o calango continuava no mesmo lugar. Sequer se moveu. Talvez até gostando do refrescante banho proporcionado por meu ato ingênuo.

Tekila seguia com seu irritante vocábulo “cachorrês”, o qual eu interpretei como algo do tipo: “Isso não está dando certo, seu idiota! Tente outra coisa!”. E angustiado pelos instantes de incerteza, eu busquei a vassoura e voltei para a escada. A ideia agora era arrastar o intruso para fora do nosso lar.
Dessa vez eu tive êxito e a estranha criatura, tomada de temor, se viu tendo que escapar das cerdas de piaçava, cuja truculência deixou claro que sua presença não era bem vinda.

O calango finalmente fugiu, por debaixo da greta do portão. Do lado de fora, um grupo de malévolos humanos o aguardava. Um quarteto de pirralhos, pés descalços, roupas esfarrapadas e pedras nas mãos.
Esperavam esperançosos pelo retorno daquele que perseguiam.

E o pobre réptil fora apedrejado impiedosamente, como se fosse um ser cuja existência deveria servir de pura diversão para alguns seres humanos, que queriam praticar tiro-ao-alvo. Fora morto pela insistência, pois os agressores erravam seu alvo, em sequências quase misericordiosas; como se dessem brechas para que alguma providência viesse á tempo de salvar aquela vida encurralada. Mas tudo o que o pobre animal pôde fazer foi usar seu instinto, que sempre o mandou fingir-se de morto, perante situação de eminente perigo... E esperar pela pedra certeira, pois os asquerosos bípedes não desistiriam, enquanto isso não acontecesse.
Do alto da minha varanda eu acompanhei todo o ato de barbárie, que só poderia mesmo ser orquestrada pelo animal humano. Os garotos terminaram sua chacina, e depois foram embora, satisfeitos e agradecidos, pois um quinto integrante da carnificina finalmente havia colaborado, colocando o pobre animal para fora de seu improvisado refúgio, com uma vassoura.

Sim, minha ação foi bem sucedida. Consegui expulsar a criatura indesejada. Tekila também pareceu satisfeita, pois cessou com seu escândalo horroroso. Mas o resultado (efeito) de minha ação me deixou momentaneamente deprimido, inexpressivo... Coautor de um crime que não tive a intenção de cometer.

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