sábado, 27 de dezembro de 2014

CRÔNICA: OBTENÇÃO VERGONHOSA

Immanuel Kant, grande filósofo alemão do século XVIII, afirmou que: “Tudo aquilo que não puder contar como fez, não faça. Porque os motivos para não contar, são exatamente as razões para não fazer”. Infelizmente existem atos na vida dos quais nos faltam maturidade para evitar, ou quem sabe seja questão de conhecer um pouco melhor aquilo de que somos capazes? O fato é que este texto será uma espécie de confidência de um feito que sempre julguei irrevelável; algo que não sinto orgulho, porém, não me arrependo...

Foi ato no qual jamais o teria feito se tivesse o discernimento precedente de Kant, ou mesmo melhores conceitos éticos de convivência. Minha ação não denegriu, empobreceu ou feriu pessoas diretamente. Mas foi atitude deliberada que existiu unicamente em proveito do meu anseio individual, em detrimento do restante da comunidade em que convivo.

Era uma tarde de quinta-feira, de um inverno incomum e preguiçoso. Eu seguia com minha vida rotineira de sempre, que se resumia em escola, trabalho e leituras. Apenas uma ideia permeava a mente e contrastava com a mesmice cotidiana: havia passado os últimos dias arquitetando o plano que estava prestes a cometer. E precisamente no meu horário de almoço, saí em busca de minha obtenção vergonhosa...

Meus passos pouco firmes adentraram a recepção da Biblioteca Municipal de minha cidade. Cumprimentei a moça do balcão e disse que iria fazer uma das coisas que mais aprecio na vida: vasculhar com calma a seção de literatura.

– Sinta-se à vontade, Michel – disse ela, descontraída, quase nem me olhou, habituada que estava com minhas visitas.

Enquanto caminhava pelos corredores de enormes prateleiras, senti o suor frio que antecede o ato ilícito, exalando em meus poros. Fui até a seção de literatura estrangeira, passeei com os dedos através dos volumes empoeirados, até encontrar o objeto de meu desejo; um distinto livro, cujo título é “O Beijo”, de uma autora chamada Kathryn Harrison.

Livro em mãos, eu, no coração central da moral humana, olhei para os dois lados. Não havia ninguém que pudesse me flagrar. Olhei para o teto, para os cantos, e nenhuma câmera para me intimidar. Então levantei a camisa, enfiei o livro por baixo, e saí apressadamente, em passadas ainda mais irresolutas.

– Ué, Michel... Não vai levar nenhum hoje? – quis saber a moça da recepção.

– Eu volto noutra hora... Aconteceu um imprevisto e preciso ir – e assim eu escapei da biblioteca, levando na cintura, o livro ansiado.

Para eliminar os vestígios que pudessem me desqualificar como novo dono daquela obra, passei dias tentando, em vão, apagar os muitos carimbos da biblioteca, espalhados por várias páginas do livro.

Do agora meu livro...

“Por que você fez uma coisa dessa?”, foi a intimada que escutei da primeira pessoa que contei o que havia feito. E seu questionamento me soava justificável. Afinal, subtrair do patrimônio municipal um objeto que serve para proporcionar cultura, além de ser propriamente caracterizado como roubo, também pode, por puro cabimento, levar o rótulo de egoísmo. Porque além da ilicitude em si, hoje sou possuidor de algo que não tenho a menor pretensão em passar adiante, devolver ou doar. Em outras palavras, sou a pior das espécies: o acumulador..., detentor de um conteúdo cultural que não se expandirá.

Porque jamais empresto meus livros!

Sou um confesso colecionador de livros. E após este asqueroso episódio, pude, por experiência própria, concluí que integro a pior categoria de ser humano que existe. Porque colecionadores roubam a beleza do mundo, subtraem a arte, e as aprisionam para sempre; as condicionam a um confinamento eterno que ofusca sua preciosidade.

Qualquer objeto de consagração, quando cai nas mãos de alguém que coleciona, torna-se uma forma oprimida, objeto sem cor, arte inalcançável, a redução intelectual do mundo...

Colecionadores são seres que roubam para si toda a beleza cultural. E não raro as exibe como troféus pessoais, como se o mérito daquela venustidade pudesse ser transferido para si próprio... Sim, eu sou mais que leitor; sou um colecionador de livros cuja alma é cinzenta, por isso acumulo títulos em minha estante, numa desesperada tentativa em reluzir esta mesma alma apagada.

Ah, mas é só um livro, quem liga para um livro? Você deve estar se perguntando.

