O impulso humano em se parecer
maior desperta a comparação e atiça a disputa. Esta comparação sucede-se até
virar vício e daí surge a vaidade, que depois se transformar em inveja. Então nesse
ponto já se perdeu a possibilidade de harmonia e a capacidade de
discernimento... Sim, senhor diabo, não precisamos de você para nos destruir.
Recentemente comecei a tirar
carteira de habilitação. Foi um presente da minha namorada, ao constatar que
jamais farei isso por vontade própria. Nunca tive interesse por veículos
automotores, embora aprecie algumas de suas praticidades. Mas foi durante uma
das aulas de legislação, que comecei a entender as razões por trás desta minha particular
aversão ao trânsito: o ódio generalizado que este ambiente desencadeia. E eu só
soube disso porque um medo incontrolável aflorou em meu ser, no instante em que
o professor exibiu um vídeo que documentava a violência no trânsito. Não a
violência causada pelos trágicos acidentes, mas a violência orquestrada pela cólera
aflorada nas pessoas que precisam dividir espaço tão escasso, onde caixas motorizadas
tentam subjugar umas as outras.
Literalmente é uma guerra
diária.
Outro exemplo notório da
proliferação do ódio é a internet. E embora se trate de um espaço estrutural infinitamente
maior, a internet tem se mostrado um antro de intolerância desenfreada. Por
toda a Web se propagam vídeos de ataques a ideias, conceitos ou qualquer
veiculação que instigue alguma forma de contradição; comentários odiosos cheios
de preconceitos; ofensas sem nenhuma restrição; o desrespeito subjugando a
ética da convivência... Talvez porque através de uma tela de computador nos
tornamos infinitamente mais corajosos em expor o nosso inconformismo frente ao
que nos é diferente. Ou simplesmente porque através da internet criamos
avatares que camuflam e escondem nossa verdadeira face.
Vivemos numa sociedade de
ininterrupta competição, como se todos os seres humanos ao redor fossem adversários
em potencial. Não podemos baixar a guarda em nenhum momento porque o descanso é
sinal de fraqueza; escolher por uma vida de menos obtenções ou apenas ter o
suficiente é atitude de gente submissa. Somos uma sociedade inserida numa
panela de pressão, prestes a explodir...
Ver toda essa intolerância às
vezes desperta sentimento semelhante ao ocasionado pelo vídeo promovido pelo
instrutor de trânsito: suscita o medo em meu ser... Medo das pessoas. E mesmo
confessando este medo, eu sei que também faço parte deste universo maledicente.
Aliás, o medo é um poderoso combustível para alimentar o ódio.
O desencadeamento da cólera
humana só poderia resultar (entre cenários por nós já tão conhecidos de
violências urbanas e guerras) num lugar áspero de desconfiança e ressentimento,
onde a gentileza deixou de ser parte de nossa constituição.
Sobre um vetusto dito popular que
infelizmente parece equivocado de que “gentileza
gera gentileza”, paira sobre minha cabeça algo discrepante. Eu só consigo
notar nesta teoria aparentemente ingênua, mais da maldade humana. A ideia de
que uma ação cortês sucederá noutra, parte do pressuposto de que até mesmo as
ações altruístas do ser humano não passam de barganha coletiva. Faremos algo
gentil esperando sempre que algo semelhante nos seja devolvido. Não há espaço
para a intenção despretensiosa. E quando essa gentileza dissimulada não
acontece, nós aprendemos rapidamente a manifestar o ressentimento na forma de
revide.
Procurando fugir do
isolamento, as pessoas desenvolveram seus métodos de convivência baseados em
modelos sociais de grupos, geralmente identificados por renda, religião ou futebol,
pela melanina ou simplesmente por forma física. Grupos que se odeiam mutuamente,
mas que talvez convivessem em maior harmonia, desde que cada um permanecesse no
seu quadrado. No entanto, grupos sociais são pequenas esferas de uma infinita
floresta suburbana, na qual tais grupos se dispersam para disputar espaço, seja
na escola, nas estradas, no ambiente de trabalho, no supermercado, na fila do
banco, na praça pública. Indivíduos pertencentes a distintos grupos, que se
veem difundidos, pois precisam resolver questões cotidianas, acabam fazendo a
leitura do outro como sendo uma realidade que tenta subjugar a sua própria, desencadeando
um egoísmo que gera faíscas pérfidas de desconfiança.
Então semelhantes desconhecem-se,
tornam a convivência dispersa por meio da indiferença: um lugar no ônibus que
não é concedido; um desconto obsequioso que é negado a um carecido; um objeto ignorado
que caiu no chão; uma fila furada na cara dura; uma cortesia sumariamente
negada; ouvidos fechados ao que está fora da bolha.
Pra piorar, um elemento aprofundou
ainda mais a desconfiança coletiva. E se não era possível que houvesse
gentileza por meio da boa vontade, então devíamos encarar um inimigo em comum
para que odiemos de mãos dadas. Este inimigo se chamaria “Governo”. Mas nem mesmo
a asquerosa corja dos políticos foi capaz de nos unir ao redor de um objetivo
comum...
O Governo que causaria
aproximação com o semelhante, por meio de sua veia opressora, organizou-se em políticas
partidárias que só elevou a polarização das bolhas em conceitos de direita e
esquerda.
O grande Tácito, na Roma
clássica, dizia que “os homens
apressam-se mais em retribuir um dano do que um benefício”. Parece-me
atual, pois enquanto estamos a acompanhar o porco gordo do capitalismo minando
nossas conquistas, bravejamos uns com os outros e viramos as costas para aquele
sujeito que votou no candidato X. E no meio do apocalipse diário fazemos da
incivilidade o nosso maior hábito.
Ao ler um texto que me pareceu
utópico de um psicólogo pacifista, ele disse que a gentileza anda de mãos dadas
com a educação. E embora esta ideia pareça um tanto pertinente, percebo que
mesmo um verbo tão próspero quanto educar, parece estar se perdendo em
conceitos contraditórios. Houve um relativismo na forma com que ensinamos a
cortesia. Afinal de contas, nem todo mundo merece amabilidade e demonstrar isso
o tempo inteiro se tornou sinal claro de fraqueza.
Porque o Sistema exige que
você seja forte;
Porque o seu grupo social
admira sua valentia;
Porque se frear com seus
compromissos será ultrapassado por seu vizinho;
Porque o sucesso é a linha de
chegada dos corajosos.
Gentileza virou coisa de indivíduo
incapaz. Sim, pois somente quando se está acuado ou enfraquecido é que olhamos
para o lado e lá estão as ameaças. É quando a nossa impotência se eleva a
patamares degradantes que dissimulamos e assumimos uma postura cortês; pechinchamos
em busca de apaziguar as relações; largamos o osso apenas quando não temos mais
dentes para continuar mordendo. No entanto, só o que queremos é galgar topos
maiores, e quando o semelhante se mostrar um obstáculo, este será tratado como
tal.
Fomos ensinados que gentileza
inferioriza, enfraquece e demanda humildade, algo que não sabemos mais o que
significa. Melhor é ser odioso e insensível porque nos deixa com a aparência de
espertos e soberanos. Num mundo de desafetos é vantajoso parecermos inabaláveis
para que ninguém pense em fazer xixi na nossa horta.
Então, o mesmo psicólogo cita
em seu dócil texto que o maior exemplo da gentileza humana está nas situações
de grandes catástrofes; que é nos momentos de maior dor que o ser humano demonstra
seu altruísmo e que, segundo o texto, este ato é intrínseco de nossa espécie.