Immanuel
Kant, grande filósofo alemão do século XVIII, afirmou que: “Tudo aquilo que não puder contar como fez,
não faça. Porque os motivos para não contar, são exatamente as razões para não
fazer”. Infelizmente existem atos na vida dos quais nos faltam maturidade
para evitar, ou quem sabe seja questão de conhecer um pouco melhor aquilo de
que somos capazes? O fato é que este texto será uma espécie de confidência de
um feito que sempre julguei irrevelável; algo que não sinto orgulho, porém, não
me arrependo...
Foi ato no qual jamais o teria
feito se tivesse o discernimento precedente de Kant, ou mesmo melhores
conceitos éticos de convivência. Minha ação não denegriu, empobreceu ou feriu
pessoas diretamente. Mas foi atitude deliberada que existiu unicamente em
proveito do meu anseio individual, em detrimento do restante da comunidade em
que convivo.
Era uma tarde de quinta-feira,
de um inverno incomum e preguiçoso. Eu seguia com minha vida rotineira de
sempre, que se resumia em escola, trabalho e leituras. Apenas uma ideia
permeava a mente e contrastava com a mesmice cotidiana: havia passado os
últimos dias arquitetando o plano que estava prestes a cometer. E precisamente
no meu horário de almoço, saí em busca de minha obtenção vergonhosa...
Meus passos pouco firmes
adentraram a recepção da Biblioteca Municipal de minha cidade. Cumprimentei a
moça do balcão e disse que iria fazer uma das coisas que mais aprecio na vida:
vasculhar com calma a seção de literatura.
– Sinta-se à vontade, Michel –
disse ela, descontraída, quase nem me olhou, habituada que estava com minhas
visitas.
Enquanto caminhava pelos
corredores de enormes prateleiras, senti o suor frio que antecede o ato
ilícito, exalando em meus poros. Fui até a seção de literatura estrangeira,
passeei com os dedos através dos volumes empoeirados, até encontrar o objeto de
meu desejo; um distinto livro, cujo título é “O Beijo”, de uma autora chamada Kathryn
Harrison.
Livro em mãos, eu, no coração
central da moral humana, olhei para os dois lados. Não havia ninguém que
pudesse me flagrar. Olhei para o teto, para os cantos, e nenhuma câmera para me
intimidar. Então levantei a camisa, enfiei o livro por baixo, e saí
apressadamente, em passadas ainda mais irresolutas.
– Ué, Michel... Não vai levar
nenhum hoje? – quis saber a moça da recepção.
– Eu volto noutra hora... Aconteceu
um imprevisto e preciso ir – e assim eu escapei da biblioteca, levando na
cintura, o livro ansiado.
Para eliminar os vestígios que
pudessem me desqualificar como novo dono daquela obra, passei dias tentando, em
vão, apagar os muitos carimbos da biblioteca, espalhados por várias páginas do
livro.
Do agora meu livro...
“Por
que você fez uma coisa dessa?”, foi a intimada que escutei
da primeira pessoa que contei o que havia feito. E seu questionamento me soava justificável.
Afinal, subtrair do patrimônio municipal um objeto que serve para proporcionar
cultura, além de ser propriamente caracterizado como roubo, também pode, por
puro cabimento, levar o rótulo de egoísmo. Porque além da ilicitude em si, hoje
sou possuidor de algo que não tenho a menor pretensão em passar adiante, devolver
ou doar. Em outras palavras, sou a pior das espécies: o acumulador..., detentor
de um conteúdo cultural que não se expandirá.
Porque jamais empresto meus
livros!
Sou um confesso colecionador
de livros. E após este asqueroso episódio, pude, por experiência própria,
concluí que integro a pior categoria de ser humano que existe. Porque colecionadores
roubam a beleza do mundo, subtraem a arte, e as aprisionam para sempre; as
condicionam a um confinamento eterno que ofusca sua preciosidade.
Qualquer objeto de
consagração, quando cai nas mãos de alguém que coleciona, torna-se uma forma
oprimida, objeto sem cor, arte inalcançável, a redução intelectual do mundo...
Colecionadores são seres que
roubam para si toda a beleza cultural. E não raro as exibe como troféus
pessoais, como se o mérito daquela venustidade pudesse ser transferido para si
próprio... Sim, eu sou mais que leitor; sou um colecionador de livros cuja alma
é cinzenta, por isso acumulo títulos em minha estante, numa desesperada
tentativa em reluzir esta mesma alma apagada.
Ah, mas é só um livro, quem
liga para um livro? Você deve estar se perguntando.
Ok, não irei tornar esta
reflexão dissimulada com argumentos que justifiquem meu ato transgressor, pois
eu mesmo já o tenho como injustificável. Mas permita-me pelo menos salientar
que a deliberação pelo roubo, embora não devesse ser algo a se cogitar em
nenhuma hipótese, este foi o último recurso, dado que eu havia feito de tudo
para conseguir aquele título: o busquei em diversas livrarias; procurei pela
internet; conversei com membros de sites de leitura caso alguém tivesse alguma
ideia que pudesse ajudar; vasculhei por alguns Sebos do Estado; cheguei até
mesmo a ligar para a Biblioteca e perguntar se havia alguma forma de obter o livro,
e acabei por receber um sentencioso “Não” como resposta...
Enfim, eu havia tentado de
tudo e, frustrado, acabei por concluir que não haveria um meio de adquiri-lo de
forma honesta. E para um colecionador irrefreável, capaz de atropelar a moral
para alcançar seu objeto de consagração, quanto maior a dificuldade em obtenção,
maior a noção de preciosidade e valor. E alienado à dificuldade em encontrar rara
obra, compreendi a importância de sua posse. Uma raridade que corria imenso
risco de perder-se para sempre; invisível no meio de tantos outros livros populares,
mais procurados e culturalmente mais lidos.
O Beijo, e aqui não faço
nenhuma sinopse, conta a história de uma mulher que teve uma relação de incesto
com o pai. É um tema forte, contado na íntegra pela autora que alegou ser um
caso baseado em sua própria realidade. Tão intenso, que às vezes causa certo
desconforto no leitor. Mas é uma literatura que sustenta requintes de leveza,
de diálogos sutis e profundos, sentimentos explicitados de maneira a tirar todo
o julgamento moral; que desnuda a alma da narradora de dentro das páginas...
Algo que por si tornou a obra uma espécie de bestseller da minha insignificante coleção.
Se serei perdoado por subtrair
objeto do patrimônio cultural da cidade, não sei dizer. Os moralistas
certamente dirão que não. E dentro dessa ideia, posso alegar que sou o maior
desses moralistas. Mas o objetivo desta reflexão não é o de obter redenção
nenhuma, mas esboçar minha sincera confissão de que sempre que olho para a
estante e vejo o livro antiteticamente adquirido, não sinto a menor culpa. Eu o
entendo como uma conquista, preciosidade que apenas eu enxergo...