Ok, não irei tornar esta reflexão dissimulada com argumentos que justifiquem meu ato transgressor, pois eu mesmo já o tenho como injustificável. Mas permita-me pelo menos salientar que a deliberação pelo roubo, embora não devesse ser algo a se cogitar em nenhuma hipótese, este foi o último recurso, dado que eu havia feito de tudo para conseguir aquele título: o busquei em diversas livrarias; procurei pela internet; conversei com membros de sites de leitura caso alguém tivesse alguma ideia que pudesse ajudar; vasculhei por alguns Sebos do Estado; cheguei até mesmo a ligar para a Biblioteca e perguntar se havia alguma forma de obter o livro, e acabei por receber um sentencioso “Não” como resposta...

Enfim, eu havia tentado de tudo e, frustrado, acabei por concluir que não haveria um meio de adquiri-lo de forma honesta. E para um colecionador irrefreável, capaz de atropelar a moral para alcançar seu objeto de consagração, quanto maior a dificuldade em obtenção, maior a noção de preciosidade e valor. E alienado à dificuldade em encontrar rara obra, compreendi a importância de sua posse. Uma raridade que corria imenso risco de perder-se para sempre; invisível no meio de tantos outros livros populares, mais procurados e culturalmente mais lidos.

O Beijo, e aqui não faço nenhuma sinopse, conta a história de uma mulher que teve uma relação de incesto com o pai. É um tema forte, contado na íntegra pela autora que alegou ser um caso baseado em sua própria realidade. Tão intenso, que às vezes causa certo desconforto no leitor. Mas é uma literatura que sustenta requintes de leveza, de diálogos sutis e profundos, sentimentos explicitados de maneira a tirar todo o julgamento moral; que desnuda a alma da narradora de dentro das páginas... Algo que por si tornou a obra uma espécie de bestseller da minha insignificante coleção.

Se serei perdoado por subtrair objeto do patrimônio cultural da cidade, não sei dizer. Os moralistas certamente dirão que não. E dentro dessa ideia, posso alegar que sou o maior desses moralistas. Mas o objetivo desta reflexão não é o de obter redenção nenhuma, mas esboçar minha sincera confissão de que sempre que olho para a estante e vejo o livro antiteticamente adquirido, não sinto a menor culpa. Eu o entendo como uma conquista, preciosidade que apenas eu enxergo...

Contudo, não somente como colecionador, mas também como eterno apaixonado por livros, minha estante só aumenta de quantidade, ano após ano. E como não tenho herdeiros direto, como sei que vivo numa sociedade onde quase ninguém liga para livros, pode ser que um dia, quando eu já não for mais parte desse mundo, meus amados livros sejam doados para a Biblioteca Municipal, então meu cobiçado roubo retornará para as prateleiras empoeiradas de onde foi subtraído.

domingo, 21 de dezembro de 2014

CONTO: ELA E O TÉDIO


E quando me dei conta, estava sentado á mesa da lanchonete do trem em movimento, vendo-me ser circunstanciado pela fineza do acaso, que tão habilmente condicionou-me a um ambiente propício á reflexão. Do lado de fora, uma chuva forte salpicava a janela com pequenos cristais incolores, que escorregavam feito lágrimas pelo vidro.

Em minha frente, um casal nitidamente apaixonado trocava ternuras. Falavam baixinho ao pé do ouvido um do outro; achavam graça de quase tudo; tiravam fotos, sorridentes, aproveitando para usar como pano de fundo, o espetáculo torrencial proporcionado por uma natureza ostensiva que adora variar sua arte.
Foi como se toda essa ambientação tivesse se ajustado minuciosamente, para me instigar á pensar. E eu pensei... Trouxe a tona lembranças de algumas poucas horas atrás, quando eu conversava com Ela, na estação ferroviária.

Juro que não sei explicar, e acho que jamais saberei. Mas algo que Ela revelara sobre si mesma me deixou triste. Um desalento que me veio tardio, quando Ela já não se fazia mais presente.
Devo confessar que seu relato me foi entregue de forma refinada, numa canção da cantora Ana Carolina. Canção esta que descrevia com impecável precisão os sentimentos que acometiam sua perturbada e misteriosa mente... E Ela o cantou pra mim:

“Olho a cidade ao redor
E nada me interessa

Eu finjo ter calma
A solidão me apressa”

Só que aquele verso saiu da boca Dela carregado por uma beleza estranha e quase mórbida. Como se estivesse destinado á um fim trágico. Ela descreveu seu desinteresse total por qualquer forma de ação existencial... E com dificuldade, fez-se revelar aquele seu incômodo Tédio.
Eu me perguntei o porquê daquela minha repentina recordação. Sim, pois até aquele instante, sentado na lanchonete aguardando o meu pedido, minha mente transitava em relativa paz. Lembrei-me de Nietzsche, quando afirmou assertivamente que “Algo pensa em mim”. Pois algo estava á refletir em minha mente, e como o filósofo descreveu, eu não tinha o menor controle sobre aquilo.

