sábado, 25 de abril de 2015

CRÔNICA: SALA VAZIA


Deitado no tapete da sala, de barriga pra baixo, eu pensava em alguma coisa para escrever. O barulho do ventilador ligado, girando para paredes vazias, lá no quarto, era um sinal de que eu vagueava sem destino pela casa. Em minha frente, a estante de livros onde notei uma grossa camada de poeira, uniformemente adormecida entre os volumes... Pensei que eu deveria arriscar compor uma poesia.
Será que foi o vislumbre da poeira impregnada em meus móveis que despertou essa inusitada sugestão? Certa vez, eu li num texto, que as palavras surgem e constroem frases naturalmente na mente de um poeta, diante do simples entrever da realidade ordinária. Eu não me julgo um poeta, e nem mesmo sou bom na arte de construir versos. Principalmente porque acredito que a grande magia da poesia não é a de transmitir algo lógico ou comunicativo, mas, sobretudo a de construir emoções.
Mas eu aprendi que escrever deve se tornar um hábito constante na vida de quem quer se manter estudante dessa arte... Se escrever for apenas um hobby, então seremos como atletas de fim de semana, onde não exercitaremos o suficiente para elevarmo-nos á novos degraus de excelência. Exatamente como um atleta que precisa praticar os músculos, um escritor precisa praticar a escrita. Mesmo quando sua mente está vazia, feito calçadão do centro da cidade em noite de chuva.
Bom, o fato é que o desconforto de ficar muito tempo deitado assim, imprensando o abdômen, me deixa sem ar. Então, eu me sentei e, casualmente, olhei para o negrume da tela da TV desligada. Foi estranho, mas me lembrei de que fazia meses que eu não assistia nenhum canal televisivo e, mesmo assim, não sentia falta de nenhum deles. Quantas risadas tolas, quantos gritos de gol, quantos bocejos entediados, quanta indignação. Quantas lágrimas eu e ela já compartilhamos juntos... Eu queria fazer as pazes contigo, ó querida condutora da futilidade mundana. Mas o espelho escurecido e emburrado, diante de mim, mais se parecia com uma criança mimada, que jamais perdoará o meu completo abandono.
Absorto, eu reparo um pequeno tufo de algodão, preso nos pelos do meu peito. Eu o retiro e olho de perto. E entendo que não se trata de um tufo de algodão, mas de resquícios da Tekila, minha adorável Poodle, portadora de enorme quantidade de fiapos de algodão, que se desprendem dela, deixando por onde passa um rastro matreiro de cor branca. Percebi que toda a extensão do tapete era um ambiente impregnado de pequenos bolinhos provindos de sua crina canina, denotando que aquele recinto havia sido emancipado.

Senti-me um estranho, um intruso dentro de minha própria sala.
Até mesmo o tapete, com toda sua expansividade familiar, agora me era excêntrico, porque eu havia me tornado um visitante raro da sala, incapaz de notar seu novo adorno esbranquiçado.
Como pode eu ser incapaz de reparar transformações tão evidentes dentro da minha própria casa? Era como se eu estivesse entrando na sala pela primeira vez. E exatamente como ocorre na natureza dominante, a Tekila teria todo o direito de me expulsar, pois aquele terreno agora lhe pertencia. Afinal, até a TV recusava-se á fazer as pazes comigo; os livros deviam me odiar por deixá-los á mercê da poeira incessante; e os fiapos de algodão de minha pequena leoa reivindicavam o solo daquele ambiente.
Levantei-me e fugi, feito um covarde, para a cozinha. Frequentemente, eu esticava o pescoço, como um periscópio humano, vigiando a sala de longe. Aquelas veracidades cruéis não me queriam por lá, e agora eu temia estar sendo perseguido, e talvez a revolução se intensificasse, ocasionando em uma expulsão coletiva. Tive medo de olhar também ao redor da cozinha, pois os talheres poderiam se unir aos copos e o microondas, numa campanha coletiva para me repelir.

O ser humano é o único animal que não sabe o que fazer na hora de marcar terreno.
Mas a sala já havia aprendido isso, e a corte residencial estava formada, em todos os vãos da estante. A acusação trouxe algumas testemunhas de peso: minhas pequenas Gueixas de pano, que conviveram comigo há tanto tempo, agora me olhavam com menos admiração: “Você é mesmo um ausente! Como pôde ser tão ingrato? Até já dormiste neste chão, velado por nós!”, eu era capaz de escutar suas duras acusações. O dragão de argila, que adquiri de uma vendedora indígena em Foz do Iguaçu, apesar de não ter feito nenhum pronunciamento, pareceu optar pela neutralidade, recusando-se á tomar algum partido... E por fim, a Dama da Justiça, imponente e resoluta, o mais antigo adereço da estante, com sua balança nas mãos, parecia pronta para me dar a sentença.
Culpado!
Finalmente eu entendi que não somos nós aqueles que precisam invadir, sobrepor ou apreciar o lar. Na verdade, é o ambiente que nos escolhe, que nos analisa antes de decidir se gostará de nós... Ou ele nos expulsa sem nenhum pudor, como se fôssemos indesejáveis leprosos.

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