quarta-feira, 15 de março de 2017

CRÔNICA - A PERDA DA GENTILEZA


Quando um entediado demônio perguntou ao próprio diabo por que ele não estava mais preocupado em corromper e desviar a bondade humana, o tinhoso respondeu sem titubeio: “Não é preciso nenhum esforço de minha parte. Os homens já fazem isso bem melhor do que eu”.

O impulso humano em se parecer maior desperta a comparação e atiça a disputa. Esta comparação sucede-se até virar vício e daí surge a vaidade, que depois se transformar em inveja. Então nesse ponto já se perdeu a possibilidade de harmonia e a capacidade de discernimento... Sim, senhor diabo, não precisamos de você para nos destruir.

Recentemente comecei a tirar carteira de habilitação. Foi um presente da minha namorada, ao constatar que jamais farei isso por vontade própria. Nunca tive interesse por veículos automotores, embora aprecie algumas de suas praticidades. Mas foi durante uma das aulas de legislação, que comecei a entender as razões por trás desta minha particular aversão ao trânsito: o ódio generalizado que este ambiente desencadeia. E eu só soube disso porque um medo incontrolável aflorou em meu ser, no instante em que o professor exibiu um vídeo que documentava a violência no trânsito. Não a violência causada pelos trágicos acidentes, mas a violência orquestrada pela cólera aflorada nas pessoas que precisam dividir espaço tão escasso, onde caixas motorizadas tentam subjugar umas as outras.

Literalmente é uma guerra diária.

Outro exemplo notório da proliferação do ódio é a internet. E embora se trate de um espaço estrutural infinitamente maior, a internet tem se mostrado um antro de intolerância desenfreada. Por toda a Web se propagam vídeos de ataques a ideias, conceitos ou qualquer veiculação que instigue alguma forma de contradição; comentários odiosos cheios de preconceitos; ofensas sem nenhuma restrição; o desrespeito subjugando a ética da convivência... Talvez porque através de uma tela de computador nos tornamos infinitamente mais corajosos em expor o nosso inconformismo frente ao que nos é diferente. Ou simplesmente porque através da internet criamos avatares que camuflam e escondem nossa verdadeira face.

Vivemos numa sociedade de ininterrupta competição, como se todos os seres humanos ao redor fossem adversários em potencial. Não podemos baixar a guarda em nenhum momento porque o descanso é sinal de fraqueza; escolher por uma vida de menos obtenções ou apenas ter o suficiente é atitude de gente submissa. Somos uma sociedade inserida numa panela de pressão, prestes a explodir...

Ver toda essa intolerância às vezes desperta sentimento semelhante ao ocasionado pelo vídeo promovido pelo instrutor de trânsito: suscita o medo em meu ser... Medo das pessoas. E mesmo confessando este medo, eu sei que também faço parte deste universo maledicente. Aliás, o medo é um poderoso combustível para alimentar o ódio.

O desencadeamento da cólera humana só poderia resultar (entre cenários por nós já tão conhecidos de violências urbanas e guerras) num lugar áspero de desconfiança e ressentimento, onde a gentileza deixou de ser parte de nossa constituição.

Sobre um vetusto dito popular que infelizmente parece equivocado de que “gentileza gera gentileza”, paira sobre minha cabeça algo discrepante. Eu só consigo notar nesta teoria aparentemente ingênua, mais da maldade humana. A ideia de que uma ação cortês sucederá noutra, parte do pressuposto de que até mesmo as ações altruístas do ser humano não passam de barganha coletiva. Faremos algo gentil esperando sempre que algo semelhante nos seja devolvido. Não há espaço para a intenção despretensiosa. E quando essa gentileza dissimulada não acontece, nós aprendemos rapidamente a manifestar o ressentimento na forma de revide.