Mas as dúvidas continuavam a pairar.
Por que a confissão Dela, proferida de maneira quase corriqueira enquanto esperávamos pelo atrasado trem, de repente me causou tanta perda de potência?

Com elevada facilidade, eu á trazia para meus pensamentos. Aquele ser encantador, que passara o fim de semana inteiro ao meu redor, destilando naturalmente sua inteligência, sua admirável humildade, seu jeito de me olhar afetuoso e ás vezes um pouco acanhado, sua sinceridade invejável... Dava-me de bom grado, um pouco do seu mundo, imaculado por sua simplicidade.
Mas o tempo inteiro Ela ainda sustentou algo mais na superfície de seu ser, o qual o único jeito para que eu notasse foi ter de revelar á mim... Algo que estava diante dos meus olhos o tempo todo, mas cego pelo meu egoísmo e arrogância, não pude ver. E quando eu finalmente deixei que Ela falasse, não havia mais tempo... O trem havia chegado.

Assim que embarquei, olhei pela janela, na direção da estação... Ela não estava mais lá. Perdi totalmente do meu campo de visão aquele ser portador do Tédio mais palpável que já estive perto.
E agora, olhando pela janela da lanchonete do trem, me dei conta de que estou longe demais, enquanto a paisagem lúgubre do lado de fora, me acusa impiedosamente de negligência...

sábado, 13 de dezembro de 2014

RESENHA DE LIVRO: CLARICE NA CABECEIRA


Outro dia, em conversa com uma grande amiga, perguntei á ela sobre um livro que estava lendo. Com certa pitada de desconforto, ela alegou que estava lendo devagar, porque temia que a leitura terminasse. Eu ri da situação inevitável dela, e tentei lhe confortar com o argumento de que obviamente ela poderia voltar á ler seu delicioso livro quando quisesse.
O fato que é algumas semanas após a corriqueira conversa com minha amiga, eis que me deparei fazendo exatamente a mesma coisa que ela: freando minha leitura por puro medo da mesma chegar ao fim. E este nosso medo tem por trás um delicioso fundamento: é que livros desse porte são prazerosos demais, e seu término desencadeia o mesmo sentimento que nos acomete quando nos deparamos com o fundo vazio do potinho de iogurte... Uma grande tristeza por algo tão bom ter chegado ao fim.

Clarice Lispector consegue causar esse efeito. E este magnífico CLARICE NA CABECEIRA não poderia ter outro, senão este mesmo título, que a meu ver, serve para exemplificar de forma precisa, meus relatos iniciais: é preciso tê-lo em nossa cabeceira, para amenizar a dor de ter que o devolver á estante de livros, e sabe Deus quando iremos tomá-lo á leituras novamente.
Aqui temos um volume contendo vinte crônicas que sucedem uma introdução feita por alguns ilustres leitores de Clarice Lispector. E diante de tantos relatos dignos, análises precisas e colocações assertivas sobre o trabalho da autora, eu não me vi em condições de fazer o mesmo. Mas posso expor meu elevado contentamento por ter tido mais uma chance de estar perto desta gênia da literatura. E exatamente como diz a introdução do livro, Clarice parece pegar na mão do leitor e dizer “vem comigo”. Seus relatos cotidianos são leves e absurdamente atraentes... Algo quase tangível.

Apenas para citar uma, talvez a que mais tenha me pegado pelo braço, foi a crônica intitulada “O caso da Caneta de Ouro”. Em minha opinião, este charmoso relato de Clarice sobre seus filhos, em que um deseja sua nova caneta de ouro, enquanto o outro não se importa com a mesma, é um grandioso embate literário que põe defronte desejo versus desprendimento. E termina com um alerta reflexivo: “Nem sempre esmiuçar demais da certo”.
Sim, o iogurte terminou, deixando apenas o sabor delicioso de seu conteúdo, preso dentro da minha flutuante memória de leitor. Mas a melhor parte é que não há como ver o fundo vazio, porque Clarice é, inquestionavelmente, sinônimo de preenchimento da alma.