Procurando fugir do isolamento, as pessoas desenvolveram seus métodos de convivência baseados em modelos sociais de grupos, geralmente identificados por renda, religião ou futebol, pela melanina ou simplesmente por forma física. Grupos que se odeiam mutuamente, mas que talvez convivessem em maior harmonia, desde que cada um permanecesse no seu quadrado. No entanto, grupos sociais são pequenas esferas de uma infinita floresta suburbana, na qual tais grupos se dispersam para disputar espaço, seja na escola, nas estradas, no ambiente de trabalho, no supermercado, na fila do banco, na praça pública. Indivíduos pertencentes a distintos grupos, que se veem difundidos, pois precisam resolver questões cotidianas, acabam fazendo a leitura do outro como sendo uma realidade que tenta subjugar a sua própria, desencadeando um egoísmo que gera faíscas pérfidas de desconfiança.

Então semelhantes desconhecem-se, tornam a convivência dispersa por meio da indiferença: um lugar no ônibus que não é concedido; um desconto obsequioso que é negado a um carecido; um objeto ignorado que caiu no chão; uma fila furada na cara dura; uma cortesia sumariamente negada; ouvidos fechados ao que está fora da bolha.

Pra piorar, um elemento aprofundou ainda mais a desconfiança coletiva. E se não era possível que houvesse gentileza por meio da boa vontade, então devíamos encarar um inimigo em comum para que odiemos de mãos dadas. Este inimigo se chamaria “Governo”. Mas nem mesmo a asquerosa corja dos políticos foi capaz de nos unir ao redor de um objetivo comum...

O Governo que causaria aproximação com o semelhante, por meio de sua veia opressora, organizou-se em políticas partidárias que só elevou a polarização das bolhas em conceitos de direita e esquerda.

O grande Tácito, na Roma clássica, dizia que “os homens apressam-se mais em retribuir um dano do que um benefício”. Parece-me atual, pois enquanto estamos a acompanhar o porco gordo do capitalismo minando nossas conquistas, bravejamos uns com os outros e viramos as costas para aquele sujeito que votou no candidato X. E no meio do apocalipse diário fazemos da incivilidade o nosso maior hábito.

Ao ler um texto que me pareceu utópico de um psicólogo pacifista, ele disse que a gentileza anda de mãos dadas com a educação. E embora esta ideia pareça um tanto pertinente, percebo que mesmo um verbo tão próspero quanto educar, parece estar se perdendo em conceitos contraditórios. Houve um relativismo na forma com que ensinamos a cortesia. Afinal de contas, nem todo mundo merece amabilidade e demonstrar isso o tempo inteiro se tornou sinal claro de fraqueza.

Porque o Sistema exige que você seja forte;

Porque o seu grupo social admira sua valentia;

Porque se frear com seus compromissos será ultrapassado por seu vizinho;

Porque o sucesso é a linha de chegada dos corajosos.

Gentileza virou coisa de indivíduo incapaz. Sim, pois somente quando se está acuado ou enfraquecido é que olhamos para o lado e lá estão as ameaças. É quando a nossa impotência se eleva a patamares degradantes que dissimulamos e assumimos uma postura cortês; pechinchamos em busca de apaziguar as relações; largamos o osso apenas quando não temos mais dentes para continuar mordendo. No entanto, só o que queremos é galgar topos maiores, e quando o semelhante se mostrar um obstáculo, este será tratado como tal.

Fomos ensinados que gentileza inferioriza, enfraquece e demanda humildade, algo que não sabemos mais o que significa. Melhor é ser odioso e insensível porque nos deixa com a aparência de espertos e soberanos. Num mundo de desafetos é vantajoso parecermos inabaláveis para que ninguém pense em fazer xixi na nossa horta.

Então, o mesmo psicólogo cita em seu dócil texto que o maior exemplo da gentileza humana está nas situações de grandes catástrofes; que é nos momentos de maior dor que o ser humano demonstra seu altruísmo e que, segundo o texto, este ato é intrínseco de nossa espécie.

Sim, eu comungo desta ideia. E sem pensar nós estamos lá, enfiando nossas caras na lama para retirar alguém que foi soterrado num desastre. Não sei se isto é atitude de nossa natureza, mas se for verdade, então eu estarei ainda mais convencido de que estamos assassinando até mesmo a generosidade da nossa essência, em detrimento de obtenções superficiais ou de vantagens efêmeras, enquanto caminhamos rumo ao mais profundo umbral de nossa alma; a maldade difundida numa ética do avesso, de convivência relativa e dissimulada...

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